HIPOTECA
JUROS
Sumário

I - O artigo 693º do Código Civil não proíbe que se executem juros de mais de três anos, apenas os exclui da garantia.
II - A garantia hipotecária não abrange o valor da elevação do capital inicial, o mutuado, por capitalização de juros não pagos nem os juros sobre esse valor acrescido.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que o Banco A, hoje Banco B, move a C e mulher D, reclamou a E, a verificação do seu crédito de 8531169 escudos, graduando-se no lugar que lhe competir, a fim de ser pago pelo produto dos bens penhorados.
Entendendo que o montante reclamado pela E não encontra, no que excede o valor de 6551795 escudos e setenta centavos, correspondência com o registo da hipoteca, impugnou o exequente pedindo a sua redução.
Após resposta, foi proferida sentença que julgou verificado e reconhecido o crédito pelo montante reclamado, e o graduou em primeiro lugar.
Apelou, com êxito, o exequente tendo a Relação reduzido o crédito por da garantia excluir a capitalização de juros a que a apelada procedera.
Irresignada, pediu revista a reclamante, pretendendo a manutenção da sentença, pelo que, em suma e no essencial, concluiu em suas alegações:
- assiste-lhe o direito de capitalizar os juros no concreto contrato de mútuo para habitação, operação que correctamente foi feita;
- os juros capitalizados transformam-se em capital, integram-no e aumentam-no, passando para todos os efeitos a seguir o seu regime;
- a garantia da hipoteca abrange, para além do capital inicialmente mutuado, a elevação deste resultante da capitalização dos juros não pagos;
- violado, por errada interpretação, o disposto nos arts. 686-1, 687, 693-1 e 2 CCIV66, CRP e 7 n. 3 e 23 n. 5 do dec-lei 328-B/86, de 30.09.
Contraalegando, pugnou o exequente pela confirmação do acórdão.
Colhidos os vistos.

Matéria de facto considerada provada pelas instâncias:
a) - na acção executiva instaurada pelo Banco A, a que sucedeu o Banco B, contra C e D, foi penhorada, em 96.05.17, a fracção designada pelas letras «AQ», correspondente ao 8º andar C do prédio urbano sito na freguesia da Póvoa de Santa Iria, concelho de Vila Franca de Xira, penhora essa objecto de registo predial em 98.04.30;
b) - em 87.10.19, em escritura pública lavrada no 1º Cartório Notarial de Vila Franca de Xira, F e G declararam:
- confessar-se devedores à E, de 4050000 escudos, em razão de empréstimo regulado pelo dec-lei 328-B/86, de 30.09, à taxa de juro contratual legal máxima vigente em cada momento, inicialmente de 18,5% ao ano;
- os mesmos e a E que, em caso de mora, os respectivos juros seriam calculados à taxa que ao tempo vigorasse para os juros remuneratórios contratuais, acrescidos de uma sobretaxa até 4%;
- a E reservou-se a faculdade de, a todo o tempo, e independentemente de qualquer regime especial aplicável, capitalizar juros remuneratórios correspondentes a um período não inferior a três meses e juros moratórios correspondentes a um período não inferior a um ano, adicionando tais juros ao capital em dívida, passando aqueles a seguir todo o regime deste;
- os mesmos que, para garantia do empréstimo, respectivos juros e despesas constituíam hipoteca sobre a fracção predial mencionada na al. a);
- os mesmos e a E que os juros remuneratórios só ficavam cobertos pela garantia hipotecária até à taxa de 18,5% e que fixavam para efeito de registo as despesas extrajudiciais de 162000 escudos;
c) - sobre a fracção predial penhora está inscrita, desde 1987.06.29, na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira, a favor da E uma hipoteca para garantia do empréstimo de 4050000 escudos, juro anual de 19,5% e despesas de 162000 escudos, montante máximo de 12936190 escudos;
d) - em 98.11.19, a E comunicou a F e a H que o capital de 7055958 escudos incluía, de acordo com o art. 7 do dec-lei 328-B/86, 3005958 escudos de juros capitalizados, e que o montante de 5699062 escudos de juros correspondia a três anos, de 93.06.19 a 96.06.19, no montante de 1419681 escudos e a juros devidos desde então (rectificação efectuada na base do documento referido na al., a fls. 15, e em que esta assenta).

Decidindo:

1. - Instâncias e partes concordam sobre a legalidade da operação de capitalização de juros tendo o acórdão recorrido expressamente reconhecido a mesma (fls. 83) - o contrato de mútuo de que derivou o direito de crédito da reclamante integrou-se no regime especial de crédito jovem bonificado previsto no dec-lei 328-B/88, de 30.09, cujo art. 7-3 permitia a capitalização operada.
Não se afigura passível de qualquer censura a conclusão sobre a legalidade da operação.
Concordância ainda se verifica em relação ao segmento do acórdão onde afirma que, com a operação de capitalização, ocorre uma transformação de um crédito acessório de juros em um crédito de capital, aumentando este em medida correspondente à diminuição daquele.
A divergência surge quando o acórdão a considera ineficaz em relação a terceiros, aqui o exequente, pois que não foi levada a registo o que era essencial para lhes ser oponível.

2. - Porque na hipoteca o registo é constitutivo (CC- 687) impõe-se saber o que realmente foi levado ao registo e dele consta.
À resolução desta questão desinteressa observar que o «montante máximo assegurado pela hipoteca ... é claramente superior ao valor reclamado pela ora recorrente» (alegações a fls. 92).
Trata-se de argumentação que não responde à questão e pode denunciar fragilidade de posição (saber-se que a garantia não cobre a totalidade do crédito reclamado e pretender que se considere tal por o seu montante ser inferior ao montante máximo levado ao registo).
Além do crédito, a hipoteca assegura os acessórios que constem do registo e, tratando-se de juros (sejam eles remuneratórios sejam moratórios), nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a 3 anos, o que não impede o registo de nova hipoteca em relação a juros em dívida (CC- 693,1 a 3). Isto é, este art. não proíbe que se executem juros de mais de três anos, apenas os exclui da garantia, salvo se, concretamente em relação a estes, tiver sido registada nova hipoteca.
Visa-se assim proteger o interesse de terceiros, evitando-se a acumulação de juros sem o seu conhecimento, e, do mesmo passo, estimula-se a diligência do credor a não deixarem acumular juros sem recorrerem aos meios judiciais (P. de Lima-A. Varela in CCAnot I/717)
Dispunha o CRP vigente à data, tal como ainda dispõe o actualmente vigente, no seu art. 96 n. 1 a), que o extracto da inscrição de hipoteca deve conter ... o fundamento da hipoteca, o crédito e seus acessórios e o montante máximo assegurado.
Ao exigir que se indique o limite máximo assegurado está-se ainda e também a proteger o interesse de terceiros. O cálculo desse montante não poderá desrespeitar o prescrito na lei substantiva sobre a garantia hipotecária; com mais rigor, tal montante não resulta da vontade dos interessados mas apenas da lei, o que não significa que a declaração por aqueles seja de todo irrelevante (cfr. Mouteira Guerreiro in Noções de Direito Registral, nota 1 à p. 224).
Tal montante «corresponde à soma de todas as verbas parcelarmente citadas na inscrição: o capital, os juros remuneratórios, os moratórios, as despesas, enfim, quaisquer acessórios que a garantia abranja» (aut. e op. cits., p. 223-224).
Qualquer elevação do capital assegurado e de momento em dívida (ainda, portanto, que o inicial tivesse sido reduzido, v.g., através de pagamentos parcelares periódicos), como resultado de operação legal de capitalização de juros, tinha como contrapartida a diminuição do crédito de juros. Ainda como efeito desta operação o capital inicial poderá vir sempre a ser "refeito" se é que não mesmo ‘superado’ e irá passar, muito naturalmente, a vencer juros. É um ‘acessório’ que desaparece dando lugar, por acrescer ao capital em dívida, a um ‘novo’ capital que, por sua vez, irá conhecer ‘novo acessório’.
A questão que se põe é não a da sua legalidade, que, como se disse antes, obtém resposta positiva, mas a de o valor em si da elevação e os juros que a mesma vai passar a conhecer, por direito próprio, estarem ou não abrangidos pela garantia hipotecária anteriormente celebrada para assegurar o pagamento de um outro capital (aquele que não inclui essa elevação) e uns outros juros (aqueles que não recaem sobre esse valor da capitalização).
Por outras palavras, são coisas distintas a legalidade da operação e a extensão da garantia. Do reconhecimento daquela não decorre que o valor capitalizado e os juros fiquem por lei abrangidos nesta.
Além das normas acima referidas e da sua razão de ser, é o comando do nº 3 do art. 693 a indicar o caminho num caso paralelo - o que surge a «mais» em relação ao inicialmente contemplado apenas beneficiará de garantia hipotecária se uma nova e sobre esse «mais» tiver sido constituída.
A garantia hipotecária não abrange o valor da elevação do capital inicial, o mutuado, por capitalização de juros não pagos nem os juros sobre esse valor acrescido. Esta, a regra.

3. - Defende a reclamante a existência de uma norma específica que relativamente a este tipo de crédito permite solução diversa. É, em seu entender, o art. 23-5 do dec-lei 328-B/86, de 30.09 -
- «Nos casos em que o regime de amortização conduza ao aumento do saldo devedor do empréstimo, a hipoteca a que se alude no nº 1 poderá ser registada pelo montante máximo que se prevê, venha a atingir aquele saldo, ...».
Independentemente da interpretação desta norma poder abonar ou não a tese da recorrente, observe-se que não se prescinde do registo, antes se exige que esse aumento seja dele objecto.
Mantém-se, portanto, a exigência que do registo conste o facto jurídico que dá origem à hipoteca.
A hipótese posta pela lei (a amortização conduzir ao aumento do saldo devedor) observa-se quando não há pagamento integral de juros e se capitalizam os que não tenham sido pagos. Está-se então perante as chamadas prestações progressivas.
Aquele art. 23-5 veio, em relação ao disposto no CRP, dizer como se calcula o montante máximo assegurado - já não só nos termos antes aqui referidos mas incluindo aquele aumento previsível e, ao permitir poder a hipoteca ser registada por este montante máximo previsível, abriu uma excepção ao regime do art. 693 n. 2 CC ainda que indirectamente (arts. 7-3 e 23-5 do dec-lei 328-B/86).
A publicização que o registo pretende dar (CRPr- 1), a realidade que a inscrição pretende definir (CRPr- 91,1), a natureza do registo da hipoteca (CC- 687), e o carácter facultativo que a lei estabelece ("poderá ser registada ..." - art. 23-5 do dec-lei 328-B/86), postulam que, quando ocorrer esta hipótese e a entidade bancária que concedeu esse empréstimo quiser aproveitar-se da extensão da garantia, leve ao registo essa menção.
A menção tem de ser concreta. Para ser eficaz, maxime em relação a terceiros, tem de por eles poder ser conhecida e entendida.
Se do registo apenas constar «montante máximo», expressão comum às situações normais e a esta outra, não poderão terceiros ficar a conhecer que se está perante a situação que não a normal, isto é, a hipoteca assegurar o pagamento preferencial de um "aumento máximo previsível".
Na escritura pública lavrada em 87.10.19 foi prevista a capitalização de juros.
Analisando a concreta inscrição da hipoteca, lê-se a seguinte menção: «montante máximo que se prevê venha a atingir o saldo devedor do empréstimo» (a certidão não permite ler o valor na expressão total); «montante máximo» 12936190 escudos» (doc. a fls. 72).
Prevista, na escritura pública, a capitalização de juros e levada essa menção ao registo.
A menção ínsita na inscrição, tal como está redigida, permite conhecer, sem equívocos, estar-se perante um regime especial e identificar qual e suas implicações.

4.- Reclamando, a E indicou ser credora da quantia de 12810550 escudos (7055958 escudos de capital, 5699062 escudos de juros e 55530 escudos de despesas) mas que, em conformidade com o disposto no art. 693 CC, a quantia que reclama é de 8531169 escudos (crédito + juro dos 3 últimos anos + despesas) - fls. 2 e 3.
Face à oposição do exequente, explicitou, na sua resposta, que o capital de 7055958 escudos é o resultado da inclusão de 3055958 escudos, de juros capitalizados, no capital inicial em dívida (fls. 30). O resto, para o montante reclamado, descontado o valor das despesas, representa os juros de 3 anos.
Com o presente recurso, pretende a E que se mantenha a decisão da 1ª instância quer quanto ao montante do seu crédito (8531550 escudos e juros de mora até ao termo do prazo referido no art. 693-2 CC) quer quanto à sua graduação (em primeiro lugar).
Divergem a reclamação (fls. 4) e a sentença (fls. 34) - além de o crédito reclamado ser de valor inferior (8531169 escudos) ao constante da sentença, há a inclusão de juros de mora, o que não foi pedido.
Tendo o acórdão revogado a sentença e reconhecido que o crédito era inferior, deve o STJ, no recurso interposto pela reclamante, conformar a decisão ao pedido, isto é, não pode dar procedência nos termos pedidos nas alegações, mas sim, e porque procedente a reclamação, pondo-a de acordo com o pedido nesta formulado (redução do valor e exclusão do segmento da decisão quanto a juros de mora).
Este o caminho a seguir se, porém, desde já se pudesse concluir que o valor capitalizado é igual ou inferior ao aumento máximo previsível levado a registo. Todavia, e como se referiu, a certidão (a fls. 72) da inscrição não permite que se leia o valor deste na sua expressão total (por deficiência da fotocópia).
A decisão de facto pode e deve ser ampliada (CPC- 729,3).

Termos em que, ao abrigo do disposto no art. 730-1 CPC, se ordena a remessa do processo à Relação para ser de novo julgado se possível pelos mesmos Exº Juízes desembargadores que intervieram no anterior julgamento.
Custas a final.

Lisboa, 6 de Junho de 2000.

Lopes Pinto.
José Saraiva.
Garcia Marques.