ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
FACTOS
Sumário

Não merece censura a decisão que, ao abrigo do disposto no artº 311º, nºs 2, alínea a), e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, rejeita a acusação por não descrever os factos que preenchem o tipo subjectivo do crime imputado ao arguido.

Texto Integral

Recurso Penal 872/09.3PBVLG.P1


Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do tribunal da Relação do Porto


1. Relatório
B………., ofendida e assistente no processo acima referenciado, inconformada com a decisão que considerou manifestamente infundada a acusação particular por si deduzida, quer quanto ao crime de injúria, quer quanto ao crime de difamação e, consequentemente, indeferiu liminarmente o pedido de indemnização civil formulado a fls. 39 e vº, recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

1. Está provado nos autos que a arguida C………. enviou do seu telemóvel para o telemóvel do marido da Recorrente, entre Maio e Junho de 2009, várias mensagens das quais foram extraídas as seguintes expressões e palavras:
“A t mulher q va trabalhar ...",
“Kerias ... Pede a t mulher ela ganha bem ...",
“ficar c a vaka q tens em Kasa.",
“Tas c a puta da bebada .. ",
"Ela ta a t espera c um belo cadeado. Já vi q já ganhaste vontade d dormir c ela e não só!",
2. Estas expressões e palavras, integradas no texto das referidas mensagens, foram dirigidas à Recorrente, esposa do titular do telemóvel para quem as mesmas foram enviadas, e são, só por si ou integradas no texto das mensagens, injuriosas e difamatórias.
3. Assim, à autora de tais mensagens deve ser imputada, em concurso real, a prática de dois crimes, um de difamação, previsto e punido pelo art.º 180° nº.1 do Código Penal, e outro de injúria, previsto e punido pelo art.º, 181 nº.1 do Código Penal, com equiparação do art.º 182° do mesmo Código.
4. Efectivamente, as expressões e palavras utilizadas pela arguida nas mensagens, através das quais emite juízos de valor sobre a Recorrente, são objectivamente ofensivas da honra e consideração da Recorrente, e, por isso, subsumíveis às normas dos artºs 180° e 181º, 1, ambos do Código Penal.
5. Toda a gente entende, é do senso comum, que quem se dirige a outrem chamando-lhe de "vaka" e "puta da bêbada" através de mensagens escritas enviadas para o telemóvel do marido, actua com dolo e com intenção de denegrir a pessoa a quem se dirige, porque essa intenção está consubstanciada nas próprias palavras utilizadas pela autora das mensagens.
6. O facto de tais mensagens serem enviadas para o telemóvel do marido da Recorrente/Ofendida não despenalizam a conduta da arguida relativamente à pratica do crime de difamação, uma vez que tal conduta não se encontra abrangida entre o nº 2 e 5 do artº.180º do Código Penal, devendo considerar-se que, no dia a dia familiar, ambos os cônjuges e filhos têm acesso aos telemóveis uns dos outros.
7. Assim, a Recorrente não pode concordar com a Douta Decisão Recorrida, por considerar a acusação particular manifestamente infundada, em virtude de os factos nela descritos não constituírem a prática dos crimes de difamação e injúria.
8. Uma vez que tal decisão da Mª Juíza do Tribunal a quo violou os artºs 180° 1, 181º,1 e 182°, todos do Código Penal.
9. Pelo que deve tal decisão ser revogada e substituída por outra, que ordene o Julgamento da arguida pela prática dos crimes constantes da Acusação Particular e, consequentemente, prossiga, também, o Pedido de Indemnização Civil.

O Ministério Público junto do tribunal “a quo” respondeu à motivação do recurso, defendendo a sua improcedência e a manutenção integral da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

1. A Mma Juíza a quo, apreciando liminarmente a acusação particular apresentada, decidiu rejeitá-la.
2. E fê-lo em virtude de a mesma ser absolutamente omissa no tocante ao elemento emocional do dolo – elemento subjectivo do tipo do crime de difamação imputado pela assistente à arguida, limitando-se tal acusação a referir que a arguida agiu livremente.
3. O elemento emocional é decisivo para que se pudesse afirmar o carácter doloso da actuação da arguida, pelo que, a sua falta equivale à não verificação do elemento subjectivo do tipo legal do crime de difamação, cuja prática lhe foi imputada na acusação particular.
4. Não contendo a acusação particular apresentada pela assistente a narração de tais factos, bem andou, no nosso modo de ver, a Mma Juíza a quo, no seu douto despacho abundantemente fundamentado, ao rejeitá-la.
5. A Mma Juíza a quo decidiu de forma acertada e sem violação de qualquer norma legal.

A arguida, C………., respondeu igualmente à motivação do recurso, formulando, por seu turno, as seguintes conclusões (transcrição):
Crime de injúrias:
1. Verifica-se a injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do C.P, quando a ofensa à honra é feita na presença do ofendido,
2. Difamação traduz a actuação de quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outras pessoas, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir tal imputação ou juízo.
3. A injúria se consuma na presença do ofendido deve, no entanto, ser entendida em termos hábeis: em regra, existe uma continuidade física do ofensor com o ofendido Mas, entre ambos pode interceder um determinado meio de comunicação, como o telefone ou carta.
4. Nos presentes autos, o meio de transmissão das ofensas, foram mensagens escritas enviadas para o telemóvel do marido. Tal facto não desvirtua a definição do próprio crime de injúrias p. e p. no artigo 181º do C.P.
5. O facto da Recorrente partilhar o mesmo telemóvel com o marido D………., em nada interfere com o facto das aludidas mensagens escritas terem sido direccionadas para o telemóvel deste e não para o telemóvel daquela.
6. A afronta não foi feita directamente à pessoa da Recorrente, mas efectuada directamente para o telemóvel do marido. Pelo que aplicando o teor dos artigos 181º e 182º, ambos do C.P, bem andou o Tribunal Recorrido ao rejeitar acusação particular no que concerne ao crime de injúrias por a afronta não se verificar directamente na pessoa da ofendida/assistente.
Crime de difamação:
7. Estamos perante a prática de um crime quando se prove quer os elementos objectivos, quer os elementos subjectivos que se consubstanciam no elemento intelectual, volitivo e, ainda, no emocional.
8. Inexistindo na acusação qualquer referencia ao elemento subjectivo não se poderá imputar ao arguido a prática do crime em causa, por omissão de um elemento essencial para consumação deste: a prova do tipo de culpa do agente infractor.
9 Não se pode fazer prova do dolo em sede de audiência de discussão em julgamento, sob pena de ser violar o princípio do acusatório.
10. Não pode a Recorrente pressupor que da transcrição das mensagens escritas se pode retirar, por ilação, o carácter doloso da conduta da arguida. Deveria, isso sim, alegar e provar factos que demonstrassem que esta agiu com conhecimento (elemento intelectual) e vontade (elemento volitivo) da prática do ilícito típico e, ainda, que tinha consciência da ilicitude do seu comportamento (dolo emocional).
11. Ainda que se considere que a Recorrente alegou parte do elemento subjectivo (como foi o entendimento da decisão recorrida), sempre se pautou pela completa ausência do dolo emocional.
12. Assim, o objecto do presente recurso só poderia ser o de saber quais as consequências jurídicas da falta de alegação de factos integradores do dolo emocional por parte da assistente na acusação particular:
13.O presente recurso não coloca em crise os reais fundamentos de rejeição da acusação particular por parte do Tribunal a quo, pois que não logrou sequer identificar o verdadeiro cerne da questão jurídica que fundamenta a decisão deste, não se debruçando sobre as consequências do dolo emocional.
14 Antes tece considerações generalistas e confusas se confrontarmos com o teor da decisão recorrida,
15. Não tendo identificado correctamente o objecto da decisão recorrida e, muito menos, articulado factos e argumentos capazes de contrariar o sentido desta, não deve a decisão do Tribunal recorrido ser revogada, mantendo-se o teor da decisão deste ser mantida por se mostrar legal e fundamentada.
16. Pelo exposto, com o presente recurso deverão os Venerandos Desembargadores improceder os pedidos efectuados pela Recorrente, manter a decisão de rejeição da acusação particular, nos termos do artigo 311º, n.º 3 d) do CPP e, por conseguinte, ser indeferido qualquer pedido de indemnização civil.

Nesta Relação, o Ex.º Procurador-Geral-Adjunto apôs apenas “visto”, por se tratar de delito particular.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência

2. Fundamentação
2.1 Matéria de facto

Em 28/04/2010 foi proferida a decisão recorrida, do seguinte teor

“I – O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
II – A assistente B………. veio, a fls. 40 e 41, deduzir acusação particular contra a arguida C………. imputando-lhe a prática, em concurso real, de um crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180, do Código Penal e de um crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181, n.º 1 do Código Penal.
A fls. 41, o Ministério Público declarou “acompanhar a acusação particular.”.
Cumpre decidir.
1. Em primeiro lugar, impõe-se chamar à colação o disposto no n.º 2 do art.º 311, do Código de Processo Penal (são deste Diploma os demais preceitos a citar sem menção expressa de proveniência), segundo o qual, “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução” - como sucedeu in casu – “o presidente despacha no sentido:” “De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;” (al. a)).
2. De salientar a alínea d) do n.º 3 do mesmo normativo que esclarece que a acusação se considera manifestamente infundada se, nomeadamente, “ ... os factos não constituírem crime.”.
3. Principiemos por apreciar o crime de injúria, previsto e punido no art.º 181, n.º 1 do Código Penal.
Estatui o art.º 181, do Código Penal que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”
No crime de injúria protege-se a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas, daí que o bem jurídico lesado pela injúria seja, prevalentemente, a chamada honra subjectiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal.
Este, para a sua verificação, pressupõe, desde logo, um elemento objectivo - concretizado na circunstância de o agente, na presença do sujeito passivo, lhe imputar factos ofensivos da sua honra ou consideração, tratando-se, nesta medida pois, de um crime de dano; no entanto a comprovação da lesão assim entendida não se basta com a aptidão da expressão proferida para lesar o bem jurídico, necessitando igualmente de ofender, de prejudicar a honra de alguém.
Estamos assim caídos numa concepção valorativa do bem jurídico protegido, tentativa de ultrapassagem das concepções fácticas, por banda de um sector da moderna doutrina penal que tempera o elemento fáctico-social com elementos normativos extraídos do princípio da dignidade humana, partindo de um quadro constitucional de valores.
Dois bens constitucionais são nesta matéria importantíssimos: o princípio da igualdade que impõe uma socialização da honra, consubstanciada no direito a um reconhecimento igual, e o princípio do pluralismo que exige que o respeito a todos devido não dependa de uma determinada mundividência ou de concepções morais dominantes.
Como ensinam Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal, Volume II, Rei dos Livros, página 317, “HONRA «é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter...»” e, CONSIDERAÇÃO é «o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros.»”.
Por outro lado, no que tange ao elemento subjectivo, é largamente dominante a doutrina e a jurisprudência que entende bastar-se o crime em apreço com a presença do dolo enquanto elemento subjectivo geral da ilicitude, isto é, o conhecimento de que determinados factos são lesivos da honra ou consideração de outrem e a vontade, ao menos eventual, de os concretizar. – neste sentido, Silva Dias, in “Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúria”, AAFDL, 1989, páginas 35 e 36 e Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado, 6ª edição, 1992, páginas 425 e 426.
Ora, conquanto na acusação particular deduzida a fls. 40 e verso, pela assistente seja imputada a prática de um crime de injúria, a verdade é que todos os factos aí narrados terão sido praticados pela arguida, que enviou mensagens com teor injurioso relativamente à assistente, através de mensagens escritas, enviadas para o telemóvel do marido da assistente.
Ou seja, as alegadas expressões não foram dirigidas directamente à assistente – não foi ela a sua destinatária – mas sim ao seu marido.
Afigura-se-nos, assim, que estaremos, apenas, perante um crime de difamação, relativamente ao qual foi deduzida, igualmente, acusação particular e não, igualmente, de um crime de injúria.
Face ao exposto, não pode deixar de concluir-se que os factos constantes da acusação particular, tal como aí se mostram descritos, e imputados à arguida são insusceptíveis de constituir a prática de um crime de injúria.
Donde se conclui que, segundo o estatuído no art.º 311, n.º 3, al. d), a acusação particular tem de ser considerada manifestamente infundada, em virtude de os factos nela descritos não constituírem a prática de um crime de injúria.
4. E o que dizer relativamente ao crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180, do Código Penal.
Como é sabido, o crime de difamação é essencialmente doloso.
Assim, para o cometimento desse crime, é necessário que o agente actue com dolo, bastando o dolo genérico.
Daqui resulta, pois, que estão arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes.
Por outro lado, importa ter em conta que o preenchimento de um tipo legal de crime pressupõe a verificação de dois tipos de elementos, os elementos objectivos e os elementos subjectivos, também designados por tipo objectivo de ilícito e tipo subjectivo de ilícito.
Os elementos objectivos do tipo incriminador são, nomeadamente, o agente do comportamento, a conduta (ou comportamento humano voluntário) e o bem jurídico, este último «sinónimo do valor objectivado que o tipo traz consigo, sinónimo do substrato concreto, do suporte objectivo imediato de um valor» (cfr. Figueiredo Dias, «Direito Penal», Sumários das Lições à 2ª turma do 2º ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 1975, págs. 139/144).
Por seu turno, a parte subjectiva do tipo constitui a representação da situação objectiva na mente do agente. Para se afirmar a verificação do tipo legal de crime, exige-se, pois, que o agente saiba e tenha consciência e conhecimento da situação objectiva, tal como ele se verificava.
Assim, «todos os elementos essenciais do facto típico, da parte objectiva do tipo de crime, têm de ser conhecidos pelo agente para se poder dizer que ele actuou dolosamente e, portanto, que preencheu, nesse aspecto subjectivo, o tipo legal de crime».
De facto, nos crimes dolosos, a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente, ou seja, pressupõe que estejam presentes o elemento intelectual e o elemento volitivo.
Mas, além disso, o dolo exige o chamado elemento emocional.
Na verdade, o dolo não se esgota no conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo.
É necessário, ainda, que àquele conhecimento e vontade, acresça um elemento emocional na caracterização da atitude pessoal do agente, exigida pelo tipo-de-culpa doloso.
Por outras palavras: à afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que esteja presente o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta.
Assim, o elemento intelectual do dolo «só poderá ser afirmado quando o agente actue com todo o conhecimento indispensável para que a sua consciência ética se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do seu comportamento», isto é, quando o agente actue com conhecimento da factualidade típica.
Já o elemento volitivo traduz a «vontade do agente dirigida à realização do tipo» legal de crime.
Finalmente, o elemento emocional representa o «conhecimento ou consciência do carácter ilícito» da conduta, estando ligado, pois, ao chamado tipo de culpa doloso.
Com efeito, este elemento emocional é dado «através da consciência da ilicitude» e «é um elemento integrante da forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso».
Logo, só pode afirmar-se que o agente actuou dolosamente quando, designadamente, esteja assente que o mesmo actuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta.
Em suma: o dolo só existirá quando o agente actue com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito e com conhecimento ou consciência da ilicitude da sua actuação, ou seja, «sempre que o ilícito típico seja fundamentado por uma censurável posição da consciência-ética do agente perante o desvalor do facto, pressuposto que aquela se encontrava correcta e suficientemente orientada para esta» (cfr. Figueiredo Dias, op. cit., págs. 199/204, e «Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa», in «Jornadas de Direito Criminal», «O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar», edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 72/73).
Fazendo apelo aos considerandos de cariz teórico supra expostos, donde decorre que o crime de difamação é um crime essencialmente doloso.
Assim, para o cometimento desse crime, é necessário que o agente actue com dolo, bastando o dolo genérico.
Daqui resulta, pois, que estão arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes.
Por outro lado, importa ter em conta que o preenchimento de um tipo legal de crime pressupõe a verificação de dois tipos de elementos, os elementos objectivos e os elementos subjectivos, também designados por tipo objectivo de ilícito e tipo subjectivo de ilícito.
Os elementos objectivos do tipo incriminador são, nomeadamente, o agente do comportamento, a conduta (ou comportamento humano voluntário) e o bem jurídico, este último «sinónimo do valor objectivado que o tipo traz consigo, sinónimo do substrato concreto, do suporte objectivo imediato de um valor» (cfr. Figueiredo Dias, «Direito Penal», Sumários das Lições à 2ª turma do 2º ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 1975, págs. 139/144).
Por seu turno, a parte subjectiva do tipo constitui a representação da situação objectiva na mente do agente. Para se afirmar a verificação do tipo legal de crime, exige-se, pois, que o agente saiba e tenha consciência e conhecimento da situação objectiva, tal como ele se verificava.
Assim, «todos os elementos essenciais do facto típico, da parte objectiva do tipo de crime, têm de ser conhecidos pelo agente para se poder dizer que ele actuou dolosamente e, portanto, que preencheu, nesse aspecto subjectivo, o tipo legal de crime».
De facto, nos crimes dolosos, a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente, ou seja, pressupõe que estejam presentes o elemento intelectual e o elemento volitivo.
Mas, além disso, o dolo exige o chamado elemento emocional.
Na verdade, o dolo não se esgota no conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo.
É necessário, ainda, que àquele conhecimento e vontade, acresça um elemento emocional na caracterização da atitude pessoal do agente, exigida pelo tipo-de-culpa doloso.
Por outras palavras: à afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que esteja presente o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta.
Assim, o elemento intelectual do dolo «só poderá ser afirmado quando o agente actue com todo o conhecimento indispensável para que a sua consciência ética se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do seu comportamento», isto é, quando o agente actue com conhecimento da factualidade típica.
Já o elemento volitivo traduz a «vontade do agente dirigida à realização do tipo» legal de crime.
Finalmente, o elemento emocional representa o «conhecimento ou consciência do carácter ilícito» da conduta, estando ligado, pois, ao chamado tipo de culpa doloso.
Com efeito, este elemento emocional é dado «através da consciência da ilicitude» e «é um elemento integrante da forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso».
Logo, só pode afirmar-se que o agente actuou dolosamente quando, designadamente, esteja assente que o mesmo actuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta.
Em suma: o dolo só existirá quando o agente actue com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito e com conhecimento ou consciência da ilicitude da sua actuação, ou seja, «sempre que o ilícito típico seja fundamentado por uma censurável posição da consciência-ética do agente perante o desvalor do facto, pressuposto que aquela se encontrava correcta e suficientemente orientada para esta» (cfr. Figueiredo Dias, op. cit., págs. 199/204, e «Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa», in «Jornadas de Direito Criminal», «O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar», edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 72/73).
5. Expostos os precedentes princípios jurídicos, debrucemo-nos sobre o caso ajuizado.
Liminarmente, dir-se-á que, conquanto na acusação particular deduzida a fls. 40 e verso, pela assistente contra a arguida seja imputada a prática de um crime de difamação – crime essencialmente doloso, como se disse –, a verdade é que nessa acusação não é feita qualquer referência ao apontado elemento emocional do dolo, tal como precedentemente o deixámos definido.
É que, percorrendo a referida acusação verifica-se que a mesma é absoluta e totalmente omissa no tocante ao elemento emocional do dolo, traduzido, repete-se, na consciência ou conhecimento da ilicitude da conduta, ou seja, na consciência do seu carácter anti-jurídico e criminalmente punível, limitando-se a referir que o arguido agiu livremente.
Assim, não é suficiente a alegação das expressões que terão sido proferidas pela arguida, designadamente “vaka” e “puta da bêbada”, através de mensagens escritas enviadas ao marido da assistente.
Efectivamente, o elemento emocional é decisivo para que se pudesse afirmar o carácter doloso da actuação da arguida, pelo que a sua falta equivale à não verificação do elemento subjectivo do tipo legal do crime de difamação, cuja prática lhe foi imputada na acusação particular.
Assim, nada se dizendo quanto à consciência, por parte da arguida, da ilicitude e do carácter punível da sua conduta, impossível se torna afirmar uma actuação dolosa por banda da mesma.
Por conseguinte, inexistindo na acusação particular uma completa referência quanto ao preenchimento, por parte da arguida, do elemento subjectivo do tipo legal de crime cuja prática lhe é imputada e sendo a verificação desse elemento é indispensável para que se afirme o cometimento desse crime, então, não pode deixar de concluir-se que os factos constantes dessa acusação, tal como aí se mostram descritos, e imputados à arguida são insusceptíveis de constituir a prática de um crime de difamação.
Note-se, aliás, que o art.º 283, n.º 3 (aplicável à acusação particular deduzida pela assistente, por força da remissão operada pelo n.º 2 do art.º 285) define o conteúdo obrigatório da acusação, estipulando na sua al. b) que a acusação deve conter «a narração (...) dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena».
Ora, face ao princípio nulla poena sine culpa, consagrado no art.º 13, do Código Penal, é incontroverso que o elemento emocional do dolo é imprescindível para que se possa afirmar o elemento subjectivo de um tipo legal de crime doloso – ou seja, para que se possa afirmar o carácter doloso da actuação do agente – e, consequentemente, para que se possa fundamentar a aplicação ao autor do alegado facto ilícito de uma sanção criminal.
Donde se conclui que, segundo o estatuído no art.º 311, n.º 3, al. d), a acusação particular tem de ser considerada manifestamente infundada, em virtude de os factos nela descritos não constituírem crime.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, porque os referidos factos imputados à arguida C………., na acusação particular contra ela deduzida, a fls. 40 e verso, pela assistente, são insusceptíveis de integrar a prática de um crime de difamação, decido rejeitar tal acusação, por a mesma ser manifestamente infundada, nos termos do disposto no art.º 311, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea d).
Condeno a assistente, no pagamento das custas, nos termos do disposto no art.º 515, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
Notifique.
6. Na sequência da acusação particular pela prática do crime de injúria e de difamação, formulada, a assistente veio deduzir pedido de indemnização civil contra a arguida (fls. 39 e verso), reclamando a reparação dos danos não patrimoniais que, alegadamente, teria sofrido em consequência da conduta que aquela praticou e descritas na mencionada acusação particular, que computa em € 1.500,00.
Tendo em conta que tal acusação foi rejeitada, por ser manifestamente infundada, a pretensão indemnizatória ficou, obviamente, prejudicada, não podendo ter seguimento.
Na verdade, nos termos do disposto no art.º 74, “O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente.”.
Assim, o pedido de indemnização civil tem sempre de ser fundado na prática de um crime, como resulta, aliás, do estatuído no art. º 71.
Ora, na medida em que a acusação particular não foi recebida, o pedido de indemnização civil ficou sem suporte criminal, dado que tal pedido postula, necessariamente, a existência de procedimento criminal pela atinente materialidade, não podendo existir na ausência deste.
Em face do exposto, decido indeferir liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante B………. a fls. 39 e verso.
Condeno a demandante no pagamento das custas, nos termos do disposto no art.º 446, do Código de Processo Civil ex vi do art.º 523, do Código de Processo Penal. Notifique.”

2.2 Matéria de direito
A assistente insurge-se contra a decisão recorrida, por entender que os factos descritos na acusação particular constituem a prática dos crimes de injúria e difamação imputados à arguida.
Ora, a decisão recorrida rejeitou a acusação particular por entender que a mesma era manifestamente infundada, por duas ordens de razões: i) as expressões proferidas não foram dirigidas directamente à assistente, mas ao marido desta e, daí, os factos imputados à arguida não constituíam um crime de injúria, mas de difamação; ii) quanto ao crime de difamação, sendo este crime essencialmente doloso, não constavam da acusação os factos relativos à consciência da ilicitude.
Nas conclusões do recurso, a assistente não afronta, em bom rigor, as razões determinantes da rejeição da acusação, limitando-se a sustentar que as expressões usadas nas mensagens (que descreve) são “objectivamente ofensivas da honra e consideração da recorrente” e que “toda a gente entende (…) que quem se dirige a outrem chamando-lhe de “vaka” e “puta bêbada”, através de mensagens escritas enviadas para o telemóvel do marido, actua com dolo e com intenção de denegrir a pessoa a quem se dirige, porque essa intenção está consubstanciada nas próprias palavras utilizadas pela autora das mensagens”.

Vejamos.

Relativamente ao crime de injúria, é manifesta a improcedência do recurso. Efectivamente, só comete o crime de injúria quem se dirige a outra pessoa e lhe imputa factos ou lhe dirige palavras ofensivas da sua honra e consideração (art. 181º do CP). Se o agente se dirige a um terceiro, imputando a “outra pessoa” factos, ou formulando sobre ela juízos ofensivos da sua honra e consideração, o crime já não é de injúria, mas de difamação (art. 180º do CP).
As expressões em causa nestes autos foram escritas em mensagens de telemóvel, enviadas ao marido da assistente, mas visando a honra e consideração desta. É portanto evidente que os factos constantes da acusação particular não se subsumem no tipo de crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do C. Penal.
Assim, e nesta parte, a decisão recorrida não merece qualquer censura.

Relativamente ao crime de difamação, entende a assistente que o “dolo” está contigo na mera descrição dos factos, ou seja, na descrição das expressões utilizadas. O uso de tais expressões, de acordo com as regas do senso comum, mostra ter havido dolo. “A intenção está consubstanciada nas próprias palavras utilizadas pela autora das mensagens”.

Não foi esse o entendimento da decisão recorrida, a qual rejeitou a acusação particular por esta não conter qualquer referência à consciência da ilicitude que, a seu ver, configura o “elemento emocional do dolo”.

A questão que concretamente se coloca é assim a de saber i) se é ou não necessário imputar na acusação os elementos subjectivos da infracção, isto é, o dolo (representação e vontade de cometer os factos típicos) e a consciência da ilicitude (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ii) se essa omissão pode ser desconsiderada tendo em conta o senso comum, ou se tais elementos podem inferir-se dos demais factos narrados na acusação.

A resposta ao primeiro segmento da questão não pode deixar de ser afirmativa. Os factos naturais praticados pelo homem podem ter várias significações. Nos crimes cometidos através da linguagem – como é o caso dos autos – a fronteira entre o lícito e o ilícito depende de muitos factores: (i) significado social das expressões usadas; (ii) contexto em que foram proferidas; (iii) conotações de tais expressões; (iv) uso normal ou anormal desse tipo de linguagem entre o agente e o seu destinatário …
Por isso, para além da descrição naturalística das expressões usadas (que são apenas palavras), é decisivo saber se o agente, ao usar tal meio de expressão, sabia e queria difamar e tinha consciência de que estava, desse modo, a cometer um acto ilícito.

Ainda que os factos de natureza subjectiva (note-se que o dolo e a consciência da ilicitude são matéria de facto) pressuponham sempre factos objectivos – conditio sine qua non – também é verdade que a simples descrição de factos objectivos não é bastante (conditio quantum satis). E se é certo que não se pode difamar sem se utilizar qualquer meio de expressão, tal significa apenas que, para haver um crime de difamação, deverá existir um qualquer “comportamento” objectivo, susceptível de ofender a honra de consideração de outrem. Mas para haver crime de difamação não basta o preenchimento dos elementos objectivos do crime. É ainda necessário que o agente tenha uma especial disposição subjectiva, no momento da sua prática: deve querer praticar esses factos e deve saber que essa prática é ilícita.

Ora, esta especial disposição subjectiva – representação e vontade de cometer o crime e consciência de que tal é punido por lei – também deve ser imputada ao arguido, para que ele se possa defender e pô-la em causa.
Note-se que a dúvida sobe a existência destes “factos” deve sempre ser resolvida a favor do arguido, face à presunção de inocência constante do art. 32º da CRP. Por isso, a omissão de tais factos na acusação leva necessariamente à impossibilidade da sua prova (pois é acusação que delimita o âmbito dos factos a provar) e, consequentemente, à absolvição do arguido. Tem sido este, de resto, o entendimento unânime desta Relação, sobre os requisitos do requerimento para abertura de instrução:
- «Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução que não descreve os factos atinentes ao elemento subjectivo da infracção imputada ao arguido» Isto porque a descrição dos factos que integram o tipo legal de crime imputado, quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo, é fundamental dada a circunstância de vigorar entre nós, em pleno, o princípio da legalidade. Portanto, quando o requerimento de abertura de instrução seja omisso em elementos essenciais a consequência será a de rejeição por inadmissibilidade legal. É que o juiz não se pode substituir ao assistente e colocar, por sua própria iniciativa, os factos em falta, essenciais para a imputação do crime em questão. Se assim procedesse não só violaria os princípios da igualdade, imparcialidade e independência, mas também extravasaria os seus poderes de cognição, limitados pelo conteúdo do requerimento de abertura de instrução.” – Acórdão da Relação do Porto de 23-09-2009, proferido no proc. 1585/07.0TASTS.P1. No mesmo sentido, entre muitos outros, Acórdão desta Relação, de 11-10-2006, processo 0416501 e do S.T.J. de 22-10-2003, processo 03P2608.

É certo que, no caso dos autos, tudo indica que se tratou de um lapso da assistente. Se confrontarmos o articulado onde foi deduzido o pedido cível e o articulado onde foi deduzida a acusação, verificamos que no texto onde foi deduzido o pedido cível constavam os factos relativos ao dolo e à consciência da ilicitude – cfr. fls. 39/40: “a arguida agiu livre e conscientemente, com intenção de ofender a honra, dignidade e consideração da ofendida, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei”. Se a assistente quando deduziu o pedido cível alegou, e bem, os factos relativos ao elemento subjectivo do tipo, não se compreende (a não ser por mero lapso) que o não tenha feito quando deduziu a acusação.

Contudo, o lapso da assistente não pode prejudicar a arguida, nem tão pouco aumentar o prazo para que seja deduzida a acusação particular. O lapso em causa, porque se refere a factos que fundamentam a aplicação de uma pena, nem sequer pode ser corrigido, uma vez que o CPP não prevê a hipótese de o assistente ser convidado a corrigir a acusação, nesses casos.
Como se decidiu no Acórdão para Fixação de Jurisprudência, publicado no DR I Série – A nº 212, de 04/11/2005), “não há lugar ao convite ao Assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de Instrução, apresentado nos termos do art. 285º, nº 2 do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Deste modo, bem andou a decisão recorrida ao rejeitar a acusação particular e, consequentemente, o pedido de indemnização civil, pelo que se impõe negar provimento ao recurso.

3. Decisão
Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela assistente, fixando a taxa de justiça em 3 UC.

Porto, 20/10/2010
Élia Costa de Mendonça São Pedro
Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando