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CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
ALD
SEGURO DE CRÉDITOS
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário
I - Saber se o concreto seguro-caução garante o contrato de locação financeira se o contrato de ald depende da interpretação negocial. II - O facto de o seguro-caução ser uma garantia autónoma não implica a execução da responsabilidade do tomador do seguro. III - A responsabilidade do garante existe, idónea para satisfazer os interesses do credor garantido, ainda que o não cumprimento pelo devedor se deva a impossibilidade não culposa. IV - A garantia, diferentemente da fiança não tem natureza acessória em relação à obrigação garantida. V - A condenação das rés (tomadora do seguro e co-seguradoras) no pagamento das rendas vencidas e vincendas não permite, sob pena de enriquecimento sem causa da autora, (locadora financeira-beneficiária do seguro) a condenação ainda no pagamento do valor residual e na restituição do veículo.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
A, (hoje, ...) (1)Cfr. fls. 299. intentou a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra B - Comércio de Automóveis, S.A., Companhia de Seguros C. e Companhia de Seguros D, alegando, em síntese, o seguinte: (a) a A. dedica-se à actividade de locação financeira mobiliária; (b) em 12-10-93 celebrou com a primeira Ré um contrato-multiuso de locação financeira mobiliária e, em 14-05-93, o aditamento nº 2950, nos termos do qual a A. declarou que se obrigava a adquirir uma viatura de marca LAND ROVER, modelo DISCOVERY 2.5 TDI, no valor global de esc. 4800000 escudos e a conceder à primeira Ré o respectivo gozo e a vender-lho, caso o quisesse, findo o período da locação, ficando esta obrigada ao pagamento à A. de 12 rendas, no montante de 422963 escudos, cada, com periodicidade trimestral; (c) a Ré B não pagou à A. a renda vencida em 10-08-94, no valor de 485280 escudos; (d) uma vez que a Ré B não cumpriu, a A. enviou-lhe a carta datada de 25-08-94, comunicando-lhe que considerava resolvido o contrato; (e) em conformidade com o contrato celebrado entre a A. e a R. B, está em dívida a quantia global de 3269075 escudos, correspondente à soma de 485280 escudos da renda vencida e não paga; 6827 escudos, a juros de mora vencidos; 2762432 escudos, a parte do capital das rendas vincendas e valor residual à data da resolução; e 14536 escudos, por juros de mora vencidos desde a data da resolução até 05-09-94; (f) por sua vez, as segunda e terceira Rés obrigaram-se, por força do contrato de seguro, a pagar, até ao limite do capital seguro, os eventuais incumprimentos da locatária, não tendo, todavia, liquidado a indemnização devida à autora; (g) na verdade, a R. C, emitiu o seguro do ramo "caução directa", em regime de co-seguro com a R. Tranquilidade, figurando como tomador do seguro a R. B, como beneficiária a A., e tendo por objecto da garantia "o pagamento de 12 rendas trimestrais referentes ao aluguer de longa duração do veículo LAND ROVER DISCOVERY, BZ", pelo prazo de 36 meses, com início em 18-05-93 e termo em 17-05-96; (h) pelo que as RR. se encontram em dívida, pois deviam ter pago as quantias no prazo de 45 dias, contados das datas em que a A. reclamou o seu pagamento.
Concluiu, pedindo a condenação das RR. a pagarem a quantia de 3579414 escudos, acrescida de juros de mora vincendos incidentes sobre a quantia de 3269076 escudos e contados à taxa de desconto do Banco de Portugal e ainda a condenação da 1ª Ré a entregar o veículo de matrícula CB.
Contestou a Ré B, alegando (a) o veículo automóvel objecto do contrato de locação financeira está afecto a um contrato de aluguer de longa duração (ALD), celebrado entre a R. e um locatário; (b) ao resolver o contrato, a A. está a agir com abuso de direito, pois exigiu que um terceiro garantisse o cumprimento do contrato, pelo que tal resolução representa uma ruptura do que tinha sido acordado; (c) daí que ela, B, tenha acordado com a A. a prestação de um seguro de caução directa por meio das restantes rés, estando, assim, asseguradas as rendas da A. e garantido o cumprimento do seu contrato; (d) é nula, por desproporcionada aos danos a ressarcir a cláusula constante do acordo celebrado entre a A. e a R. B, segundo a qual, em caso de resolução do contrato, "com fundamento no incumprimento definitivo por parte do locatário, para além da restituição imediata do equipamento e do demais previsto na lei e neste contrato, o locador terá direito a conservar suas as rendas vencidas e pagas, a receber as vencidas e não pagas, acrescidas da indemnização fixada nos termos do nº 7 da cláusula 6ª, do capital das rendas vincendas e do valor residual, bem de todos os encargos a suportar pelo locador por força do incumprimento do contrato".
Também as RR. seguradoras deduziram a sua contestação, alegando, designadamente, que o seguro caução celebrado com a 1ª Ré apenas garantia, conforme acordado com aquela, as prestações a pagar pelos adquirentes dos veículos em regime de aluguer de longa duração. De acordo com os protocolos celebrados entre a ré B e as rés seguradoras, estas não seguraram o risco do incumprimento das obrigações da B para com a Autora, emergentes do contrato de locação financeira, mas sim as obrigações assumidas pelos locatários dos contratos de ALD (aluguer de longa duração) perante a B. Como a A. não alega o incumprimento contratual por parte do locatário do aluguer de longa duração para com a B, inexiste qualquer sinistro que as rés seguradoras devam suportar.
Por outro lado, alegaram as RR. seguradoras que a A. sabia que a lei lhe vedava celebrar contratos de locação financeira tendo como objecto veículos que não podem considerar-se como bens de equipamento, pelo que tais contratos de locação financeira são nulos por ofensa de lei imperativa.
Houve réplica da A., em resposta matéria das excepções deduzidas pelas Rés Seguradoras e pela Ré B (fls. 136 a 151 e fls. 152 a 164, respectivamente), concluindo a A. pela respectiva improcedência.
Em 12-11-99, foi proferida saneador/sentença (fls. 266 e seguintes) que decidiu, no essencial, o seguinte: (A) julgar improcedente por não provada a acção contra as RR. "Companhia de Seguros C, S.A." e "Companhia de Seguros D, S.A.", absolvendo-as do pedido contra elas formulado pela A.; (B) julgar procedente a acção contra a R. "B - Comércio de Automóveis, S.A.", condenando-a, consequentemente, a entregar à A. o veículo automóvel de marca LAND ROVER, modelo DISCOVERY 2.5 TDI, matrícula CB, bem como a pagar-lhe a quantia de 3579414 escudos, acrescida de juros de mora vincendos incidentes sobre a quantia de 3269076 escudos.
Inconformadas com a decisão, dela interpuseram recurso a Autora (fls. 299) e a Ré "B" (fls.319), ambos admitidos como de apelação - fls. 320.
Apreciando-os, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 12-10-2000, decidiu: (a) dar parcial provimento às apelações, em virtude do que condenou as Rés apeladas a pagar à A. 485280 escudos da prestação vencida, com juros de mora desde 17-08-94; 2514156 escudos de rendas vencidas, com juros de mora desde 17-08-94, contados à taxa de 19,75%, indo absolvidas do restante peticionado; (b) absolver a Ré B do pedido de restituição do veículo à A., indo apenas condenada a pagar-lhes o valor residual de 248276 escudos, com juros desde a citação e em juros vencidos sobre 485276 escudos, contados de 11/07/94 a 17/08/94, aqueles contados à taxa legal e os outros à taxa de 19,75%.
Interpuseram recurso de revista as Rés Seguradoras (fls. 572), a Autora (fls. 573), e a Ré B (fls. 575), tendo, no entanto, o recurso da "B" sido julgado deserto por falta de alegação - despacho de fls. 670.
São as seguintes, no essencial, as conclusões oferecidas pelas Recorrentes:
A - Pela Autora (fls. 633 a 635)
I - Absolvição do pagamento das rendas vencidas e vincendas com fundamento na existência da garantia prestada pelas seguradoras.
Não obstante a garantia prestada pelas Seguradoras, a B continuou obrigada ao cumprimento pontual do contrato, nos termos do artº 406º, nº 1, do C.C., impondo-se a sua condenação por força do incumprimento.
II - Absolvição do pedido de restituição do veículo
A - Os bens locados são propriedade do locador.
B - Findo o contrato de locação financeira, o locador-utilizador goza da opção de adquirir os bens locados por um preço residual ou restituir os bens à sociedade de locação financeira.
C - A decisão deve corresponder à situação existente no momento do encerramento da discussão.
III - Violadas as normas dos artigos 1º, 10º, nº 1, 22º, al. e) e 24º, als. a) e f), do Decreto-Lei nº 171/79, de 6 de Junho, 406º, nº 1, e 817º do C.C. e 633º, parte final) (2) Sic no texto, aliás, repetidamente - cfr. fls. 634 e 635., do C.P.C.
Pede, em consequência, a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que condene a B a pagar as rendas vencidas e vincendas e a restituir o veículo que lhe foi locado.
Contra-alegando, a Ré B vem pugnar pela manutenção do julgado - fls. 725 e 726.
B - Pelas Rés Seguradoras (fls 608 a 612)
1. O contrato de seguro dos autos, como contrato formal que é, está corporizado em documento que constitui a respectiva apólice, onde a obrigação a que o mesmo se reporta está claramente identificada sob o sugestivo título de "Objecto da Garantia", como consistindo do "pagamento de 12 rendas trimestrais referentes ao aluguer de longa duração do veículo Land Rover Discovery CB";
2. A decisão proferida vai frontalmente contra esta definição da obrigação a que se reporta o seguro, assim violando a alínea b) do nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 183/88, de 24 de Maio, estando mesmo em oposição com a matéria de facto que a fundamenta, nomeadamente o ponto 15 da enumeração; dos factos assentes, enfermando, pois, de vício que dita a respectiva nulidade (artigo 668º, nº 1, alínea c), do CPC);
3. Sendo embora verdade que da análise isolada dos artigos 1º e 2º das condições gerais da apólice poderíamos ser levados a concluir que a garantia prestada consiste no pagamento das importâncias que a Autora tem a receber da B, não deixa de ser verdade que estamos aí na presença de definições genéricas que carecem de concretização nas condições particulares, o que aconteceu da forma descrita em 1. supra;
4. Seja como for, existindo contradição entre o objecto da garantia definido nas condições particulares e nas condições gerais, sempre as primeiras prevaleceriam sobre as segundas, ao abrigo do princípio da liberdade contratual (artigo 405º do Código Civil);
5. E, no caso em apreço, a conclusão tem ainda mais força por estarmos, no que respeita às Condições Gerais, perante cláusulas contratuais gerais ou cláusulas de adesão, devendo ter-se presente o disposto no artigo 7º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, segundo o qual, em caso de contradição entre as cláusulas de adesão e aquelas sujeitas a negociação entre as partes, prevalecem estas últimas (artigo 7º);
6. Um declaratário normal certamente não interpretaria a declaração constante das condições particulares as apólice sob o título "Objecto da Garantia", como consubstanciando uma garantia de pagamento das rendas referentes à locação financeira do veículo aí identificado;
7. A interpretação sugerida pelas recorrentes está em sintonia com as regras de interpretação dos negócios formais (artigo 238º do C.C.), pois tem no texto muito mais do que um mínimo de correspondência, reforçada pelos elementos auxiliares de interpretação, como sejam os protocolos e pela proposta de seguro, para a qual as próprias condições gerais remetem para a definição do objecto da garantia;
8. A decisão do processo não foi acompanhada da necessária análise crítica dos meios de prova, em violação da lei processual, no caso, o artigo 659º do C.P.C.;
9. A natureza formal do contrato de seguro não implica a automática e necessária irrelevância de todo e qualquer elemento de interpretação além do texto da respectiva apólice, apenas não sendo admissível que se pretenda sobrepor ao texto da apólice estipulações que lhe são exteriores;
10. A vontade das partes, plasmada nos protocolos entre elas celebrados, constitui elemento de interpretação decisivo da apólice dos autos, sendo certo que a mesma se encontra aí perfeitamente expressa, já que o objecto da respectiva garantia está claramente definido como consistindo no pagamento das rendas referentes ao aluguer de longa duração do veículo;
11. Também a proposta ou minuta de seguro são elementos de prova determinantes para a boa decisão do processo, estranhamente ignorados pelo Tribunal;
12. O acórdão recorrido acaba por não se pronunciar sobre todas as questões que lhe cumpria conhecer, não dando resposta à ampliação do âmbito do recurso requerido pelas ora Recorrentes nas suas alegações de resposta à apelação da Autora, incorrendo em vício que dita a respectiva nulidade - artigo 668º, nº 1, alínea d), do CPC;
13. A decisão de absolver a B do pedido de pagamento das rendas vencidas e não pagas viola a regra da solidariedade nas relações comerciais estabelecida nos artigos 100º e 101º do Código Comercial, assim como o regime legal estabelecido pelo Decreto-Lei nº 183/88, de 24 de Maio;
14. Os seguros de caução encontram-se sujeitos a um regime legal específico, sendo completamente injustificada a aplicação ao caso das regras contidas no regime legal relativo aos seguros de responsabilidade civil automóvel aprovado pelo Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro;
15. O seguro dos autos consubstancia uma autêntica fiança, sendo, pois, aplicável ao caso a regra contida no artigo 634º do C.C., que foi claramente violado;
16. Em qualquer caso, as garantias autónomas à primeira interpelação servem única e exclusivamente para reforçar a posição dos beneficiários das mesmas, os quais passam a contar com uma garantia acrescida de cumprimento a somar á garantia geral Constituída pelo património do devedor, que, naturalmente não fica exonerado das suas obrigações;
17. O acórdão recorrido viola os artigos 8º do Decreto-Lei nº 183/88, de 24 de Maio, 236º, 405º e 634º do C.C., 7º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, e 659º do C.P.C.
Pedem as Recorrentes a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que as absolva do pedido contra elas formulado.
Contra-alegando, a Autora entende que deve ser negado provimento ao recurso - fls. 646 a 652.
Colheram-se os vistos legais, pelo que cumpre decidir.
II
São os seguintes os factos dados como provados:
1. A A. dedica-se à actividade de locação financeira mobiliária.
2. A R. B - Comércio de Automóveis, S. A. dedica-se à venda de veículos em regime de aluguer de longa duração.
3. Em 12-01-93 a A. e a R. B celebraram um contrato-multiuso de locação financeira mobiliária, a fls. 9 a 16.
4. Em 07-05-93 a A. e a R. B celebraram o aditamento nº 2950 a tal acordo, de que é expresso o documento de fls. 18 e 19, nos termos do qual a primeira, além do mais, declarou que se obrigava a adquirir uma viatura de marca LAND ROVER, modelo DISCOVERY, no valor global de 4137931 escudos e a conceder-lhe o respectivo gozo e a vender-lho, caso o quisesse, findo o período da locação; declarou a segunda, além, do mais, que pagaria à A. 12 rendas no montante de 422963 escudos, cada, com periodicidade trimestral.
5. Pelo prazo de 36 meses, com início em 10-05-93 e termo em 10-02-96.
6. No acordo celebrado entre A. e a R. B foi ainda convencionado que, em caso de resolução do contrato, "com fundamento no incumprimento definitivo por parte do locatário, para além da restituição imediata do equipamento e do demais previsto na lei e neste contrato, o locador terá direito a conservar suas as rendas vencidas e pagas, a receber as vencidas e não pagas, acrescidas da indemnização fixada nos termos do nº 7 da cláusula 6ª, do capital das rendas vincendas e do valor residual, bem de todos os encargos a suportar pelo locador por força do incumprimento do contrato".
7. Em relação a tal contrato a R. B não pagou à A. a renda vencida em 10-08-94, no valor de esc. 485280 escudos.
8. A A. enviou à R. B a carta datada de 16-08-94, sob registo e com aviso de recepção, que constitui o documento de fls. 26, onde refere, além do mais, "que se encontra em mora o pagamento das prestações do contrato de locação financeira" e "para a mesma pagar tal quantia no prazo de cinco dias".
9. A R. B recebeu tal carta em 17-08-94.
10. Tendo de tal dado conhecimento à R. C, S.A. por carta datada de 16-08-94, a fls. 28, que a mesma recebeu em 17-08-94.
11. Não tendo a R. B pago tal quantia no prazo de cinco dias.
12. A A. enviou à R. B, em 25-08-94, a carta de que é cópia o documento de fls. 31, cujo teor se dá por reproduzido, onde, além do mais, comunica que considera resolvido o acordo celebrado.
13. Tal carta foi recebida pela R. em 29.08.94.
14. A R. B destinou o veículo objecto do contrato de locação financeira a aluguer de longa duração.
15. A R. C, emitiu o seguro do ramo "caução directa", a fls. 20, em regime de co-seguro com a R. Tranquilidade, S.A., titulado pela apólice nº 150104102997, figurando como tomador do seguro B - Comércio de Automóveis, S. A., como beneficiário a A., e tendo por objecto da garantia "o pagamento de 12 rendas trimestrais referentes ao aluguer de longa duração do veículo LAND ROVER pelo prazo de 36 meses, com início em 18-05-1993 e termo em 17-05-1996.
16. A R. C, escreveu à A. a carta de fls. 25 onde declara, além do mais, que "os seguros caução emitidos a vosso benefício cobrem, em caso de indemnização, o conjunto das rendas vencidas e não pagas bem como as vincendas, sendo o pagamento efectuado à vossa 1ª interpelação, sem qualquer formalidade, com prazo de 45 dias após a aludida interpelação".
17. A A. enviou à R. C, S. A., que a recebeu, a carta datada de 05-09-94, a fls. 35, onde refere, além do mais, "a situação de incumprimento do contrato de locação financeira nº 2950, (...), encontrando-se a B - Comércio de Automóveis, S. A. em atraso no pagamento das respectivas rendas trimestrais, (...), e para processarem a indemnização devida pelo seguro-caução".
18. Entre as RR. C e B foram celebrados os protocolos de fls. 121 a 130, em 15-11-1991, 07-04-1992 e 01-11-1993, os quais "visam definir as responsabilidades resultantes da emissão das rendas devidas à B pelos locatários de veículos de aluguer de longa duração".
III
Questão prévia:
Tendo presente o disposto pelos artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do C.P.C., a respeito da delimitação do âmbito objectivo do recurso, as questões que cumpre apreciar e decidir podem ser assim equacionadas:
A) Revista da Autora:
a) Saber se, com fundamento na existência da garantia prestada pelas RR. Seguradoras, se justifica, ou não, a absolvição da Ré B do pagamento das rendas vencidas e vincendas;
b) Saber se haverá ou não lugar à restituição à Autora do veículo locado pela R. B.
B) Revista das Rés Seguradoras:
a) Saber se o acordo celebrado entre a B e a C - com a designação de seguros de caução directa - garante o cumprimento dos contratos de locação financeira celebrados entre a Autora e a B ou o contrato de aluguer celebrado entre a B e o particular locatário;
b) Saber se, a ter cabimento a primeira das mencionadas hipóteses, esse acordo excluía a possibilidade de a Autora responsabilizar a B pelo incumprimento das suas obrigações inerentes à locação financeira;
Por razões de sistematização e de método, proceder-se-á à abordagem das questões enunciadas pela seguinte ordem:
- em primeiro lugar, apreciar-se-á a questão colocada na revista das Recorrentes Seguradoras, acima enunciada sob a alínea a) do ponto B (3) Cfr. infra, "Primeira Questão".;
- em segundo lugar, proceder-se-á à análise da questão da alínea b) do ponto B, isto é, do recurso das referidas Rés Seguradoras, e, bem assim, à questão elencada na alínea a) do recurso da Autora (ponto A), que àquela se reconduz (4) Cfr. infra, "Segunda Questão".;
- empreender-se-á, por fim, a abordagem da questão relativa à restituição- ou não - do veículo, ou seja, a questão da alínea b) do ponto A, ou seja, da Revista da Autora (5) Cfr. infra, "Terceira Questão".
Vejamos, pois.
Previamente, porém, justificar-se-á, a título preliminar, abordar a questão suscitada pelas Recorrentes Seguradoras segundo a qual o acórdão recorrido estaria ferido pela nulidade de omissão de pronúncia, prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC - cfr. supra, conclusão 12ª (6) Na conclusão 2ª, in fine, as aludidas Recorrentes referem-se também a uma eventual nulidade do acórdão recorrido, prevista na alínea c) do nº 1 do mesmo artigo 668º do CPC. No entanto, tal questão será analisada no âmbito da apreciação da 1ª das questões colocadas no recurso das RR. Seguradoras..
Alegam as Recorrentes, na referida conclusão 12ª, sem qualquer concretização, que "o acórdão recorrido acaba por não se pronunciar sobre todas as questões que lhe cumpria conhecer, não dando resposta à ampliação do âmbito do recurso requerido pelas ora Recorrentes nas suas alegações de resposta à apelação da Autora, incorrendo em vício que dita a respectiva nulidade".
Mas é manifesto que não têm razão, uma vez que, como bem se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do C.P.C.), importando, assim, decidir as questões nelas colocadas - e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso -, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras - artigo 660º, nº 2, também do C.P.C. Ora, o acórdão recorrido apreciou, como cumpria, as questões colocadas nas conclusões das alegações das apelantes, não alegando as ora recorrentes quaisquer questões de conhecimento oficioso sobre as quis tenha omitido pronúncia.
Improcede, pois, a questão relativa à eventual nulidade por omissão de pronúncia.
Assim sendo, é o momento de prosseguir pela ordem acima indicada.
Primeira Questão:
Saber se o acordo celebrado entre a B e a C - com a designação de seguros de caução directa - garante o cumprimento dos contratos de locação financeira celebrados entre a Autora e a B ou o contrato de aluguer celebrado entre a B e o particular locatário
1 - Da matéria de facto enunciada ressalta, no essencial, a existência de dois contratos pertinentes às questões colocadas.
Por um lado, entre a, A e a B foi celebrado um contrato-multiuso de locação financeira, com um aditamento 2950, respeitante a um veículo automóvel de marca Land Rover, modelo Discovery, 2.5 TDI, matrícula CB, tendo elas ocupado, nesse contrato, respectivamente, as posições de locadora e locatária.
Por outro lado, houve um acordo celebrado entre a B e a C (em regime de co-seguro com a Tranquilidade), com a designação de "seguro de caução directa", sendo constituído por condições particulares (fls. 20) e por cláusulas gerais e especiais (fls. 23).
Acresce que a R. B destinou o veículo objecto do contrato de locação financeira a "aluguer de longa duração" (ALD) - cfr. ponto 14 da matéria de facto.
Detenhamo-nos no contrato de seguro de caução directa.
Trata-se de um contrato de seguro tipificado na lei, a ele se referindo o Decreto-Lei nº 183/88, de 24 de Maio, com alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 127/91, de 12 de Março.
O âmbito de aplicação do Decreto-Lei nº 183/88 estende-se pelo género, mais amplo, do seguro de riscos de crédito, no qual se distinguem da ramos "Crédito" e "Caução" - artigo 1º, nº 1.
O primeiro - seguro de créditos - é celebrado com o credor da obrigação segura (artigo 9º, nº 1).
O segundo - seguro-caução - é celebrado com o devedor da obrigação a garantir ou com o seu contragarante e a favor do respectivo credor - artigo 9º, nº 2.
Como observa Almeida Costa, o seguro-caução configura um dos casos em que o contrato de seguro "(...) assume a feição típica de um contrato a favor de terceiro" ( ) In RLJ, Ano 129º, pág. 21.).
Dele se diz que "cobre, directa ou indirectamente, o risco de incumprimento ou atraso no cumprimento das obrigações que, por lei ou convenção, sejam susceptíveis de caução, fiança ou aval" - artigo 6º, nº 1.
Em ambos os referidos tipos de contratos de seguro deverá constar a identificação do tomador do seguro e do segurado, no caso de as duas figuras não coincidirem na mesma pessoa - cfr. a alínea a) do nº 1 do artigo 8º.
Esta norma deve ser aproximada das disposições dos nºs 1 e 2 do artigo 9º, já assinalados, na medida em que aquelas duas figuras coincidirão no "seguro de créditos", ao contrário do que se passa no "seguro caução".
Em qualquer deles deverá constar ainda a "obrigação a que se reporta o contrato de seguro", a percentagem ou quantitativo do crédito seguro" e os "prazos de participação do sinistro e de pagamento das indemnizações" - alíneas b), c) e d) do nº 1 do artigo 8º.
E também a qualquer deles é aplicável o artigo 426º do Código Comercial, com a consequente necessidade de constarem de uma apólice, necessária para a sua validade. São contratos formais, sendo aquela forma exigida ad substantiam, como é a regra, quando da lei outra coisa, como é o caso, não resulta - artigo 364º do Código Civil, diploma ao qual pertencem as normas que se venham a indicar sem menção da respectiva origem.
Esta conclusão é reforçada pela circunstância de várias disposições do Decreto-Lei nº 183/88 se referirem à apólice emitida com o teor do seguro convencionado - cfr. os artigos 5º, nº 3, 6º, nº 3, 8º, nº 2, 9º, nº 2, 11º, nº 2, e 13º, nº 1 (8) Neste sentido, cfr. o Acórdão deste STJ de 22-02-2000, Revista nº 995/99, 1ª Secção, que agora se acompanha.
2 - Não merece qualquer reserva a qualificação de seguro-caução para o contrato a que se refere o ponto 15 do elenco da matéria de facto.
Atente-se, designadamente, no artigo 2º, nº 1, das "condições gerais", segundo o qual a C garante ao beneficiário, até ao limite do capital seguro, o pagamento da importância que devia receber do tomador, em caso de incumprimento, por este, da obrigação garantida - cfr. fls. 23.
Por outro lado, fez-se constar das "condições particulares" que as qualidades de "tomador" e "beneficiário" correspondem, respectivamente, à B e à A. Fácil é constatar que este quadro se adequa, não à figura do seguro de créditos, mas antes à do seguro-caução, uma vez que a garantia prestada se refere a um crédito de um terceiro alheio ao contrato.
Quanto à duração da garantia, consta das "condições particulares" (fls. 20) que o seguro foi feito pelo prazo de 36 meses, com início em 18/05/1993 e termo em 17/05/1996. É certo que, quanto ao objecto da garantia, constante das "condições particulares", disse-se ser ele o "pagamento das 12 rendas trimestrais referentes ao aluguer de longa duração do veículo Land Rover Discovery CB", isto é, do veículo que foi objecto dos contratos acima aludidos - o de locação financeira e o de aluguer de longa duração.
Será isso decisivo no sentido de levar à conclusão, como pretendem as Recorrentes Seguradoras, de que o contrato garantido foi o de ALD e não o de locação financeira? A nossa resposta é no sentido negativo, confirmando, nessa matéria, o entendimento do acórdão recorrido. Vejamos porquê.
3 - A questão de saber qual dos contratos foi o garantido pelo seguro-caução - se o contrato de locação financeira celebrado entre a A e a B ou o contrato de ALD celebrado entre a B e o particular - é superada pela via da interpretação negocial, mediante a aplicação dos princípios constantes do artigo 236º. Ou seja, não sendo conhecida do declaratário a vontade real do declarante, a declaração negocial valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
Ademais, tratando-se de negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha no texto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso - artigo 238º, nº 1.
Mas, se quanto a tais premissas teóricas, não existe divergência com o percurso discursivo seguido pelo acórdão recorrido, já o mesmo não acontece no respeitante à subsunção da realidade fáctica do caso sub judice aos princípios jurídicos que lhe são aplicáveis.
É que, se é verdade que a letra da lei é o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei (artigo 9º, nº 2, do Código Civil), também na interpretação dos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência do texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, nº 1, do C. Civil).
Só que, desse ponto de vista, nenhum dos sentidos alternativos podem ser eliminados, uma vez que qualquer deles tem, no texto da apólice (como melhor se verá oportunamente), aquele mínimo de correspondência de que fala o Código Civil. Importa, por isso, atender a outros elementos ou subsídios hermenêuticos, susceptíveis de iluminar o sentido e alcance do texto do documento.
4 - Ora, o que consta dos pontos 4, 5, 6, 15, 16 e 17 da matéria de facto supra enunciada, revela ter havido, por parte da B e da C, uma vontade real comum no sentido de o acordo que celebraram visar a garantia das obrigações assumidas pela primeira no âmbito do contrato de locação financeira em que se vinculou perante a Autora.
É a esta vontade real que, em princípio, há que atender para definir o sentido juridicamente relevante das suas recíprocas declarações.
Só assim não seria se, sendo o seguro um contrato formal, tal conteúdo não tivesse no texto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso.
Mas não é isso o que acontece.
Com efeito, por um lado, a referência, também constante do "objecto da garantia", ao "pagamento de 12 rendas trimestrais", tal como figura nas "condições particulares", ajusta-se ao contrato de locação financeira e não ao aluguer de longa duração.
Na verdade, como contrapartida do gozo e fruição do veículo e durante o período de vigência do contrato de locação financeira, "a B ficou obrigada a pagar à Autora uma prestação periódica , sob a forma de uma renda trimestral" - cfr. nº 4 da matéria de facto dada como assente.
Quer isto dizer que o contrato de locação financeira foi celebrado por 36 meses e o pagamento das rendas, num total de 12, teve a periodicidade trimestral.
Por outro lado, não pode esquecer-se a menção feita, nas referidas "condições particulares" à identidade do "tomador de seguro" - a ré "B" e do beneficiário do mesmo - a "A". Trata-se, como é manifesto das partes do contrato de locação financeira.
Ou seja, como acima se disse, o elemento literal das "condições particulares" da apólice fornece subsídios que permitem concluir pela existência de um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, com a conclusão de que o objecto da garantia consiste no contrato de locação financeira.
5 - Acresce que nas negociações que precederam a celebração do contrato a A. fez depender a conclusão do mesmo de que a R. B obtivesse de um terceiro, com capacidade financeira, a prestação de uma garantia idónea.
Ou seja, para a celebração do contrato referido em a), a A. exigiu da B que esta lhe apresentasse uma caução que assegurasse o pagamento da totalidade das rendas.
Foi assim que "a R. C emitiu o seguro do ramo "caução directa", a fls. 20, em regime de co-seguro com a R. Tranquilidade, S.A., titulado pela apólice nº 150104102997, figurando como tomador do seguro B - Comércio de Automóveis, S. A., como beneficiário a A., e tendo por objecto da garantia "o pagamento de 12 rendas trimestrais referentes ao aluguer de longa duração do veículo LAND ROVER pelo prazo de 36 meses, com início em 18-05-1993 e termo em 17-05-1996" - cfr. supra , facto nº 15.
Ou seja: a própria matéria de facto dada como provada é bem esclarecedora do seguinte quadro:
a) a fim de ser possível a celebração do contrato de locação financeira, a Autora exigiu que a B lhe apresentasse uma caução que assegurasse o pagamento da totalidade das rendas a que ficava obrigada;
b) para isso, a B subscreveu junto da ré seguradora o seguro de caução directa, cuja apólice consta de fls. 23 e 24.
Neste contexto, é manifesto que a referência - que, reconhece-se, não deixa de ser algo perturbadora - ao "aluguer de longa duração" constante das condições particulares, não pode levar a fazer tábua rasa dos restantes elementos interpretativos, de natureza lógica e sistemática, que apontam para a conclusão de que o seguro-caução constitui garantia do contrato de locação financeira.
Daí que improceda a alegada nulidade da alínea c) do nº 1 do artigo 668º do CPC, atribuída pelas recorrentes Seguradoras ao acórdão recorrido - cfr. conclusão 2ª, in fine.
6 - Até agora movemo-nos no âmbito das "condições particulares" - fls. 22. É chegado o momento de passarmos às "condições gerais" e "especiais" da apólice de seguro de caução directa - fls. 23.
De acordo com o artigo 1º das "condições gerais", o sinistro é o "incumprimento atempado pelo tomador do seguro da obrigação assumida perante o beneficiário". Ademais, quanto ao objecto da garantia, o artigo 2º das mesmas "condições gerais" prescreve que a C (...) garante ao beneficiário, pela presente apólice (ou seja, à Autora), até ao limite do capital seguro, o pagamento da importância que devia receber do tomador do seguro (ou seja, da B), em caso de incumprimento por este último da obrigação garantida (...)".
Ora, o tomador - a ré B - não assumiu perante o beneficiário - a Autora - quaisquer outras obrigações para além das resultantes do contrato de locação financeira.
Nesta linha de entendimento se explica a carta de fls. 25, endereçada, pela Ré C à Autora, a solicitação da Ré B, informando-a de que "os Seguros Caução emitidos a vosso benefício cobrem, em caso de indemnização, o conjunto de rendas vencidas e não pagas bem como as vincendas (...)" cfr. supra nº 16 da matéria de facto.
Assim, outra interpretação não pode ser feita do documento de fls. 23 que não seja a de que o contrato garantia o pagamento das 12 rendas trimestrais devidas pela ré B à A. pela locação do veículo acima identificado.
A isso não obstam os protocolos estabelecidos entre a B e a C - alguns ainda com a intervenção da seguradora "(...)" -, com vista à garantia do pagamento das rendas dos contratos de ALD celebrados pela B com terceiros.
Por um lado, trata-se de acordos celebrados entre as rés que, por isso, não vinculam a autora. Acresce que se trata da assunção de riscos respeitantes a contratos perfeitamente diferenciados. Por um lado, os riscos resultantes do incumprimento pela locatária financeira - a B - das prestações trimestrais a que se obrigou perante a A., decorrentes do contrato de locação financeira; por outro, a garantia das prestações a pagar à B pelos clientes com os quais negociava os veículos em aluguer de longa duração.
Entender de forma diferente corresponderia a alterar profundamente os termos do contrato de seguro caução accionado, nele substituindo as pessoas da tomadora do seguro e da beneficiária e, nele, pretender ver um outro contrato, que ali não pode ser encontrado, em desrespeito pelo disposto no artigo 238º do C. C.
Conclui-se, pois, em conformidade com o acórdão recorrido, que o contrato de seguro caução accionado foi celebrado em benefício da A., como, aliás, é reconhecido pela Ré B.
7 - Alegam as Recorrentes Seguradoras que, havendo contradição entre o objecto da garantia definido nas condições particulares e as definições das condições gerais da apólice, sempre as primeiras prevaleceriam sobre as segundas, ao abrigo do princípio da liberdade contratual.
No entanto, esquece-se que, nas condições particulares, o beneficiário (9) Beneficiário: "A entidade a favor de quem reverte o direito de ser indemnizado pela C" - cfr. artº 1º das "condições gerais" da apólice de seguro. inscrito é, justamente, a A.
Por outro lado, importa reconhecer que o entendimento ora perfilhado não fez prevalecer as "condições gerais" das apólices de seguros em detrimento das suas "condições particulares". Em face da dificuldade apresentada pela aparente contradição em presença, fruto da imperfeita enunciação do "objecto da garantia", foi este Supremo Tribunal forçado a proceder à interpretação do objecto dos seguros dos autos, tendo concluído que os mesmos garantem o cumprimento dos contratos de locação financeira, respeitando, pois, o princípio da liberdade contratual enunciado no artigo 405º, e também o disposto no artigo 17º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro.
Conclui-se, assim, que os contratos garantidos pelos seguros-caução foram os contratos de locação financeira celebrados entre a Autora e a Ré B. Os "protocolos" referidos pelas recorrentes não podem relevar, em termos diversos, quanto à determinação do sentido, conteúdo e alcance da garantia prestada pela seguradora, além do mais porque apenas vinculam as partes que os subscreveram - a B e a Ré C. Diga-se que tem sido este o entendimento adoptado por este Supremo Tribunal em situações em tudo idênticas às dos presentes autos (10) Cfr., v. g., além do Acórdão de 22-02-2000, Revista nº 995/99, os Acórdãos de 16-05-2000, Revista nº 134/00; de 23 de Maio de 2000, Agravo nº 149/00; e de 11-07-2000, Revista nº 1630/00-1. Nos arestos proferidos nas Revistas acabadas de enunciar foi tratada, com desenvolvimento, a questão (agora destituída de relevância), que consistia em saber se o acordo celebrado entre a B e a Ré Seguradora excluía, ou não, a possibilidade de a Autora responsabilizar a B pelo incumprimento das suas obrigações inerentes à locação financeira, tendo-se respondido, sem margem para dúvidas, no sentido negativo, ou seja, no sentido de que, da celebração dos contratos de seguro-caução entre a B e a Companhia Seguradora, não poderia resultar qualquer exclusão de responsabilidade da "B" perante a Autora, tanto mais quanto esta nunca disse aceitá-la, como exige o artigo 595º.).
Segunda Questão:
Estando as obrigações assumidas pela B perante a A garantidas pelo seguro-caução, poderia a A. accionar aquela locatária ou estaria vinculada, como a Recorrente pretende, a só agir em relação à C, atenta a qualidade, que a esta cabe, de garante das obrigações da Ré?
A esta questão se reconduz, como se disse, a primeira das questões colocadas pela Autora, traduzida no problema de saber se, com fundamento na existência da garantia prestada pelas RR. Seguradoras, se justifica, ou não, a absolvição da Ré B do pagamento das rendas vencidas e vincendas.
Daí que, analisada, sob uma perspectiva teórica, a questão enunciada a itálico, a solução da questão colocada pela Autora seja uma simples consequência dos resultados, entretanto, alcançados.
Vejamos.
1 - O entendimento da Ré/Recorrida B assenta em que o seguro-caução por ela celebrado com a C era uma garantia autónoma, à primeira interpelação, por isso, completamente independente do contrato de locação financeira que lhe estava na base e traduzindo uma transferência da responsabilidade contratual derivada do não cumprimento, responsabilidade essa que, pelo exposto, só à seguradora caberia.
A questão em apreço impõe uma breve aproximação teórica a respeito do que é uma garantia autónoma automática, ou à primeira interpelação, ou à primeira solicitação.
1.1. Se é verdade que o património do devedor constitui a garantia geral das suas obrigações, uma vez que, pelo respectivo cumprimento, respondem todos os seus bens susceptíveis de penhora (artigo 601º), o certo é que também se encontram legalmente previstas garantias especiais que, podendo ser reais e pessoais, implicam a afectação prioritária de determinados bens ao pagamento de determinada dívida ou a responsabilização de um terceiro pelo cumprimento da obrigação do devedor originário.
Centrando a nossa atenção nas garantias pessoais - justamente aquelas em que ocorre esta responsabilização de um terceiro -, destacam-se as figuras da fiança, do mandato de crédito e do aval, todas caracterizadas pela sua acessoriedade em relação à obrigação principal que por elas é garantida, o que significa que as suas validade e eficácia ficam, em maior ou menor medida, dependentes desta última. É o que, quanto à fiança, resulta dos artigos 627º, nº 1, 632º, nº 1, e 637º, nº 1; ou, no respeitante ao mandato de crédito, o que se extrai da responsabilização do mandante como fiador - artigo 629º, nº 1; sendo que, no que se refere ao aval, a falada acessoriedade, embora limitada no seu alcance aos vícios de forma da obrigação cartular principal, é ainda consagrada no artigo 32º da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças.
No entanto, as necessidades do tráfico económico moderno, apoiadas no princípio da liberdade negocial que caracteriza a generalidade dos ordenamentos jurídicos e que, no nosso, se configura, no artigo 405º, como referência matricial, proporcionaram o aparecimento de figuras convencionadas de garantias pessoais que são autónomas em relação à obrigação garantida na medida em que, através dela, o garante " (...) assegura ao credor determinado resultado, assumindo o risco da não verificação do mesmo, qualquer que seja, em princípio, a sua causa" (11) Cfr. António Pinto Monteiro, "Cláusula Penal e Indemnização", Almedina, Coimbra, 1990, pág. 265.).
Como se salientou no já referido Acórdão de 22 de Fevereiro passado, a responsabilidade do garante existe, idónea para satisfazer os interesses do credor garantido, ainda que o não cumprimento pelo devedor se deva a impossibilidade não culposa ou seja uma consequência da invocação de vícios intrínsecos da sua obrigação.
Na verdade, "enquanto a fiança é prejudicada, na sua eficácia, pela característica da acessoriedade, o contrato de garantia, em virtude da autonomia que, por definição, o individualiza, torna inoponíveis ao beneficiário as excepções fundadas na relação principal (v.g.: nulidade do contrato resultante, por exemplo, da violação de regras imperativas do ordenamento a que pertence o devedor; sobrevinda impossibilidade de cumprimento do contrato)" (12) Cfr. Almeida Costa e Pinto Monteiro, Parecer publicado na CJ, Ano XI, 1986, Tomo 5, pp. 15 e ss., maxime, p. 18.).
Como observa Ferrer Correia, a diferença (entre a "garantia" e a "fiança") "reside no facto de a garantia, diferentemente da fiança, não ter natureza acessória em relação à obrigação garantida: uma certa autonomia em relação a esta obrigação (absB hoc sensu) constitui seu traço específico" (13) Cfr. "Notas para o Estudo do Contrato de Garantia Bancária", Revista de Direito e Economia, 8, 1982, separata, págs. 247 e ss.).
Chegou-se assim à Bankgarantie, que, no já referido Parecer, vem definida como o "contrato unilateral destinado, em regra, a garantir a prestação de terceiro perante o credor beneficiário, em termos de assegurar a este último que receberá sempre a prestação ou a soma contratualmente estabelecida, e isto não só em caso de incumprimento do terceiro, mas igualmente quando a obrigação principal não chegou a existir ou se tornou posteriormente impossível".
"Só que o contrato de garantia, assim definido, não eliminava todos os riscos inerentes à actividade comercial: a descoberto ficava ainda o risco de ter de se provar a ocorrência dos pressupostos que condicionam o direito do beneficiário - o que poderia atrasar consideravelmente o pagamento da soma estipulada".
Foi com o objectivo de neutralizar este inconveniente, que se concebeu a cláusula do pagamento à primeira solicitação, nos termos da qual o garante "está obrigado a satisfazê-la de imediato, bastando para tal que o beneficiário o tenha solicitado nos termos previamente acordados. É o devedor que, depois de reembolsar o garante da importância por este paga ao beneficiário, tem o ónus de intentar procedimento judicial para reaver a importância, caso o credor/beneficiário haja procedido sem fundamento" (14) Cfr. Parecer citado na nota 10, p. 19.).
1.2. Resulta do exposto que nada obsta que o seguro-caução seja o meio usado para a concessão de uma garantia com este alcance. Só que, para assim ser, é necessário que se verifique uma de duas circunstâncias: ou a de ser esse o meio típico em face da lei; ou, não sendo este o caso, a de tal conteúdo lhe ser atribuído convencionalmente.
A primeira das indicadas alternativas não tem verificação no nosso ordenamento. Na verdade, da regulamentação constante do Decreto-Lei nº 183/88 nada consta nesse sentido.
Quanto à segunda hipótese, o juízo a fazer depende, não da repetição ad nauseam, feita pela Recorrida, de que se está perante uma garantia "(...) autónoma, à primeira interpelação" (15) Cfr., v. g., as conclusões c), e), i), s), w), x), z), bb) e cc)., mas sim da análise do que estiver estipulado nas cláusulas do contrato, sejam elas as condições gerais ou especiais ou as particulares.
Exclui-se, desde logo, a inclusão de uma cláusula deste género nestas últimas condições, as quais apenas contêm a menção do prazo de 36 meses, decorrendo entre 18-05-93 e 17-05-96, o pagamento de 12 rendas trimestrais relativas ao veículo CB, a identidade do beneficiário, a indicação do capital garantido e do prémio e forma do seu pagamento.
Também nenhuma das condições especiais se refere ao assunto em apreço.
Importa, assim, proceder à análise das condições gerais, ressaltando as constantes dos artigos 2º, 8º, nº 2, e 11º, nºs 4 e 5, cujo conteúdo interessa, por isso, conhecer - cfr. fls. 23 e 24.
No artigo 2º, nº 1, diz-se que a seguradora garante ao beneficiário até ao limite do capital seguro o pagamento da importância que este devia receber do tomador do seguro em caso de incumprimento, por este, da obrigação garantida e que "por Lei, contrato ou convenção sejam susceptíveis de caucionamento, fiança ou aval". Mais se diz, no seu nº 2, que ficam salvaguardados os direitos do beneficiário nos precisos termos da garantia substituída pelo seguro-caução.
No artigo 8º, nº 2, estabeleceu-se que "o contrato caduca desde que se verifique a extinção da obrigação caucionada e/ou a extinção da obrigação a caucionar".
Por sua vez, no seu artigo 11º, nº 4, lê-se o seguinte: "O direito à indemnização nasce quando, após a verificação do sinistro, o tomador do seguro, interpelado para satisfazer a obrigação, se recusar injustificadamente a fazê-lo. E, no n 5 do mesmo artigo 11, consta o seguinte: "Ocorrendo o direito à indemnização, tal como definido no número anterior, o beneficiário tem o direito de ser devidamente indemnizado pela C no prazo de 45 dias a contar da data da reclamação".
A partir do conteúdo destas cláusulas podem retirar-se as seguintes consequências:
a) A propósito do artº 2º, e uma vez que não estamos perante qualquer obrigação que, por lei, devesse ser caucionada, afiançada ou avalizada, o sentido da garantia será apenas aquele que as partes determinarem por "contrato ou convenção", como se diz em termos, aliás, redundantes.
b) A propósito do artº 8º, nº 2, cumpre reconhecer que a caducidade do seguro-caução que ali se prevê é contraditória com a autonomia que a B repetidamente diz caracterizar a garantia por ela concedida;
c) A propósito do artº 11º, nºs 4 e 5, há que constatar que o circunstancialismo aí indicado como gerador do direito à indemnização é, pela sua complexidade, completamente contrário à ideia de que há lugar a uma obrigação de pagamento à primeira solicitação. Na verdade, em face das respectivas previsões, é forçoso concluir que sobre a Autora recairia o ónus de alegar e provar a recusa injustificada de pagamento por parte da Ré B.
Tratando-se, como se trata, de um facto constitutivo do direito do beneficiário, face aos princípios comuns do regime probatório material, o beneficiário terá em princípio de o provar.
Ou seja: o seguro-caução que se nos apresenta reconduz-se à natureza de uma garantia simples, parcialmente dependente do negócio fundamental, tal como Ferrer Correia a apresenta a páginas 251 do seu citado estudo (18) Não se acompanha, assim, a posição do acórdão recorrido no que se refere à qualificação do concreto "seguro-caução" de que nos ocupamos. Tal não tem, porém, consequências relativamente à solução da causa.).
Ora, como ensina este Autor, "(...) por tal modo, a obrigação do garante perde, se não tudo, algo da sua natureza abstracta, passando a depender em certa medida da relação entre o devedor principal e o beneficiário" (19) Ferrer Correia, loc. cit., pp. 251 e 252.).
Sendo assim, não podemos aceitar que a outorga do contrato que lhe deu origem envolvesse uma assunção da dívida da Ré B pelas Rés Seguradoras em termos excluidores da responsabilidade da 1ª Ré perante a Autora, o que esta nunca disse aceitar, como exige o artigo 595º.
Não se pode, assim acompanhar, neste ponto, o entendimento do acórdão recorrido, considerando-se procedente a conclusão 16ª da revista das Rés Seguradoras.
Pelas mesmas razões, também procede a conclusão I do recurso da Autora. Com efeito, não obstante a garantia prestada pelas Seguradoras, a B continuou obrigada ao cumprimento do contrato de locação financeira.
Ora, em face do incumprimento verificado, cabe revogar, nessa parte, o acórdão recorrido, condenando-se a Ré B, solidariamente com as Rés Seguradoras, já condenadas no acórdão recorrido em termos que se mantêm, a pagar à Autora - A - o quantitativo correspondente à renda vencida e não paga e às rendas vincendas, no valor, respectivamente, de 2420,57 euros (485280 escudos) e de 12540,56 euros (2514156 escudos), sendo devidos juros às taxas indicadas no acórdão recorrido (primeiro parágrafo).
Terceira Questão:
Saber se há ou não lugar à restituição à Autora do veículo locado pela R. B.
Em face do incumprimento contratual por parte da Ré B e do consequente direito de resolução do contrato de locação, a Autora tinha o direito de exigir a entrega do veículo. Isto é, a restituição do veículo pela B é uma consequência natural da resolução do contrato, quer por efeito da aplicação conjugada dos artigos 433º e 289º do Código Civil, quer por força do artigo 24º, alínea f), do Decreto-Lei nº 171/79, de 6 de Junho.
Como se escreveu no Acórdão de 22-02-2000, proferido na Revista nº 995/99, já citado, para o caso de ter sido declarado o direito da Autora a obter da C o pagamento das doze rendas trimestrais devidas pela B, "sempre haveria que atentar em que delas não resultava a aquisição, por esta, do direito de propriedade sobre o veículo; esta aquisição só resultaria de uma opção sua no sentido de efectuar o pagamento do valor residual e da sua concreta efectivação, nos termos do artigo 22º, al. e), do referido diploma legal, sem o que tal restituição sempre seria devida".
Assim, a restituição do veículo, ainda que cumulada com o pagamento das rendas vencidas e não pagas, nunca poderia traduzir um enriquecimento sem causa, justamente porque tem causa legalmente bem definida (20) Neste sentido, vejam-se o já citado Acórdão proferido na Revista nº 995/99, já citado.
No entanto, no caso a que se refere o Acórdão de 22-02-2000 (e, bem assim, na situação tratada pelo Acórdão de 16-10-2001, proferido na Revista nº 2421/01-1), a A. não pediu o pagamento das rendas vincendas, mas apenas, a título de indemnização, como convencionado, 20% da soma das rendas não vencidas com o valor residual.
Não assim no presente caso, em que, na sequência do pedido, as RR. Seguradoras foram condenadas pelo Tribunal a quo, a pagar à A. não só a prestação vencida mas também as rendas vincendas, condenação agora tornada extensiva, atentas os fundamentos oportunamente expostos, à Ré B.
Neste caso, cumular, no concernente a esta Ré, tal condenação não só com a condenação no pagamento do valor residual, também decidida pelo acórdão recorrido, mas também com a condenação à restituição do veículo, corresponderia a uma situação de manifesto enriquecimento sem causa da A., com o correspondente empobrecimento da Ré B e do eventual locatário de ALD que estivesse a cumprir pontualmente o contrato - cfr. o artigo 473º do C.C.
A exigência de restituição do veículo, num tal condicionalismo, seria mesmo passível de configurar uma situação de abuso de direito, por manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé ou pelo fim social do direito - artigo 334º, também do C.C.
Improcede, assim, a pretensão da Autora relativamente à restituição do veículo.
Termos em que, na parcial procedência das revistas da Autora A - Sociedade Portuguesa de Locação Financeira, S.A. (hoje, ..., S.A.) e das Rés Companhia de Seguros C, S.A. e Companhia de Seguros D, S.A., revoga-se, em parte, o acórdão recorrido, condenando-se a Recorrida B - Comércio de Automóveis, S.A. a, solidariamente com as restantes Rés, pagar à Autora o quantitativo correspondente à renda vencida e não paga e às rendas vincendas, no valor, respectivamente, de 2420,57 euros ( 485280 escudos) e de 12540,56 euros ( 2514156 escudos), sendo devidos juros às taxas indicadas pelo acórdão recorrido, cujos demais termos se confirmam.
Custas, neste Supremo e nas instâncias, pela Autora e pelas Rés, na proporção dos respectivos decaimentos.
Lisboa, 19 de Março de 2002.
Garcia Marques,
Lemos Triunfante,
Pinto Monteiro.