Sumário

Texto Integral

Acordam do Supremo Tribunal de Justiça

I
1.1.
O Tribunal Colectivo do 1° Juízo de Lagos Proc. Comum 642/99-1°JL, julgou, sob acusação do Ministério Público, A.... e B...., ambos com os sinais nos autos, da seguinte imputação:
ao 1 ° arguido, a prática de um crime de tráfico de menor gravidade do art. 25°, al. a) do DL 15/93, de 22/1, um crime de consumo de estupefacientes do art. 40.°, n.° 1 do mesmo diploma e um crime de receptação do art. 231 °, n° 1 do C. Penal;
ao 2° arguido, a prática de um crime de tráfico de menor gravidade, do art. 25°, al. a) do DL 15/93, de 22/1, um crime de consumo de estupefacientes do art. 40.°, n.° 1 do mesmo diploma legal e uma contra-ordenação ao disposto no art. 81.°, n.° 1 do C. Estrada, punida nos termos do n° 5 do mesmo preceito.
1.2.
E, por acórdão de 25 de Janeiro de 2001, o mesmo Tribunal, decidiu:
a) julgar a douta acusação pública parcialmente improcedente, por não provada, absolvendo o arguido A.... do crime de receptação cuja autoria lhe vinha imputada;
b) julgar a mesma peça procedente, no restante, e em consequência,
c) condenar o arguido A....:
c. l.) como autor de um crime de tráfico de menor gravidade p.p. pelo art. 25.º , al. a) do DL 15/93, de 22/1, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
c.2.) como autor de um crime de consumo de estupefacientes p.p. pelo n.° 1 do art. 40° do mesmo diploma, na pena de 25 dias de multa à razão diária de 700 escudos, no montante de 17500 escudos a que correspondem, sendo caso disso, 16 dias de prisão subsidiária;
d) condenar o arguido B....:
d. l.) como autor de um crime de tráfico de menor gravidade p.p. pelo art. 25.º, al. a) do DL 15/93, de 22/1, na pena de 18 meses de prisão;
d. 2.) como autor de um crime de consumo de estupefacientes p.p. pelo n.° 1 do art. 40.° do mesmo diploma, na pena de 20 dias de multa à razão diária de 700 escudos, no montante de 14000 escudos a que correspondem, sendo caso disso, 13 dias de prisão subsidiária;
d. 3.) como autor de uma contra-ordenação ao art. 81.°, n.° 1 do C. Estrada. na coima de 50000 escudos, a que acresce a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 4 meses;
e) declarar suspensa na sua execução, pelo período de 4 (quatro) anos a pena de prisão imposta ao arguido A....;
f) declarar suspensa na sua execução, pelo período de 3 (três) anos a pena de prisão imposta ao arguido B....;
g) ordenar que se entreguem ao arguido A...., logo que por ele pedidos e sem prejuízo do seu perdimento a favor do Estado, se não reclamados nos 3 meses subsequentes ao trânsito desta decisão, os 81500 escudos, o anel em ouro e o telemóvel apreendidos nos autos;
h) declarar perdidos a favor do Estado o veículo automóvel de matrícula MM e os canivetes apreendidos;
1.3.
Para tanto, partiu aquele Tribunal da seguinte factualidade:
Factos provados:
1. No dia 7 de Dezembro de 1999, os arguidos dirigiram-se ao bairro do Casal Ventoso, em Lisboa, no veículo automóvel de matrícula MM, propriedade do segundo arguido, onde o arguido A....., com o conhecimento do arguido B....., adquiriu cerca de 4 gramas de um pó acastanhado que ele supunha ser heroína, pela quantia de 30000 escudos.
2. Tal produto acastanhado que foi comprado com o dinheiro do arguido A....., destinava-o tal arguido quer ao seu consumo pessoal, quer à cedência ao arguido B, para consumo deste.
3. No regresso a Lagos, os arguidos pararam nas proximidades de Grândola, onde ambos consumiram uma pequena porção do produto que haviam comprado, tendo o arguido B...... a partir dessa localidade e até Lagos conduzido o veículo automóvel em que se faziam transportar.
4. Chegados a Lagos, após estacionarem o veículo junto ao Mercado Municipal de Santo Amaro, os arguidos foram abordados por agentes da Polícia de Segurança Pública que apreenderam ao arguido B um pequeno saco contendo um produto que, submetido a exame laboratorial pelo LPC da PJ, se constatou tratar-se de heroína com o peso líquido de 0,175 gramas e ao arguido A....., guardados no porta luvas do carro, 10 pequenos sacos contendo um produto que, submetido a idêntico exame, se constatou tratar-se de heroína, com o peso líquido de 3,604 gramas.
5. Além disso, a PSP apreendeu ao arguido B..... uma pequena porção de um produto acastanhado que, submetido a exame laboratorial pelo LPC da PJ se constatou tratar-se de canabis, com o peso líquido de 1,302 gramas.
6. Tal produto estupefaciente destinava-o o arguido ao seu consumo pessoal e havia-lhe sido oferecido.
7. Também na posse do arguido A...., a PSP encontrou um anel em ouro com um diamante, no valor de 280000 escudos, que o mesmo havia adquirido dias antes, pela quantia de 5000 escudos, a C......
8. Ao mesmo arguido A.... foi apreendida a quantia de 81500 escudos - dividida em 7 notas de 5000 escudos, 11 notas de 2000 escudos, 23 notas de 1000 escudos e 3 notas de 500 escudos.
9. A PSP apreendeu ainda aos arguidos dois canivetes que possuíam resíduos de heroína e se encontravam no interior do veículo automóvel.
10. Ambos os arguidos agiram de forma deliberada, livre e consciente.
11. Conheciam a natureza e as características dos produtos que detinham, consumiram e transportaram, bem sabendo que o consumo, detenção e transporte desses produtos é proibida e punida por lei.
12. Os arguidos prestaram declarações com interesse para a descoberta da verdade.
13. O arguido A...... tem duas condenações anteriores aos factos dos autos por consumo de estupefacientes e outra em 2 anos e meio de prisão por roubo. Por vezes trabalha com o pai, numa oficina de reparação de automóveis. Vive só e tem, como habilitações literárias, o 6° ano de escolaridade.
14. O arguido B..... é primário. Tem, como habilitações literárias, o 6° ano de escolaridade. Está internado, neste momento, no "Desafio Jovem", em Castanheira do Ribatejo, num processo de abandono do consumo de estupefacientes.
Não se provaram os demais factos constantes da acusação e, designadamente:
que o arguido B..... tenha adquirido parte das quatro gramas de heroína referidas nos autos e que tenha contribuído com qualquer quantia para tal aquisição;
que tal produto se destinasse à venda a terceiros consumidores que procurassem os arguidos;
que a heroína e a canabis tivessem os pesos líquidos constantes da acusação;
que C..... tenha entrado na posse do anel apreendido nos autos por forma ilícita;
que parte do dinheiro apreendido ao arguido A...... fosse proveniente da venda de estupefacientes;
que o arguido A....... já houvesse vendido e cedido produtos estupefacientes a outros consumidores de Lagos, nomeadamente e pelo menos uma vez, uma pequena porção de heroína a D....., pela quantia de 4000 escudos;
que o arguido A..... soubesse que o anel em ouro que lhe havia sido vendido pelo C..... tinha proveniência ilícita e o tivesse adquirido com o intuito de obter vantagem patrimonial indevida, sabendo ser proibida tal conduta.

II
2.1.
Inconformado, o arguido B.... recorreu da decisão condenatória, concluindo na sua motivação, que dirige a este Supremo Tribunal de Justiça, e em que requer a produção de alegações escritas:
I Constituem requisitos da perda de veículos a favor do Estado, ter o veículo servido ou estar destinado à prática da infracção e pôr em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública ou oferecer sério risco de ser utilizado no cometimento de novos factos ilícitos.
II - Nada consta da factualidade apurada que permita concluir que o veículo do arguido ora recorrente tenha sido utilizado para a prática da infracção, não bastando para esse efeito, ter sido o veículo por ele utilizado para ir e voltar de Lisboa onde adquiriu droga.
III - Também nada consta da factualidade apurada que permita concluir que o veículo em causa ponha em risco a segurança das pessoas ou a ordem pública ou ofereça sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos crimes.
IV - Trata-se do veículo do arguido ora recorrente onde este normalmente se desloca.
V - Entende-se assim que o aliás douto acórdão em apreço violou a Lei em virtude de não ter matéria de facto suficientemente apurada para decidir a perda do veículo, como também se a decidiu com base na apurada esta por si não era adequada para a perda do veículo.
VI - Disposições violadas: artigos 410.º, n.º 1, al. a) e 375.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 109.º, n.º 1 do Código Penal.
2.2.
Respondeu o Ex.mo Procurador da República que, concluiu:
1.º Como resulta dos factos provados o recorrente conjuntamente com outro arguido utilizou o veículo MM para conjuntamente se deslocarem ao Bairro do Casal Ventoso em Lisboa para adquirirem 4 gramas de heroína que veio a ser apreendida pela P.S.P. em lagos, parte dela no porta luvas do veículo e na posse do recorrente foi encontrada cannabis, servindo assim o veículo para transporte do produto estupefaciente.
2.º O recorrente foi condenado como autor de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25.º, al. a) do DL n.º 15/93 de 22.1 na pena de 18 meses de prisão.
3.º As motivações apresentadas pelo recorrente não tiveram em conta a nova redacção dada ao art. 35.º do DL n.º 15/93 pela Lei n.º 45/96 de 3.9, pelo que não procedem os fundamentos do recurso.
4.º A actual redacção do art. 35.º, que se refere supra veio eliminar as exigências para o perdimento dos objectos a favor do Estado no domínio das infracções à lei da droga, já que deixou de ser necessário que os objectos representem qualquer perigo para a segurança das pessoas ou da ordem pública ou que representem riscos de utilização no cometimento de factos ilícitos típicos.
5.º Basta agora para decretar o perdimento dos objectos a favor do Estado que os mesmos tenham sido utilizados na prática das infracções previstas no DL 15/93 o que aconteceu como se refere nas conclusões 1ª e 2ª que o recorrente aceitou.
5.º Não houve violação de qualquer disposição legal.
2.3.
Subidos os autos à Relação de Évora, este Tribunal Superior, por acórdão de 20 de Novembro de 2001, declarou-se incompetente para conhecer do recurso e «ordenar a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça por ser o competente para dele conhecer».
Para tanto considerou que o recurso visa somente matéria de direito, não tendo a invocação do vício da al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP qualquer tradução na motivação.
III
Neste Supremo Tribunal de Justiça a Ex.ma Procuradora-Geral Ajunta promoveu o prosseguimento do processo, com a fixação de prazo para produção de alegações escritas.
Foi assinalado prazo para essa produção e no respectivo despacho o relator indicou como questões a abordar, além das resultantes da motivação, a aplicação da lei no tempo quanto à punição do consumo e o princípio da proporcionalidade nas reacções criminais.
3.1.
A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta formulou nelas as seguintes conclusões:
1° - Não reclamando censura o decidido no douto aresto impugnado relativamente à decretada perda a favor do Estado do veículo automóvel com a matrícula MM;
2.º - Uma vez que, por via da alteração introduzida ao art. 35.º do Dec.-Lei n.º 15/93 de 22.01 pela Lei n.º 45/96 de 03.09, a perda de objectos que tenham servido ou estejam destinados a servir para a prática de infracções previstas no mesmo diploma deixou de ficar dependente do perigo ou risco sério de serem utilizados para o cometimento de novos factos lícitos;
3.º - O que vale dizer que, ora e para o apontado fim (perda de objectos do crime) exigível é tão só a existência do indispensável nexo de instrumentalidade entre a utilização do objecto e a prática do crime;
4.° - Nexo de instrumentalidade este que, no caso em apreciação, mostra-se por demais estabelecido em sede de motivação de facto e de direito;
5.º - A conduta havida pelo arguido e aqui recorrente B.... e que levou à sua condenação pelo crime de consumo de estupefacientes p. p. pelo art. 40.º do Dec.-Lei n.º 15/93 de 22.01 foi objecto de descriminalização nos termos do art. 29.º da Lei n.º 30/2000 de 29.11, que entrou em vigor em 01.07.01;
6.º - descriminalização esta que, conquanto haja de ser tida em conta face ao disposto no art. 2.º n.º 2 do Código Penal, não imporá porém a punição daquela concreta conduta do agente à luz da lei nova, nesta oportunidade e pelo Supremo Tribunal de Justiça;
7.º - Já que, tendo a aludida Lei n.º 30/2000 de 29.11 estabelecido um complexo sistema tendente a conduzir à punição das condutas daquele jaez, o mesmo sistema não foi, como não podia ser, desencadeado nos presentes autos;
8.º - Daí, impor-se tão só a alteração deste segmento da decisão recorrida de sorte que, por via da mencionada descriminalização operada pela Lei n.º 30/2000 de 29.11, deixe de persistir a condenação do arguido B.... pela prática do crime de consumo de estupefacientes.
3.2.
O recorrente, por sua vez, pediu a revogação do Acórdão em apreço, no que respeita à perda do veículo a favor do Estado, à condenação no crime de consumo de estupefacientes e reduzindo-se a pena de prisão de 18 meses para 1 ano, mantendo-se a suspensão, para o que formulou as seguintes conclusões:
I - Constituem requisitos da perda de veículos a favor do Estado, ter o veículo servido ou estar destinado à prática da infracção e pôr em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública ou oferecer sério risco de ser utilizado no cometimento de novos factos ilícitos.
II - Nada consta da factualidade apurada que permita concluir que o veículo do arguido ora recorrente tenha sido utilizado para a prática da infracção, não bastando para esse efeito, ter sido o veículo por ele utilizado para ir e voltar a Lisboa onde adquiriu droga.
III - Também nada consta da factualidade apurada que permita concluir que o veículo em causa ponha em risco a segurança das pessoas ou a ordem pública ou ofereça sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos crimes.
IV - Trata-se do veículo do arguido ora recorrente onde este normalmente se desloca.
V - O artigo 2° da Lei n° 30/2000 de 29 de Novembro passou a considerar o consumo de estupefacientes como contra-ordenação.
VI - Nos termos do n.° 2 do artigo 2.° do Código Penal, o facto punido e considerado como crime deixa de o ser se uma lei nova o eliminar como crime, pelo que haverá que substituir a condenação que foi aplicada ao arguido.
VII - O arguido era à data dos factos toxicodependente e encontra-se internado em centro de recuperação.
VIII - Nos termos das disposições combinadas dos artigos 15.° e 17.° da Lei n.° 30/2000 justifica-se que lhe seja aplicada uma admoestação.
IX - De acordo com o princípio da proporcionalidade as medidas de coacção a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, sempre com respeito pelo exercício dos direitos fundamentais do cidadão.
X - O arguido é primário, confessou o crime, está a receber tratamento, encontrando-se internado num centro de recuperação, tendo assim possibilidades de ser inserido na sociedade.
XI - A medida da pena deveria assim ter-se situado no mínimo da moldura penal, mantendo-se a suspensão.
XII - Disposições violadas: artigos 410.°, n.° 2, al. a) e 375.°, n.° 1 do C.P.P., 35.° n.° 1 do Decreto-Lei n.° 15/93 de 22 de Janeiro, 109.° n.° 1, 71.°, 2.° n.° 2 do Código Penal e artigo 2.° da Lei n° 30/2000.
IV
Colhidos os vistos legais, foram os autos presentes à conferência, pelo que cumpre conhecer e decidir.
E conhecendo.
4.1.
Nas conclusões da motivação de recurso, que balizam o objecto do recurso, o arguido B.... limitou-se a impugnar o segmento da decisão recorrida que decretou a perda a favor do Estado do veículo automóvel em que se deslocou para adquirir produto estupefaciente, única questão que foi assim colocada no presente recurso.
É certo que na conclusão 5.ª da motivação se escreve «V Entende-se assim que o aliás douto acórdão em apreço violou a Lei em virtude de não ter matéria de facto suficientemente apurada para decidir a perda do veículo, como também se a decidiu com base na apurada esta por si não era adequada para a perda do veículo.» não ser a matéria de facto suficientemente apurada para decidir a perda do veículo, e na conclusão 6.ª «VI Disposições violadas: artigos 410.º, n.º1, al. a) e 375.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 109.º, n.º 1 do Código Penal.» se faz referência ao art. 410.º, n.º 1, al. a) do CPP: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas quis-se impugnar matéria de direito e não invocar o vício identificado, coisa bem diversa.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação.
Ora a discordância do recorrente é outra e traduz-se numa questão típica de direito: subsunção dos factos provados, depois de investigados todos os factos pertinentes, à norma jurídica convocada, entendendo o recorrente que dessa operação resultaria a inaplicabilidade de tal norma.
Por outro lado, o recorrente, face ao despacho do Relator que À luz do disposto no n.º 6 do art. 417.º do CPP., enunciou as questões que mereciam exame especial, nas suas alegações escritas, veio alargar o objecto do recurso à medida da pena.
Mas já não está em tempo para o fazer, ultrapassado que se mostra o prazo de apresentação da motivação, cujas conclusões, como se viu, balizam aquele objecto.
De todo o modo, no despacho do relator referiu-se uma questão de conhecimento oficioso: a aplicação da lei no tempo, cuja abordagem é não só legítima como devida, e apontava-se um argumento a ser considerado na questão oportunamente suscitada: o princípio da proporcionalidade das reacções criminais e o perdimento do veículo.
Conhecer-se-á, pois, da questão objecto do recurso e da aplicação da lei no tempo quanto ao consumo de estupefacientes.
4.2.1.
Sustenta o recorrente, quanto àquela questão e como se viu, que nada consta da factualidade apurada que permita concluir que o veículo do arguido ora recorrente tenha sido utilizado para a prática da infracção, não bastando para esse efeito, ter sido o veículo por ele utilizado para ir e voltar de Lisboa onde adquiriu droga (conclusão 2.ª), nada constando que permita concluir que o veículo em causa ponha em risco a segurança das pessoas ou a ordem pública ou ofereça sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos crimes (conclusão 3.ª), pois se trata do seu veículo em que normalmente se desloca (conclusão 4.ª), não se reunindo os requisitos da perda de veículos a favor do Estado, ter o veículo servido ou estar destinado à prática da infracção e pôr em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública ou oferecer sério risco de ser utilizado no cometimento de novos factos ilícitos (conclusão 1.ª).
4.2.2.
Sobre esta matéria pronunciou-se a decisão recorrida da seguinte forma:
«Nos autos encontram-se apreendidos um veículo automóvel, 81500 escudos em dinheiro português, um anel em ouro com um diamante, um telemóvel e dois canivetes.
(. . .)
Os canivetes, porque utilizados na preparação de substâncias estupefacientes para consumo, deverão ser declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do art. 35° do DL 15/93, de 22/1
Igual destino terá o veículo automóvel apreendido ao arguido Mário Martins, pois que foi utilizado no transporte ilícito de estupefacientes e, consequentemente, na prática de um crime previsto no DL 15/93, de 22/1 (cfr. art. 35° desse diploma, na redacção que lhe foi dada pela L. 45/96, de 3/9, que aliás se limitou a eliminar a referência que constava da redacção anterior - "quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos" - deixando claro que, no domínio das infracções à Lei da Droga, para decretar o perdimento de objectos basta apenas que os mesmos tenham sido utilizados na prática de infracções previstas nesse diploma) - cfr., neste sentido Acs. STJ de 7/4/99, Proc. 959/98, 3a secção, relatado pelo Cons. Augusto Alves, de 22/9/99, Proc. 531/99, 3a secção, relatado pelo Cons. Flores Ribeiro e de 15/12/99, Proc. 946/99, 3a secção, relatado pelo Cons. Leonardo Dias.»

No mesmo andamento se situa o Ministério Público na instância e neste Supremo Tribunal.
Vejamos a invocada evolução legislativa.
Dispunha o n.º 1 do art. 35.º do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na sua redacção original:
«1 - São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.»
Proferiu o Supremo Tribunal de Justiça numerosos acórdãos à sua sombra Acs. do STJ de 14-03-1990, AJ n.º 6, Processo n.º 40665, de 11-07-1991, BMJ n.º 409, pág. 425 , Processo n.º 41954, de 30-10-1991, AJ n.º 22, Processo n.º 42260, de 09-01-1992, BMJ n.º 413 pág. 418 , Processo n.º 42251, de 22-04-1992, CJ XVII, 2, pág. 17, Processo n.º 42586, de 26-05-1993, processo n.º44473, de 02-06-1993, BMJ , Processo n.º 44083, de 23-02-1994, processo n.º45848, de 14-04-1994, Acs STJ II, 1, pág. 261, Processo n.º 46503, de 06-10-1994, processo n.º46340, de 17-11-1994, processo n.º 47182, de 26-06-1996, processo n.º10/96, de 27-06-1996, processo n.º539/96.
E neles se afinou, no essencial, pelo seguinte diapasão:
- O regime do art. 35.º do DL n.º 15/93 relativamente à perda de objectos a favor do Estado é, nas suas linhas gerais, quase idêntico ao que resulta da aplicação do regime geral consignado nos art.ºs 107.º e 109.º do C. Penal de 1982.
- Para serem declarados perdidos os objectos que serviram ou estavam destinados a servir para a prática de crimes ou foram por estes produzidos, é necessário também que ofereçam risco para a segurança ou ordem pública, atentas as respectivas naturezas e circunstâncias do caso.
- Se os objectos não oferecerem esses riscos e pertenceram a terceiro não podem ser declarados perdidos Na redacção do Ac. do STJ de 07-07-1994, processo n.º45096.
Mas importa reter, com especial interesse para a problemática deste recurso, que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu então que «não se justifica a perda da viatura a favor do Estado, apenas porque a droga para vender - 662 mgr - estava nele escondida, no momento da intervenção da GNR» Ac. do STJ de 28-04-1993, processo n.º43784.; que «não deve ser declarado perdido a favor do Estado o veículo automóvel utilizado no transporte de pouco mais de meio grama de estupefaciente, que segue no bolso do arguido. Ninguém precisa de um veículo automóvel para transportar meio grama de heroína, não podendo, no caso, considerar-se o automóvel como instrumento do crime» Ac. do STJ de 03-06-1993, processo n.º44042..
Que «provando-se apenas que no momento da detenção dos arguidos, se encontravam duas embalagens com heroína no cinzeiro da viatura, e que esta era conhecida pelas autoridades como ligada às actividades de tráfico, é pouco para o preenchimento do art. 35º daquele Decreto, pelo que, a viatura não pode ser declarada perdida a favor do Estado.» Ac. do STJ de 23-05-1996, processo n.º427/96. Decidiu-se ainda que «embora o arguido se fizesse transportar no automóvel apreendido no momento em que foi interceptado pela GNR, trazendo três embalagens de heroína nos bolsos, não deve tal viatura ser declarada perdida a favor do Estado, se não se fez prova de que a mesma foi adquirida com o produto de venda de droga, nem de que ela era indispensável ao transporte ou ocultação de tal produto, nem de que haja sério risco de vir a ser utilizada no cometimento de novos factos ilícitos típicos», Ac. do STJ de 27-02-1994, Acs STJ ano II t 1 pag 216 , Processo n.º 45874. Cfr. ainda o Ac. do STJ de 21-03-1996, processo n.º48971, com o seguinte sumário: «O veículo utilizado para fazer entrar a droga em Portugal apenas pode ser declarado perdido se ficar provado que oferece sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos, como sucederia, no caso de se ter provado que nele, pelas suas características, melhor seria dissimulada a droga ou o seu transporte ou ainda, que facilitava o negócio e o tráfico.»
E, finalmente, que «um veiculo automóvel constitui instrumento causal do crime de tráfico de estupefacientes se, por exemplo, o mesmo for necessário para o transporte da droga, considerado o seu elevado volume e peso ou a urgência da operação. Se o veiculo for utilizado como meio de transporte de pessoas as quais porventura detém na sua posse quantidades de droga facilmente transportáveis por outro meio, incluindo o pedestre, então aquele não é instrumento causal do crime, não devendo ser declarado o seu perdimento a favor do Estado» Ac. do STJ de 03-07-1996, Acs STJ pág. 211, Processo n.º 190/96..
Esta a redacção a que aparentemente se ateve o recorrente mas que se mostra já ultrapassada.
Com efeito, por força da Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro, a redacção do transcrito n.º 1 do art. 35.º do DL 15/93 passou a ser a seguinte:
«1 - São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos».
Foi, assim, amputada na parte final do preceito a expressão «quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.»
E essa diferença reflectiu-se na posição que veio então a ser assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre o perdimento de bens e instrumentos do crime em tráfico de estupefacientes, que decidiu, v.g., que «na criminalidade punida pelo DL n.º 15/93, de 22/01, a perda de objectos a favor do Estado, tratando-se de instrumentos do crime, depende apenas de um requisito em alternativa - que tenham servido, ou que estivessem destinados a servir, para a prática de uma infracção prevista naquele diploma; tratando-se de produtos, a declaração de perda depende tão só da sua natureza de ser um resultado da infracção» Ac. do STJ de 07-01-1998, processo n.º1162/97.. Cfr. o Ac. do STJ de 23-07-1998, processo n.º694/98, com o seguinte sumário: «face à nova redacção do art.º 35, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01, introduzida pela Lei 45/96, de 3/09, para que um bem, nomeadamente um veículo automóvel, seja declarado perdido a favor do Estado basta que tenha servido ou estivesse destinado a servir para a prática de uma infracção prevista naquele primeiro diploma, ou que por ela tenha sido produzido, não sendo aplicável o disposto no actual art.º 109, do CP (art.º 107, na redacção de 1982)». Ac. do STJ de 16-06-1999, processo n.º1464/98: «o art.º 35.º, do DL 15/93, de 22-01, foi alterado pelo art.º 1, da Lei 45/96, de 03-09, no sentido de que basta a utilização de objectos para a prática de uma infracção prevista naquele primeiro diploma para que os mesmos sejam declarados perdidos a favor do Estado, independentemente de qualquer juízo do tribunal sobre o perigo que representam para a segurança das pessoas ou da ordem pública ou do seu risco de utilização para cometer actos delituosos além previstos.»
Entendendo que, com a eliminação da 2.ª parte do art. 35.º, pretendeu o legislador ampliar as situações em que a declaração de perda de objectos deverá ocorrer Ac. do STJ de 22-09-1999, processo n.º 531/99 Cfr. os Acs. do STJ de 28-01-1999, processo n.º 1060/98, de 02-06-1999, processo n.º 281/99, de 06-06-2001, processo n.º 1571/01-3. . Que a redacção vigente desse artigo indicia o propósito de reforço na reacção penal ou para-penal aos crimes previstos no primeiro diploma, com a medida de perda dos instrumentos do crime independentemente da perigosidade para a segurança das pessoas ou da ordem pública ou do risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos Ac. do STJ de 02-06-1999, processo n.º 281/99..
Mas tem introduzido este Supremo Tribunal elemento(s) moderador(es) a uma interpretação que conduza a uma aplicação automática do perdimento dos veículos automóveis.
Recorreu à noção de instrumentalidade, decidindo que a actual redacção do art. 35.º do DL 15/93, de 22-01, introduzida pela Lei 45/96, de 03-09, e contrariamente ao que sucedia na versão anterior, deixou de fazer depender a perda de objectos, que tenham servido ou estejam destinados a servir para a prática de infracções previstas naquele diploma, do perigo que deles possa resultar para a segurança das pessoas ou para o ordem pública ou do risco sério de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, exigindo apenas o nexo de instrumentalidade entre a utilização do objecto e a prática do crime Ac. do STJ de 28-06-2001, processo n.º 1565/01-5..
Noção esclarecida pela invocação da causalidade adequada, pois se basta que os objectos possam considerar-se instrumentos do crime, no sentido de que tenham servido ou se destinassem a servir para a prática de uma infracção prevista no referido diploma. Mas que para que assim seja não se afigura necessário que os objectos tenham essa aplicação exclusiva, embora seja exigível que a sua relação com a prática do crime se revista de um carácter significativo, numa relação de causalidade adequada, para que a infracção se verifique em si mesma ou na forma de que se revestiu Ac. do STJ de 04-04-2001, processo n.º 692/01-36..
Não obstante o reforço da reacção penal ou para-penal aos crimes relacionados com estupefacientes, para a declaração de perda a favor do Estado dos objectos, torna-se necessário que eles tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um infracção prevista no DL n.º 15/93, ou seja, é indispensável que possam ser considerados instrumentos do crime, o que exige que do factualismo provado resulte que entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista um relação de causalidade adequada, por forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada Ac. do STJ de 02-06-1999, processo n.º281/99.. Cfr. no mesmo sentido o Ac. do STJ de 21-02-2001, processo n.º2814/00-3 com o seguinte sumário: «Estando provado que os arguidos se serviram de uma viatura automóvel, pertencente a um deles, para irem adquirir droga a Espanha e para a transportarem, no regresso a Portugal, a fim de, posteriormente, a venderem a terceiros, a relação do referido veículo com a prática do crime (tráfico de estupefacientes) reveste-se de um carácter significativo, numa relação de causalidade adequada quanto à produção da infracção, em si mesma e na forma de que se revestiu. Logo, nos termos do art. 35.º, do DL 15/93, de 22-01, na redacção resultante das alterações introduzidas pela Lei 45/96, de 03-09, não pode o veículo automóvel em causa deixar de ser declarado perdido a favor do Estado.»
O que nos conduz também ao princípio da proporcionalidade. A perda do instrumentum sceleris, não estando submetida ao princípio da culpa, terá de ser equacionada com o princípio da proporcionalidade relativamente à importância do facto Ac. do STJ de 27-01-1998, processo n.º575/97..
Como sucede no domínio das medidas de polícia, na investigação criminal e na execução das penas, também na punição dos crimes pontificam os princípios da legalidade, da necessidade e da adequação Simas Santos, A Violência na Lei e Jurisprudência, intervenção no Colóquio «Violência e Sociedade», 29.1.98, Supremo Tribunal de Justiça, Revista Jurídica da Universidade Portucalense, n.º 3..
Logo no seu artigo 1.º proclama a Constituição que a nossa República se baseia na dignidade da pessoa humana Art. 1.º da Constituição: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.», o que impõe diversas consequências relevantes no domínio do sancionamento penal:
- a vida humana é inviolável, não havendo em caso algum pena de morte; Art. 24.º da Constituição.
- a integridade moral e física das pessoas é inviolável; ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanas; Art. 25.º da Constituição.
- não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida; Art. 30.º, n.º 1 da Constituição.
- a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Art. 18.º, n.º 2 da Constituição.
Um dos pressupostos materiais para a restrição legítima de direitos, liberdades e garantias consiste no princípio da proporcionalidade (princípio da proibição do excesso) que se desdobra nos princípios:
- da adequação: as medidas restritivas devem ser o meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei;
- da exigibilidade: as medidas restritivas devem revelar-se necessárias; e
- da proporcionalidade: os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida» não devendo ser as medidas restritivas desproporcionadas, excessivas em relação aos fins obtidos.
Nesta óptica se tem colocado, pois, este Supremo Tribunal de Justiça quer ao declarar a perda de veículos automóveis no tráfico de estupefacientes «Sendo decisiva para a concretização da transacção a utilização da viatura em causa, e evidenciando a matéria de facto provada que a actuação do arguido não se tratou de um mero episódio, antes o afloramento de uma actividade relevante, de que a utilização do veículo automóvel foi o meio mais apto e determinante à comissão do crime, deve este ser declarado perdido a favor do Estado, pois que ao proporcionar mobilidade, oferece sério risco de ser utilizado em futuros actos», Ac. do STJ de 27-01-1998, processo n.º575/97
«O recorrente utilizava determinados veículos no exercício da sua actividade habitual de venda de estupefacientes, donde auferia os rendimentos para fazer face às sua despesas pessoais, o seu perdimento é inevitável, face ao disposto no art.º 35, n.º 1, do DL 15/93, norma especial que prevalece sobre a do art.º 109, n.º 1, do CP.», Ac. do STJ de 27-01-1998, processo n.º1045/97
«Devem ser declarados perdidos a favor do Estado os veículos automóveis que serviram para transportar e ocultar os produtos estupefacientes, pois serviram para a prática do crime (tráfico agravado)», Ac. do STJ de 09-07-1998, processo n.º193/98
«Ficando demonstrado que um determinado veículo automóvel era utilizado pelo arguido para "mais facilmente proceder às aquisições e vendas de heroína", e nessa medida "servido para a prática do crime", não merece censura o seu perdimento a favor do Estado», Ac. do STJ de 28-01-1999, processo n.º1060/98
«Assim, é de declarar perdido a favor do Estado o veículo automóvel que serviu para a aquisição, em Espanha, de heroína e para facilitar a sua guarda e venda em Portugal, a tal não obstando o facto de o mesmo ser pertença de terceira pessoa, resultando da matéria de facto provada que esta teve conhecimento da referida utilização e dela se aproveitou conscientemente, consumindo heroína adquirida nas aludidas circunstâncias», Ac. do STJ de 15-12-1999, processo n.º807/99.
Não se mostra desproporcionada, nem excessivamente determinada, a perda a favor do Estado, nos termos do art.º 35.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01, de um ciclomotor, que embora não registado em nome do arguido, foi por ele pago e era por ele utilizado todos os dias, no qual tinha guardada uma determinada importância em dinheiro, resultante da venda por si efectuada de estupefacientes, e que serviu de transporte para a heroína que lhe foi apreendida. Ac. do STJ de 30-03-2000, processo n.º4/2000
«Tendo ficado provado que o arguido utilizou um veículo automóvel para transportar, por três vezes, quantidades apreciáveis de cocaína (uma das quais descrita no antecedente n.º 1, al. a), dissimuladas na cava da roda dianteira do lado direito daquele, ressalta com evidência que a viatura foi instrumento decisivo para o cometimento do crime de tráfico de estupefacientes e, consequentemente, impõe-se a declaração de perda a favor do Estado do objecto em causa, por força do art. 35.º, do DL 15/93, de 22-01», Ac. do STJ de 04-04-2001, processo n.º 692/01-36.
«Tendo os veículos mencionados na matéria de facto considerada provada sido utilizados pela arguida na respectiva actividade delituosa de tráfico de estupefacientes, servindo como meio de transporte da droga, e de local onde a mesma, por vezes, era transaccionada, devem os mesmos ser declarados perdidos a favor do Estado nos termos do art. 35.°, n.° 1, do DL n.° 15/93, de 22 de Janeiro, na redacção dada pelo DL n.° 45/96, de 3 de Setembro», Ac. do STJ de 07-06-2001, processo n.º 1655/01-5.
«Consequentemente, tendo um veículo automóvel servido para a deslocação do arguido de Aveiro a Famalicão e para o transporte de produtos estupefacientes desta cidade até à portagem dos Carvalhos (local onde foi interceptado pela PJ) - vindo os referidos produtos a serem detectados dentro de uma mochila debaixo do banco do condutor - tanto basta para que, ao abrigo da citada norma do art. 35.º do DL 15/93, a viatura seja declarada perdida a favor do Estado», Ac. do STJ de 28-06-2001, processo n.º 1565/01-5, quer ao afastá-la «Estando provado que:
- o arguido utilizava nas suas deambulações de aquisição e venda de haxixe um veículo automóvel;
- o arguido abastecia de haxixe não só os consumidores locais como os das comarcas limítrofes;
- foram encontradas no interior do veículo automóvel 12 barras de haxixe, com o peso total de 344 gramas,
embora tais factos possam, por si e no seu conjunto, considerar-se de alguma forma indiciadores do relevo da utilização do automóvel para a actividade de tráfico, são eles, no entanto, insuficientes para integrar, com o mínimo de certeza indispensável à decisão de perda a favor do Estado, o referido elemento da essencialidade da viatura para a prática do crime do art.º 21.º, do DL 15/93, por que o arguido foi condenado. Ac. do STJ de 02-06-1999, processo n.º281/99..
No caso, o arguido A.... adquiriu cerca de 4 gramas de heroína no Casal Ventoso, em Lisboa, destinando esse produto ao seu próprio consumo e à cedência gratuita ao arguido B....., o que era do conhecimento deste, que utilizou o veículo automóvel de matrícula MM para o transporte da heroína de Lisboa para Lagos, vindo a ser ambos condenados pelo crime de tráfico de menor gravidade do art. 25.°, al. a) do DL n.º 15/93.
As circunstâncias da acção, o destino e a quantidade de estupefaciente afastam, nos termos já vistos, a instrumentalidade exigida pelo art. 35.º para a perda do veículo, pois não existiu um relação de causalidade adequada, por forma a que, sem a sua utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria na forma, com significação penal relevante, atento que os 4 grs cabiam perfeitamente no bolso de qualquer dos arguidos.
Como se não verifica a proporcionalidade também invocada.
Procede, assim, o recurso nos limites do objecto acima definido.
V
Como se antecipou, impõe-se conhecer de uma outra questão oficiosamente, nos termos do art. 2.º do C. Penal.
O recorrente foi condenado também pela prática de um crime de consumo de estupefacientes do art. 40.°, n.° 1 do DL n.º 15/93, o que, como sustentou a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta tem consequências neste processo atenta a entrada em vigor da Lei n.º 30/2000 de 29 de Novembro.
Este diploma veio definir o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica e que dispõe no art. 2.º que o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas do DL 15/93 constituem contra-ordenação (n.º 1), se não excederem a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias (n.º 2).
E no seu art. 28.º, revogou o art. 40.º, excepto quanto ao cultivo, e o art. 41.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que não é o caso.
Nos termos do seu art. 29.º, a descriminalização aprovada pela lei referida entrou em vigor em todo o território nacional no dia 1 de Julho de 2001
De acordo com n.º 2 do art. 2.º do C. Penal, a descriminalização terá de ser tida em conta em relação a condutas anteriores, e não poderão ser essas condutas penalizadas à luz do novo diploma, neste momento e por este Supremo Tribunal de Justiça, toda a vez que na nova lei é estabelecido um complexo sistema para conduzir a essa punição e que não foi ainda desencadeado nestes autos.
Assim, e sem tomar posição sobre a aplicabilidade desse diploma às condutas apuradas neste processo, impõe-se a alteração da decisão recorrida no que se refere aos crimes de consumo de estupefacientes que se não podem manter nos sobreditos termos.
Ora, a decisão recorrida condenou o recorrente como autor de um crime de consumo de estupefacientes do art. 40.º do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, conduta que foi descriminalizada pela Lei n.º 30/2000.
Isso mesmo já foi decidido no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Outubro de 2001 Proc. n.º 2442/01 da 5.a Secção do mesmo Relator..
VI
Pelo exposto, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça acordam em conceder provimento ao recurso e em alterar o acórdão recorrido quanto à condenação pelos crimes de consumo de estupefacientes, que se não mantém.
Sem custas.
Lisboa, 14 de Março de 2002
Simas Santos.
Abranches Martins,
Oliveira Guimarães.