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AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
INTERPRETAÇÃO
Sumário
I - Como declaração negocial que é a procuração, tem a mesma que ser interpretada de acordo com as regras contidas nos arts 236.° e 238.° do CC, que consagram, embora de forma mitigada, o princípio da impressão do destinatário. II - O negócio que o apelado celebrou consigo próprio é válido, porque os representados o consentiram especificadamente por procuração irrevogável (artº 261 nº 1 do CC), não se vislumbrando qualquer actuação abusiva do representante, reveladora do sacrifício de interesses dos representados, considerando o fim para o qual a procuração foi emitida.
Texto Integral
-APELAÇÃO Nº 529/06.7 TVPRT.P1
5ª SECÇÃO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I
B………., residente na Rua ………., …, .º Direito, no Porto e C………., residente na Rua ………., .., ………., Vila Nova de Famalicão, por si e na qualidade de sucessores legais (herdeiros) de seus pais, D………. e E………., vieram intentar esta acção declarativa sob a forma ordinária contra F………., cont. nº ………, portador do B.I. nº ……., residente na Rua ………., …-., .º Direito, ………., no Porto, formulando pedido contra o réu nos seguintes termos:
“I- Deve ser decretada a NULIDADE, ou subsidiariamente, a INEXISTÊNCIA, do negócio jurídico de compra e venda constante da escritura pública celebrada em 6 de Outubro de 2003, de fls. 45 a fls. 46, do Livro 49-E, do 1º Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, referente à fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente a um estabelecimento comercial composto de cave e rés-do-chão, com entrada pelo número ..-., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na ………., freguesia de ………., no Porto, descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o artigo 3.330º;
II- Deve ordenar-se o cancelamento de todos” e “quaisquer registos efectuados com base nessa escritura pública, designadamente a inscrição de propriedade feita a favor do aqui R na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto, na descrição predial nº 9.393, a fls. 98/99, do Livro B-28”.
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Para tanto, em resumo e no essencial, alegam os autores que:
Os seus pais, acima identificados e que foram casados sob o regime da separação de bens, faleceram em 27.06.2002 e em 24.07.2005, respectivamente, sendo os autores os seus herdeiros e como tal habilitados (doc. que juntam);
Que em 31.07.1992, por documento assinado apenas pelo seu falecido pai, este prometeu vender ao réu, que prometeu comprar, o imóvel acima identificado;
No dia 14.02.2003, entre o seu falecido pai e o réu foi elaborado um documento, aditamento ao contrato promessa de compra e venda acima referido;
Anteriormente a essa data, em 27.04.2001, os seus pais haviam outorgado ao Réu procuração com poderes especiais para que este procedesse à venda do imóvel, pelo preço que entendesse, podendo fazer negócio consigo mesmo, procuração que declararam ser também “do interesse do mandatário, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo”;
Em 06.10.2003, o réu, fazendo uso desse instrumento, como procurador dos pais dos autores vendeu o referido imóvel e, em seu próprio nome, comprou-o;
Porém, porque nessa data a sua mãe havia já falecido, os autores e o seu pai haviam já efectuado contrato promessa de compra e venda do mesmo imóvel a terceira pessoa, a procuração não poderia ser usada sem o pagamento da totalidade do preço e tudo o mais alegado na sua petição inicial, que se dá por reproduzida, concluem os autores que o negócio jurídico de compra e venda é nulo ou subsidiariamente, inexistente, formulando o pedido acima reproduzido.
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Regularmente citado, o réu contestou alegando, também em resumo e no essencial, que o negócio é válido e eficaz, que desde logo aquando do contrato promessa havia pago a parte do preço acordada e o restante nos prazos ali referidos, tendo a respectiva escritura pública (contrato prometido) sido adiada apenas por interesse seu e a procuração irrevogável que lhe foi conferida, uma forma de garantir a efectiva outorga da escritura de compra e venda.
Concluindo pela validade do negócio, pede a absolvição do pedido formulado pelos autores.
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Os autores responderam à contestação, mantendo, no essencial, o já pugnado na petição inicial.
Foi proferido saneador/sentença que julgou a acção improcedente, por não provada e, consequentemente, foi o réu absolvido dos pedidos.
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Recorreram os Autores, assim concluindo as suas alegações de recurso:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
II
Com relevo para a decisão, são os seguintes os factos considerados pelo tribunal a quo:
a) Os autores B………. e C………., são filhos e herdeiros habilitados de D………., falecida em 27.06.2002, e de E………., falecido no dia 24.07.2005, que eram casados um com o outro sob o regime da separação de bens (docs. de fls. 15 a 21, que se dão por integralmente reproduzidos);
b) Em 31.07.1992, entre o E………., como promitente vendedor, e o réu F………., como promitente comprador, foi outorgado o “contrato-promessa de compra e venda” junto de fls. 37 a 39, que se dá por integralmente reproduzido, mediante o qual o primeiro prometeu vender ao segundo, pelo preço de 8.000.000$00, o imóvel acima identificado, declarando ter recebido nessa data a quantia de 2.000.000$00 a “título de primeira prestação e princípio de pagamento”, sendo o restante a pagar em três prestações iguais, a última delas “no acto da celebração da escritura pública de compra e venda até Dezembro de 1992”;
c) No dia 27.04.2001, no 1º Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, foi lavrado instrumento público mediante o qual E………. e mulher, D………., casados sob o regime de separação de bens, constituíram seu procurador o réu F………., conferindo-lhe, além do mais, “poderes para vender e ou prometer vender, a quem quiser, inclusive a ele próprio mandatário, pelo preço e nas condições que entender por convenientes” a fracção autónoma acima identificada, procuração que “é conferida também no interesse do mandatário, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo” (doc. de fls. 46 a 50, que se dá por integralmente reproduzido);
d) No dia 14.02.2003, entre o E………. e o réu F………., foi elaborado o documento de fls. 40, que se dá por integralmente reproduzido, “aditamento a contrato-promessa de compra e venda”, declarando ambos, que “a escritura pública de compra e venda da referida loja, que deveria ter sido efectuada até Dezembro de 1992, e não foi por razões do único interesse do ora segundo outorgante,” (o réu) “será efectuada em data, hora e local a designar pelo ora primeiro outorgante” (o E……….), bem como declarando que “o segundo outorgante assume a obrigação de pagar todas as despesas respeitantes à loja, designadamente com seguros, despesas de condomínio e contribuição autárquica, vencidas a partir do dia 1 de Janeiro de 1993”;
e) No uso do instrumento (procuração) referido em c), no dia 06.10 2003, o réu F………. outorgou a escritura pública de compra e venda constante de fls. 58 a 61, que se dá por reproduzida na íntegra, declarando que, pelo preço já recebido de 38.903,83 euros, já recebidos, vendia em nome dos representados e comprava em seu próprio nome o referido imóvel (fracção);
f) Dou ainda por integralmente reproduzido o doc. de fls. 23 a 35, certidão do registo predial referente à fracção em causa, tendo a aquisição da mesma em nome do réu sido provisoriamente registada em 09.06.2003, posteriormente convertida em definitiva no dia 13.10.2003.
III
Na consideração de que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações, não podendo este tribunal conhecer das matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC), são as seguintes as questões que importa resolver:
- Da existência de matéria alegada pelos AA., controvertida e relevante, que deve integrar uma base instrutória.
- Da existência de pressupostos de abuso dos poderes de representação e de abuso de direito por parte do Réu, no uso da procuração que lhe foi emitida.
- Da existência de pressupostos da caducidade e ineficácia da procuração.
Entendeu o Tribunal a quo na fase do saneador, que o estado dos autos permitia, sem necessidade de mais provas, conhecer do mérito da causa.
Invocam os apelantes, em alegações de recurso que a matéria dos artºs 42.º a 44.º da P.I. e a matéria alegada em sede de Réplica, não podiam deixar de ser relevadas, pois que contêm factos demonstrativos de que o apelado fez uso da procuração, que foi emitida a seu favor, em “clara e inequívoca contravenção às obrigações que assumiu perante um dos seus representados”, designadamente as plasmadas no “aditamento ao contrato promessa” que as partes celebraram.
Importará assim, apurar se tal matéria traz alguma valia para uma solução plausível do litígio.
A análise da questão deverá ser feita co-relacionadamente com as questões jurídicas que importa conhecer, no enquadramento dos pedidos formulados.
Vejamos.
Os apelantes pedem que seja declarada a nulidade, ou subsidiariamente, a inexistência, do negócio jurídico de compra e venda constante de escritura pública celebrada pelo apelado, em que o mesmo figurou simultaneamente como “procurador dos vendedores”, pais dos apelantes entretanto falecidos e, como “comprador”, de determinada fracção autónoma, desse modo celebrando um negócio consigo próprio. Tal escritura ocorreu em 26.10.2003.
Mais pedem que seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos efectuados com base nessa escritura pública, designadamente a inscrição de propriedade a favor do Réu.
Na celebração dessa escritura o Réu/apelado fez uso dum instrumento público lavrado em 27.04.2001, mediante o qual os pais dos apelantes (E………. e mulher, D……….), constituíram seu procurador o apelado, conferindo-lhe, além do mais, “poderes para vender e ou prometer vender, a quem quiser, inclusive a ele próprio mandatário, pelo preço e nas condições que entender por convenientes” a fracção autónoma acima identificada, procuração que “é conferida também no interesse do mandatário, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo” (doc. de fls. 46 a 50).
Pretendem os apelantes que o uso de tal procuração pelo apelado comporta um abuso de representação e um inequívoco abuso de direito por parte daquele.
Tal abuso de representação, segundo os apelantes, advém do facto de o representante utilizar conscientemente os seus poderes em sentido contrário ao fim ou às indicações do seu representado.
Por sua vez o abuso de direito traduz–se, ainda na opinião dos apelantes, num comportamento que formalmente traduz o exercício de um direito, mas que “não realiza os interesses pessoais de que esse direito é instrumento e nega os interesses sensíveis de outrem”.
Os apelantes requerem, por isso, que se entre em linha de conta, para efeitos de levar ao probatório, com a seguinte matéria alegada nos artºs 42º a 44º da p.i.:
1) Em data concretamente indeterminada mas posterior a 14.02.2003 foi comunicado ao apelado pelo pai dos apelantes (um dos representados na procuração) o propósito de proceder à devolução das quantias recebidas a título de sinal e princípio de pagamento, com referência a um contrato promessa celebrado entre ambos, em que o apelado figurava como promitente comprador e, datado de 31.07.1992 (contrato-promessa esse enunciado sob a alª b) dos factos provados);
2) Essa comunicação visava a resolução desse mesmo contrato promessa;
3) Tendo ainda o apelado tido conhecimento que, com referência à fracção autónoma objecto do contrato-promessa consigo celebrado, tinha sido entretanto celebrado um outro contrato-promessa com terceira pessoa, como promitente compradora.
Pretendem ainda os apelantes que se releve, para efeitos de selecção na base instrutória, a matéria constante da réplica, reportada a pagamentos de contribuição autárquica, seguros, quotizações e demais despesas de condomínio referentes à mesma fracção, despesas essas que o Reú/apelado se comprometeu a pagar, mas que não pagou, e que, no dizer dos apelantes, eram condição da outorga da escritura pública, de acordo com o aditamento ao contrato promessa datado de 14.02.2003 (aditamento esse que consta da alínea d) da matéria de facto assente).
Assim, tendo o pai dos apelantes adiantado esses pagamentos, que ao Réu cabiam, não podia este outorgar a escritura pública de compra e venda sem a correspondente liquidação prévia de tais valores.
Vejamos:
A outorga da escritura pública foi efectuada com base numa procuração de natureza irrevogável emitida em 27.04.2001.
Na data de emissão dessa procuração subsistia um contrato promessa datado de 31.07.1992, celebrado entre o pai dos AA. E………., como promitente vendedor, e o Réu F………., como promitente comprador.
Neste, o primeiro, prometeu vender ao segundo, pelo preço de 8.000.000$00, o imóvel acima identificado, declarando ter recebido nessa data a quantia de 2.000.000$00 a “título de primeira prestação e princípio de pagamento”, sendo o restante a pagar em três prestações iguais, a última delas “no acto da celebração da escritura pública de compra e venda até Dezembro de 1992”, prazo que não foi cumprido.
Nesta procuração, não só o pai dos AA. mas também sua mãe, na qualidade de casados sob o regime de separação de bens, constituíram o Réu seu procurador.
E, conferiram-lhe, além do mais, “poderes para vender e ou prometer vender, a quem quiser, inclusive a ele próprio mandatário, pelo preço e nas condições que entender por convenientes” a fracção autónoma em causa, procuração que “é conferida também no interesse do mandatário, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo”.
Em lado algum a procuração faz menção directa ou indirecta ao contrato promessa celebrado e que antecedeu cerca de nove anos a sua emissão. Antes pelo contrário, dá “carta branca” ao representante para decidir o preço e as condições do negócio, cláusulas que naquele continham previsão.
Por sua vez, enquanto o contrato promessa se mostra outorgado tão somente pelo pai dos AA., comproprietário da fracção, a procuração foi emitida pelo casal, pai e mãe dos AA. que, por força do regime de separação de bens, eram em conjunto os seus comproprietários.
Ora, como declaração negocial que é a procuração, tem a mesma que ser interpretada de acordo com as regras contidas nos arts 236.º e 238.º do CC, que estabelecem critérios para a fixação do alcance ou sentido juridicamente decidido da declaração negocial e consagram, embora de forma mitigada, o princípio da impressão do destinatário.
Prevalecendo, em regra, na interpretação dos negócios jurídicos, a vontade real do declarante sempre que for conhecida do destinatário.
Faltando tal conhecimento, valerá o sentido que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.
Regras que igualmente terão de estar presentes na interpretação das declarações negociais subjacentes ao contrato promessa e seu aditamento.
Ora, no caso, não se mostra estabelecida qualquer relação de dependência entre a procuração e o contrato promessa anterior.
É certo que, já depois de emitida a procuração mas ainda antes de lhe ser dado uso pelo Réu/procurador, o contrato promessa supra referido veio a comportar um aditamento com vista a imputar ao promitente comprador o atraso na realização da escritura e, a responsabilizá-lo pelo pagamento de determinadas despesas, vencidas e vincendas, respeitantes à fracção.
Neste aditamento, porém, não só não se fez depender a celebração da escritura ao pagamento das mesmas, ao contrário do que alegam os apelantes, como não é referida a imposição de qualquer condicionamento ao uso da procuração, o que, de resto, seria de eficácia discutível, atento o seu alcance.
O aditamento não condicionou, pois, a realização do contrato promessa ao pagamento dessas despesas, nem o uso da procuração aos termos do contrato promessa.
Assim, mesmo que se entendesse que a procuração constituiu o instrumento concedido ao promitente comprador para concretizar o contrato prometido, em função de razões de comodidade e facilitismo, para os promitentes-vendedores, que assim evitariam uma deslocação ao cartório notarial, não tem qualquer relevância na eficácia da celebração da escritura o eventual não pagamento pelo Réu/procurador de determinadas despesas alusivas à fracção, estipuladas no aditamento, as quais sempre poderão ser reclamadas em sede própria.
Por outro lado, também não se demonstra que o negócio celebrado haveria de se conter nos limites do preço acordado no contrato promessa.
O que efectivamente até aconteceu, pois que, no contrato promessa o preço estipulado foi de 8.000.000$00, declarando o promitente vendedor, ter recebido na data a quantia de 2.000.000$00, e, o preço fixado pelo procurador na escritura de compra e venda foi de 38.903,83, valor não muito diferente.
Assim, ainda que tal não constituísse uma imposição, o representante não se afastou das indicações dos representados, quanto ao preço.
Cremos, pois que, recorrendo à letra do negócio, à finalidade prática visada pelas partes, ao próprio tipo negocial em causa, o apelado podia fazer uso da procuração independentemente do clausulado no contrato promessa e seu aditamento, não estando condicionado, nomeadamente, pelo cumprimento antecipado das despesas a que se comprometera no aditamento ao contrato-promessa de 1992.
Subsiste a questão de saber, qual a relevância na eficácia da escritura, do conhecimento pelo procurador de que a vontade dos representados era agora a de que não devia ser feito uso da procuração, porque pretendiam vender a fracção a terceira pessoa.
Constituirá a celebração da escritura, celebrada com conhecimento dessa oposição, um abuso de representação ou, um abuso de direito?
Foi com base na emissão de uma procuração com determinado alcance e eficácia que o apelado celebrou o auto-contrato ou negócio consigo mesmo.
Tal procuração tem determinado alcance e características que importa analisar.
Resulta do seu texto que foram conferidos ao procurador “poderes para vender e ou prometer vender, a quem quiser, inclusive a ele próprio mandatário, pelo preço e nas condições que entender por convenientes” a fracção autónoma em causa, procuração que “é conferida também no interesse do mandatário, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo”.
Dispõe o artigo 262º do CC que:
«1- Diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente poderes representativos».
O artº 265º, por sua vez, estipula que:
«1- A procuração extingue-se quando o procurador a ela renuncia, ou quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, excepto se outra for, neste caso, a vontade do representado.
2 - A procuração é livremente revogável pelo representado, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação.
3 - Mas, se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa».
Ora, tendo a procuração sido conferida também no interesse do procurador, a falta de alegação e prova por parte dos representados de que o representante deu acordo à revogação, (revogação essa que igualmente não se prova, pois que o conhecimento por parte do representante de que a intenção dos representados agora é outra, não basta para consubstanciar tal figura, sendo necessário, o acto declaratório), ou que existe justa causa para a revogar, não permite se considere revogada a procuração.
De resto, o facto de os representados, terem, entretanto, outorgado outro contrato promessa de compra e venda com terceira pessoa, não constituindo justa causa imputável ao procurador, poderá antes constituir os apelantes como contraentes faltosos face ao procurador, a quem tinha sido outorgada procuração para poder proceder à venda, inclusive a si próprio.
Consideramos, assim, que o representante não agiu contra os interesses dos representados ou contra as instruções dadas por estes. Tais interesses é que se alteraram por razões estranhas ao procurador ou ao fim ajustado com a procuração, demonstrativas duma incoerência negocial, que não pode penalizá-lo.
Assim, o negócio que o apelado celebrou consigo próprio é válido, porque os representados o consentiram especificadamente por procuração irrevogável (artºs 261 nº1 do CC), não se vislumbrando qualquer actuação abusiva do representante, reveladora do sacrifício de interesses dos representados, considerando o fim para o qual a procuração foi emitida.
Retomando a questão da falta de selecção da matéria de facto acusada, importa concluir que ela é de todo irrelevante para a apreciação do litígio, pois que, ainda que provada, não influenciaria a sua resolução (caso do conhecimento da intenção actual dos representados no sentido de venderem a casa a terceiros, ou das despesas assumidas pelo promitente comprador, mas não como condição do negócio).
Finalmente importa apreciar qual a relevância que a morte de um dos representados tem na validade e eficácia da procuração e, se revela alguma consistência a alegação de que um dos representados padecia de determinada incapacidade e vícios na data em que outorgou a referida procuração.
Pretendem os apelantes que é nula a venda celebrada após o óbito do representado, por força do disposto nos arts. 68.º (termo da personalidade) e 262.º (procuração) do CC.
Mas não têm razão, considerando o regime legal aplicável.
De acordo com o disposto no art. 1178º nº1 CC, se o mandatário for representante, por ter recebido poderes para agir em nome do mandante, é aplicável ao mandato o disposto nos arts. 258º segs. CC.
Assim, o lado do mandato, que impõe ao mandatário a obrigação de celebrar um acto por conta do mandante, existe a procuração, que, uma vez aceite obriga o mandatário-procurador, em princípio, a celebrar o acto em nome daquele. Nestes casos, a que se pode chamar mandato representativo, são de aplicar as disposições do mandato, e são de aplicar também as disposições relativas à representação. São pois, de aplicar conjuntamente as normas dos dois institutos e não apenas as do mandato (art. 1178º/1 CC).
Para que funcione o mecanismo da representação é mister, que o agente tenha sido investido na qualidade de representante, através do conferimento de poderes de representação, o qual se processa através da procuração. Mas é também necessário que o agente, titular do poder actue, invocando o nome do representado.
Ora, dispõe o art. 1175 do Código Civil que, a morte, interdição ou inabilitação do mandante, não faz caducar o mandato quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário.
É precisamente o caso dos presentes autos, em que a procuração foi “conferida também no interesse do mandatário” e, portanto, não caducou com o falecimento da mandante.[1]
Desse modo o óbito do mandante ou representado não conduz à caducidade do mandato.
Finalmente, alegam ainda os apelantes que, não foi considerada a sua alegação na p.i. da incapacidade e vícios que inquinavam a vontade da D. D………. na data em que outorgou a referida procuração, pretendendo com isso demonstrar que a sua vontade teria sido viciada.
Efectivamente mostra-se alegado na p.i. que: “a procuração foi outorgada numa altura em que a esposa do Sr. E………., Dª D………., já se encontrava num debilitado estado de saúde; tendo imensas dificuldades em locomover-se pelos seus próprios meios; aliás na data da outorga dessa procuração, a Dª D………. já se encontrava afectada na sua capacidade de entender e querer; designadamente em virtude de já nessa data apresentar sintomas indicativos de que padecia doença de Alzheimer”.
Como bem ponderou o Tribunal a quo, “os AA. não alegam qual o grau de afectação da sua mãe, à data dos factos. Com efeito, poderia a mãe dos autores, àquela data, sofrer de doença que afectasse a sua capacidade de entendimento, mas desconhece-se (por falta de concretização dos factos), em que medida e se tal seria ou não suficiente para afectar o seu juízo sobre o acto praticado (permitimo-nos aqui reproduzir, por adequado, o que se disse na sentença do processo nº 1842/04 – cfr. fls. 293: a mera insinuação de que estaria afectada na sua razão ou vontade, não vale como forma de abalar a validade da procuração)».
A que acrescentamos que se estranha tal alegação, considerando que a procuração foi igualmente emitida pelo representado marido que, na defesa dos interesses de ambos, teria a obrigação de impedir tal efeito limitador da capacidade de decisão.
Em conclusão, a matéria alegada relativa a uma eventual incapacidade de entender e querer por parte da representada D………. é manifestamente insuficiente para conduzir à pretensão dos apelantes.
Improcedem, pois, na totalidade as questões do recurso.
IV
Termos em que, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Porto, 22 de Novembro de 2010
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Rui António Correia Moura
Cristina Maria Nunes Soares Tavares Coelho
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[1] Nesse sentido, Ac. STJ, P. 97A140, (Lopes Pinto), Data do Acórdão: 03-06-1997, in www.dgsi.pt
Sumário: I - O mandato estabelecido no interesse comum do mandante e do mandatário não caduca com a morte do mandante (artigos 1175, 1170 n. 2 e 265 n. 3 do CCIV66).
II - Para haver mandato no interesse comum é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa (v.g. um contrato-promessa válido), i.é., que o mandante queira vincular-se a uma prestação a que mandatário ou terceiro têm direito.