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ERRO NA FORMA DO PROCESSO
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário
I - A distribuição é um meio de divisão interna do trabalho. II - Há erro quando o processo se distribui em espécie diferente daquela em que deveria distribuir-se. III - A irregularidade consiste na infracção de qualquer das regras reguladoras da distribuição e não gera nulidade. IV - Ao distribuidor não cabe, formular qualquer juízo de competência do tribunal, pelo que não pode deixar de fazer a distribuição do processo.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. A 9.9.99, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, A, e B, intentaram acção declarativa de condenação com processo ordinário contra C, pedindo que seja:
- anulada a denominação social da ré;
- decretado o cancelamento dos registos relativos a essa denominação, no R.N.P.C. e Conservatória do Registo Comercial de Lisboa - 4ª Secção;
- condenada a ré a alterar a sua denominação social e a abster-se de utilizar a expressão "C" ou qualquer outra que contenha a designação "...", em publicidade, correspondência ou qualquer outro meio para assinalar os seus produtos ou serviços;
- condenada a pagar às autoras indemnização, a apurar em execução de sentença, por danos patrimoniais e morais, esta nunca inferior a 5.000.000$00;
- condenada a restituir às autoras a quantia em igual valor ao montante com que injustamente se locupletou, a liquidar em execução de sentença.
A ré contestou, defendendo-se por impugnação e concluindo por pedir a sua absolvição de todos os pedidos.
As autoras ofereceram réplica (fls. 295-310).
2. No despacho saneador, a 14.07.2000, julgou-se o tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da presente acção e, em consequência, absolveu-se a ré da instância (fls. 340).
Interpuseram as autoras recurso de agravo, a que o Tribunal da Relação de Lisboa, embora "por razões totalmente distintas das expostas pelo tribunal de 1ª instância", negou provimento, decidindo:
- julgar incompetente em razão da matéria o tribunal cível de Lisboa para conhecimento da presente acção;
- julgar competente o tribunal de comércio para dela conhecer (acórdão de 10.05.2001 - fls. 385).
3. Continuando inconformadas, interpuseram recurso de agravo para este Supremo Tribunal, oferecendo alegações de que extraíram as seguintes conclusões:
"1ª A consequência retirada pelo Tribunal da Relação de Lisboa quanto à incompetência do Tribunal Cível de Lisboa não implicava, como sucedeu, a absolvição da Ré da Instância;
2ª Tendo a acção intentada pelas ora Agravantes dado entrada no Tribunal Cível de Lisboa em 9 de Setembro de 1999 e, ao abrigo do disposto no artigo 72º, nº 4, do Decreto-Lei nº 186-A, de 31 de Maio (que regulamentou a referida Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro), só em 15 de Setembro de 1999 entraram em funcionamento os Tribunais de Comércio para a efectivação da sua competência, designadamente, em matérias relativas a direitos de Propriedade Industrial, verifica-se que houve um erro na distribuição;
3ª A acção devia ter sido distribuída ao Tribunal de Comércio de Lisboa, por efeito da aplicação, nesse momento da distribuição, do artigo 72º, nº 4, do Decreto-Lei nº 186-A, de 31 de Maio ;
4ª Tal como refere o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Processo nº 2526/00- 8ª Secção "tendo (o recurso de marca) sido distribuído pelos Juízos Cíveis (da Comarca de Lisboa), ocorreu erro de distribuição e não excepção de incompetência em razão da matéria, pelo que não deve o recurso ser indeferido liminarmente, mas deve ser mandado remeter ao referido Tribunal de Comércio, nos termos do artigo 210º, nº 1, do CPC";
5ª No caso sub judice, onde ocorreram, precisamente, factos como os atrás referidos, também a acção judicial intentada pelas Agravantes foi incorrectamente distribuída ao 13° Juízo Cível da Comarca de Lisboa (actual 13ª Vara Cível);
6ª O douto Acórdão recorrido, ao julgar procedente a excepção da incompetência material desse Tribunal, absolvendo a Ré da instância, acaba por não ter em consideração que, tendo havido erro na distribuição, a acção deveria ter sido distribuída ao Tribunal de Comércio de Lisboa;
7ª Salvo o devido respeito, o douto Acórdão recorrido não verificou que existiu uma irregularidade na distribuição da acção judicial em causa o que permitiria, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 210º do C.P.C., a remessa dos autos ao Tribunal de Comércio de Lisboa para a competente distribuição e o seu consequente prosseguimento;
8ª O vício da irregularidade na distribuição pode ser oficiosamente suprido (1) pelo Tribunal, conforme consta, expressamente, da previsão do nº 1 do artigo 210º do C.PC;
9ª Tendo havido erro na distribuição e existindo a possibilidade legal, através da competente distribuição, do prosseguimento dos autos no Tribunal competente, entendem as ora Agravantes que os mesmos devem ser remetidos ao Tribunal de Comércio de Lisboa para esse efeito".
Não foi oferecida resposta.
Neste Supremo Tribunal o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer (fls. 410-415).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
A questão nuclear que vem suscitada, e importa decidir, traduz-se em saber se houve irregularidade da distribuição (2) .Questão que, no caso, se prende com a entrada em vigor da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.
Vejamos então.
1. Prevendo o artigo 78º desta Lei a possibilidade de criação de tribunais de competência especializada, entre eles, os tribunais de comércio (alínea e)), veio o artigo 89º dispor, no nº 1, que "compete aos tribunais de comércio preparar e julgar (3) :
- "As acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial" (alínea f));
- "as acções de nulidade e de anulação previstas no Código da Propriedade Industrial" (alínea h) (4) .
1.1. Em cumprimento do preceituado no nº 1 do artigo 151º da Lei, foi publicado, a 31 de Maio, o Decreto-Lei nº 186-A/99, diploma que, produzindo efeitos no dia imediato ao da sua publicação (artigo 75º), implicou a entrada em vigor, também no mesmo dia 1 de Junho, da Lei que regulamentou, conforme o nº 2 daquele artigo 151º.
Pelo referido Decreto-Lei foi criado, como juízo de competência especializada, o 3º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa (alínea f) do artigo 46º), figurando no mapa VI anexo o "Tribunal de Comércio de Lisboa", com sede em Lisboa e composição de 3 juízos (5) .
1.2. Em breve parêntesis, procure-se uma explicação para esta referência a 3º Juízo e 3 Juízos.
Explicação que vamos encontrar, se bem pensamos, na norma do nº 1 do artigo 137º da citada Lei nº 3/99, ao estabelecer que
"os tribunais de recuperação da empresa e de falência passam a designar-se tribunais de comércio, com a competência referida no artigo 89º".
Temos, assim, 2 Juízos do Tribunal de Comércio de Lisboa que resultam da nova designação dos (anteriores) tribunais de recuperação da empresa e de falência - recorde-se que, nos termos do artigo 3º do DL nº 40/97, de 6 de Fevereiro, "o Tribunal de Recuperação da Empresa e de Falência de Lisboa é composto por dois juízos" -, a que acresce o 3º Juízo criado (novo, portanto) pela citada alínea f) do artigo 46º do Decreto-Lei.
1.3. Fechado o parêntesis, prossiga-se salientando que, tendo o artigo 72º, nº 1, do diploma regulamentar estabelecido que
"os tribunais, varas ou juízos criados pelo presente diploma entram em funcionamento na data em que for determinada a respectiva instalação, por portaria do Ministério da Justiça",
veio a Portaria nº 412-B/99, de 7 de Junho, em conformidade com a norma acabada de citar, "mandar...que sejam declarados instalados, a partir de 15 de Setembro de 1999", vários tribunais, varas e juízos, entre os quais o 3º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa.
2. Para completar o quadro legal sobre o qual importa reflectir, pois dele há-de fluir a resposta para a questão equacionada, indispensável se torna completá-lo com alguns preceitos do CPC.
A saber.
Segundo o artigo 209º do CPC:
"É pela distribuição que, a fim de repartir com igualdade o serviço do tribunal, se designa a secção e a vara ou juízo em que o processo há-de correr ou o juiz que há-de exercer as funções de relator",
acrescentando o nº 1 do artigo 210º:
"A falta ou irregularidade da distribuição não produz nulidade de nenhum acto do processo, mas pode ser reclamada por qualquer interessado ou suprida oficiosamente até à decisão final".
Estabelece, por seu turno, o artigo 220º:
"O erro da distribuição é corrigido pela forma seguinte:
a) Quando afecte a designação do juiz, nas comarcas em que haja mais do que um, faz-se nova distribuição e dá-se baixa da anterior;
b) Nos outros casos, o processo continua a correr na mesma secção, carregando-se na espécie competente e descarregando-se da espécie em que estava".
2.1. Como é bom de ver, o transcrito artigo 209º assinala à distribuição a tripla função de designar;
- a secção em que o processo há-de correr;
- a vara ou juízo a que o processo há-de ser afecto;
- o juiz que há-de exercer as funções de relator.
Ensina Alberto dos Reis, "CPC Anotado", vol. I, 1948, p. 321, que "o papel geral da distribuição é este: meio de divisão interna do trabalho".
"A circunstância de haver tribunais cuja secretaria comporta mais de uma secção de processos, comarcas onde há mais de um juiz e tribunais de recurso de composição colegial torna necessário dividir, por igual, o trabalho que compete a cada um desses órgãos, de modo a que não fiquem uns mais sobrecarregados do que outros. É pela distribuição que se opera essa divisão" (Jacinto Rodrigues Bastos, "Notas ao CPC", vol. I, 3ª ed., 1999, p. 272).
A distribuição tem como finalidade assegurar não só que o serviço do tribunal é repartido com igualdade, mas também a aleatoriedade na determinação do juiz do processo, conforme o nº 1 do artigo 209º-A (cfr. José Lebre de Freitas, "CPC Anotado", vol. I, 1999, p. 360).
Havendo vários juízos, secções, varas, dentro do mesmo tribunal, os processos hão-se ser distribuídos equitativamente pelos diversos juízos, varas, secções desse tribunal (Anselmo de Castro, "Direito Processual Civil", vol. III, p. 197).
2.2. A lei distingue entre falta, irregularidade e erro da distribuição.
A distribuição fez-se, mas pode estar viciada por irregularidade ou erro.
Há erro, quando o processo se distribui em espécie diferente daquela em que deveria distribuir-se.
A irregularidade consiste na infracção de qualquer das regras reguladoras da distribuição, abrangendo, assim, o erro a que se refere o artigo 220º (Jacinto Rodrigues Bastos, loc. cit., p. 273).
A irregularidade da distribuição "não afecta o efeito dos actos posteriores praticados à data da reclamação ou suprimento oficioso do vício", restringindo-se o seu efeito "aos actos ainda não praticados e sem pôr em causa a eficácia dos actos anteriores" (José Lebre de Freitas, loc. cit., pp. 361-362).
Segundo o artigo 210º, a irregularidade da distribuição não produz nulidade de nenhum do acto do processo (6), mas pode ser reclamada por qualquer interessado ou suprida oficiosamente até à decisão final (7) .
3. Do que vem de recensear-se, no plano do quadro legal que rege a matéria e sua interpretação, flui com alguma clareza que, no caso em apreço, não houve irregularidade - muito menos erro - da distribuição.
Na verdade, o distribuidor confrontou-se com uma "acção declarativa de condenação, com processo ordinário", cuja petição inicial as autoras endereçaram ao Senhor "Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa".
Deu ela entrada na "Secretaria Geral Comum de Lisboa" (8) em 9.9.99 e, na "Secretaria Geral - Comarca de Lisboa, Processos de Varas", foi distribuída, a 16.9.99, sob a espécie 1ª, "ac. ordinária (9), Juz: 13, Sec: 3" (10) (cfr. fls. 2).
Afigura-se que nenhuma irregularidade foi cometida.
A distribuição é feita sob a presidência do juiz da comarca ou de turno, sendo o distribuidor auxiliado pelos funcionários da secretaria que o juiz designar (nº 1 do artigo 214º).
Qualificada que foi a acção como declarativa de condenação com processo ordinário, e vindo dirigida ao juiz do tribunal judicial, no caso em análise o distribuidor andou bem ao proceder à distribuição nos termos apontados (11) .
Na verdade, pensa-se que a ele não cabe formular um qualquer juízo de competência nos termos da lei do processo - a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território.
Ou seja, não podia o funcionário - ainda que entendesse que o tribunal competente para a acção era, em razão da matéria, um tribunal de competência especializada, no caso, o tribunal de comércio - deixar de fazer a distribuição, e submeter o processo à distribuição pelos tribunais de comércio (12) .
A ele cumpre, no essencial, a averiguação de aspectos de forma, externos (13) - por exemplo, a que tribunal a petição vem dirigida, distribuindo-a segundo a espécie, sem que possa "imiscuir-se" em questões que acabam por relevar da competência do tribunal.
3. Face a todo o exposto, concluímos que não ocorreu qualquer irregularidade, ou erro, da distribuição.
Pelo que improcedem as conclusões das agravantes.
Agravantes que não suscitam qualquer dúvida quanto à incompetência dos tribunais cíveis, ou, noutra vertente, quanto à competência dos tribunais de comércio para conhecer da presente acção.
Ao invés, essa decisão do acórdão recorrido é por elas expressamente aceite nas suas alegações de recurso (cfr. fls. 393) (14) .
Decisão que decorre, também, do excurso legal oportunamente efectuado.
Na verdade, da conjugação do disposto nos artigos 89º, nº 1, alíneas f) e h), da Lei nº 3/99, 46º, alínea f) e 72º, nº 1 (15) , do DL nº 186-A/99 e Portaria nº 412-B/99, resulta claro que, à data da distribuição - 16.9.99 -, a competência para a acção era dos tribunais de comércio (16) .
Termos em que, pelos fundamentos expostos, se nega provimento ao agravo e confirma o acórdão recorrido.
Custas pelas agravantes.
Lisboa, 29 de Janeiro de 2002
Ferreira Ramos
Lemos Triunfante
Reis Figueira.
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(1) Por lapso, escreveu-se "suprimido".
(2) As recorrentes falam indistintamente em erro (conclusões 2ª. 6ª e 9ª) e irregularidade (conclusões 7ª e 8ª) - conceitos que a lei diferencia, como adiante melhor se verá.
(3) Segundo o artigo 67º do CPC, "as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada".
(4) Cfr. Declaração de Rectificação nº 7/99, no DR, I série-A, nº 39, de 16.2.99.
(5) Cfr. página 3110-(56) do respectivo Diário da República.
(6) Segundo Alberto dos Reis, "Comentário ao CPC", vol. II, 1945, p. 529, a ideia fundamental em que se inspira esta norma é que da irregularidade da distribuição não deve resultar "anulação" de coisa alguma.
(7) Da conjugação dos vários preceitos parece resultar, se bem os interpretamos, que esta decisão final seja a proferida no tribunal em que o vício foi cometido, momento até ao qual será possível o seu conhecimento oficioso.
É o entendimento que parece decorrer, nomeadamente, da função que a lei assinala à distribuição, bem assim da finalidade que visa; aliás, há disposições específicas para a distribuição nos tribunais superiores (cfr. artigos 223º e ss.), sem esquecer que pressuposto da distribuição é a existência de vários juízos, secções, varas dentro do mesmo tribunal.
(8) À data da entrada em vigor da Lei nº 3/99 existiam em Lisboa, para além da Secretaria Geral Comum, uma Secretaria Geral dos Tribunais do Trabalho e uma Secretaria Geral de instrução criminal.
(9) Conforme artigo 222º, 1ª, do CPC.
(10) A fls. 122 figura, no papel timbrado, "13º Juízo", e a partir de fls. 293 "13ª Vara".
(11) Com a eventual ressalva de dever ser Vara, e não Juízo - aspecto, porém, que a análise de fls. 2 não permite destrinçar com segurança.
(12) Tanto mais que "aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais" - artigo 94º da Lei nº 3/99.
(13) Refira-se que, nos termos do nº 1 do artigo 213º, "nenhum papel é admitido à distribuição sem que contenha todos os requisitos externos exigidos por lei".
(14) Diga-se que as recorrentes não lançaram mão da faculdade prevista no nº 2 do artigo 105º do CPC.
(15) É esta norma do nº 1 a ter em consideração (cfr. ponto 1.3), e não, como as recorrentes indicam nas conclusões 2ª e 3ª, a do nº 4 do mesmo artigo 72º, em cujo elenco não figura tribunal de comércio algum.
(16) Não se esquece que a competência se fixa no momento em que a acção se propõe (artigo 22º da Lei nº 3/99). Porém, entendemos que, no caso, se verifica a primeira das excepções previstas no nº 2 do referido artigo 22º.
Os acórdãos do STJ de 27.03.2001 e 19.04.2001, Processos nº 556/01 e nº 658/01, respectivamente, debruçaram-se sobre situações com alguma proximidade da dos autos.