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SEGURADORA
ACÇÃO DE REGRESSO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
Sumário
I - A seguradora, no exercício do direito da acção de regresso, previsto na alínea c), do artigo 19, do D.L. n. 522/85, de 31 de Dezembro, tem de provar, apenas, que foi condenada a indemnizar, por culpa ou pelo risco e, que o condutor segurado era portador de taxa de alcoolémia superior à legal, agindo, assim, sob a influência do álcool. II - Não tem de provar o nexo de causalidade entre tal facto e, o acidente ocorrido.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. A "Companhia de Seguros A, S.A. instaurou em 10-2-2000 acção com processo ordinário pedindo a condenação de B no pagamento da quantia de 4.560.284$00, com juros legais a contar da citação, com fundamento no direito de regresso como seguradora da responsabilidade civil por ter pago aquela quantia a título de indemnização ao lesado em acidente de viação provocado por culpa exclusiva do R. que conduzia o veículo sob o efeito do álcool.
O R. impugnou os fundamentos da acção e concluiu pela absolvição do pedido.
No saneador-sentença (fl. 123) o tribunal julgou a acção improcedente.
A A. recorreu da decisão, mas a Relação de Coimbra, por acórdão de fls. 149 e seg., confirmou a sentença.
A A. pede revista, concluindo nas alegações:
"1) O recorrido conduzia sob a influência do álcool, pois apresentava uma taxa de alcoolémia de 0,95 g/1
2) O álcool acima de certos limites reduz consideravelmente as faculdades psicológicas elementares, absolutamente necessárias à condução.
3) A influência do álcool nunca pode ser estranha ao comportamento do condutor.
4) No estado de alcoolémia em que se encontrava o recorrido (0,95 g/l), já se atinge estado de grande euforia, os reflexos são acentuadamente perturbados e o tempo de reacção é extraordinariamente prolongado.
5) De qualquer modo, o direito de regresso da ora recorrente não está dependente de qualquer nexo de causalidade entre encontrar-se o recorrido sob influência do álcool e o acidente.
6) O que é decisivo para que tal direito exista é simplesmente que o recorrido apresentasse uma taxa de álcool igual ou superior a 0,50 g/l, como é o caso (n° 2 do art.° 81 do Código da Estrada).
7) O citado n° 2 do art. 81 do Código da Estrada consagra uma verdadeira presunção legal já que, ao consagrar o limite de 0,50 g/1 como o mínimo, está claramente a presumir que, quem se encontrar com uma taxa superior àquela, não está em condições de conduzir sem fazer perigar os restantes condutores.
8) Assim, cabe àquele que possuir uma taxa de álcool no sangue superior a 0,50 g/1 provar que aquela taxa não foi a causa directa e necessária do acidente.
9) Neste caso concreto, o ónus da prova do nexo causal entre o acidente e a taxa de 0,95 g/1 cabe ao recorrido e não à recorrente.
10) É, por conseguinte, o recorrido que tem que provar que o facto de conduzir com 0,95 g/1 não foi a causa directa do acidente, bastando à recorrente alegar e provar a taxa de 0,95 g/l, o que aliás aconteceu.
11) O entendimento contrário colocaria a recorrente numa situação de verdadeira prova impossível.
12) Não pode, pois de forma alguma, estar a recorrente onerada com a realização de uma prova "quase" impossível.
13) O mesmo direito de regresso existe no caso de condução sem habilitação legal para o efeito em que é ainda mais notória a falta de nexo de causalidade entre a inexistência da carta de condução e o acidente, sendo certo que ambas as situações estão previstas na mesma alínea - c) do art. 19° do DL 522/85, de 31/12.
14) O que se pretende punir é o desvalor da acção (o colocar-se o condutor no estado de influência do álcool) e não o desvalor do resultado.
15) O acórdão recorrido violou, assim, a alínea c) do art.° 19° do DL 522/85, de 31/12 e o n° 2 do art.° 81 do Código da Estrada.
O R. não alegou.
2- Matéria de facto fixada no acórdão recorrido:
1) No dia 12 de Junho de 1989, cerca das 21H45, em Coimbra, na via de ligação entre o Bairro da Solum e o lugar de Chão de Bispo, ocorreu um embate entre o automóvel ligeiro de matrícula HT, de C, conduzido pelo Réu B, e o ciclomotor de matrícula CBR, de D, por ele conduzido.
2) A A. tinha celebrado com o R. um contrato de seguro titulado pela apólice n° 833814, pelo qual assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo HT.
3) Em consequência desse embate, na acção ordinária n° 142/96, do 3° Juízo do extinto Tribunal de Círculo, por decisão transitada em julgado, foi a A. condenada a pagar àquele D, a quantia de 2.572.450$00, acrescida de juros no montante de 1.987.834$00, indemnização esta que satisfez.
4) Nessa acção ficou apurado que o R. conduzia com uma taxa de alcoolémia de 0,95 g/1, não tendo ficado apurada a culpa efectiva de qualquer um dos condutores, tendo a seguradora sido condenada por força da presunção de culpa derivada do art. 503° do CC para o seu segurado.
5) Nessa acção não foi alegado nem provado que o embate derivasse da condução sob influência do álcool do Réu B.
III- A questão a decidir é a do direito de regresso da seguradora, p. na alínea c) do art. 19 do DL n. 522/85, de 31 de Dezembro, por condução sob influência do álcool do veículo causador do acidente.
Convém começar a abordagem da questão recordando o regime vigente até 1 de Janeiro de 1980, data da entrada em vigor do DL nº 408/79, de 25 de Setembro (cfr. o art. 31), que institucionalizou o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
O Código da Estrada de 1954, consagrava um seguro de responsabilidade civil por acidentes de trânsito facultativo (art. 57, n. 1) excepto relativamente à exploração de transportes colectivos (de passageiros ou de mercadorias ), em alternativa com caução idónea (nº 2 do art. 57) e à concessão de cartas de condução de veículos automóveis a menores (nº 1 do art. 47). Igualmente se exigia seguro para o licenciamento de automóveis ou motociclos de aluguer sem condutor (art. 9, nº 4 do DL nº 28/74, de 31 de Janeiro). O veículo que tivesse dado causa a um acidente seria apreendido se proprietário ou o seu representante não provasse que transferira a sua responsabilidade para uma companhia de seguros ou prestasse caução - art. 47, n. 3 do citado C. Estrada.
Nos termos da apólice uniforme do seguro de responsabilidade civil automóvel, aprovadas pela Inspecção de Crédito e Seguros, o contrato de seguro garantia a responsabilidade pelas indemnizações que pudessem ser exigidas ao segurado por prejuízos ou danos causados a terceiros, na sua integridade física ou património, em consequência de acidente causado pelo veículo referido na apólice. As cláusulas eram idênticas para todos os contratos celebrados - salvo no que se referia às particulares, facultativas. No art. 26 daquela apólice previam-se causas de exclusão de responsabilidade, entre as quais: condução sem carta (a); prejuízos causados pelo segurado, ou pessoa por quem ele seja responsável, intencionalmente ou estado de embriaguez ou demência (b e c); prejuízos causados em serviço diferente ou de maior risco que o indicado na apólice (g). (1)
Estas cláusulas eram consideradas válidas, de acordo com o princípio da liberdade contratual e no entendimento de que a inclusão da condução sem carta ou em estado de embriaguez aumentaria substancialmente os riscos e contraria a ordem jurídica. (2)
O seguro de responsabilidade automóvel não era efectuado em benefício dos sinistrados, destinava-se apenas a transferir do segurado para a seguradora a obrigação de pagar a indemnização relativamente aos riscos de circulação do veículo, na medida em que estivessem cobertos pela apólice.
Como assinalava o relatório do DL nº 408/79, a institucionalização do seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel procura "remediar as carências e as gritantes injustiças que a não obrigatoriedade do seguro automóvel de responsabilidade civil determinava, sendo um factor importante na protecção dos legítimos interesses dos cidadãos". A mesma ideia é reiterada no vigente DL nº 522/85 (3), em cujo preâmbulo se refere que "a institucionalização do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel revelou-se uma medida de alcance social, inquestionável, que, com o decurso do tempo apenas impõe reforçar e aperfeiçoar, procurando dar uma resposta cabal aos legítimos interesses dos lesados por acidentes de viação".
Por esse instrumento jurídico, foi conferido um efectivo direito à reparação dos danos sofridos pelas vítimas de acidentes de viação, ainda que causados pelos autores de furto, furto de uso e roubo do veículo ou dolosamente provocados (nº 2 do art. 8), ou em situação de garantia de seguro suspensa por falta de pagamento de prémio (n. 2 do art. 6 do DL nº 162/84, de 18/05). Atribuiu mesmo um direito de acção directa do lesado contra a seguradora (art. 29, n. 1) e consagrou um numerus clausus de excepções oponíveis àquele pela seguradora (art. 14).
Em contrapartida, conferiu à seguradora, nas situações taxativas previstas nas diversas alíneas do art. 19, um direito de regresso contra: o causador do acidente que o tenha provocado com dolo (a); os autores, cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente (b), o condutor se não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado(c); o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda da carga decorrente de deficiências de acondicionamento(d); o tomador do seguro, nos termos do n. 2 do art. 6 do DL n. 162/84 de 18/05 (e) ; o responsável pela apresentação periódica que não tenha cumprido a obrigação decorrente do disposto no nº 2 do art. 36 do CE e diplomas que o regulamentam, excepto se provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo (f).
Na alínea c) estão previstas algumas situações de risco agravado, tais como a condução sob a influência do álcool ou sem habilitação com a respectiva carta, que no regime do seguro facultativo seriam fundamento de exclusão de responsabilidade.
Diz-nos a ciência médica que, não obstante ser requisito da "intoxicação legal" [E.U.A.] a concentração de pelo menos 80 a 100 mg/dL (ou 0,8 1,0 g/l) são notadas alterações comportamentais, psicomotoras e cognitivas a níveis tão baixos como 0,2 a 0,3 g/l (i.e. depois de um a dois copos) (4)Harrisson’s "Principles of Internal Medicine, Volume 2, 12th edition, pág. 2147..
Por isso é que, seguramente atenta aos dados da ciência médica, veio a Lei nº 3/82, de 29 de Março, estabelecer no art. 1:
"1. É proibida a condução de veículos com e sem motor, em via pública ou equiparada, por indivíduos sob a influência de álcool.
2. Para efeitos do disposto no número anterior considera-se estar sob a influência do álcool todo o condutor que apresentar uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 0,8 g/l".
Este nível de alcoolemia foi reduzido para 0,5 g/l pelo DL nº 124/90, de 14 de Abril (cfr. art.º 1º), mas era o anterior que estava em vigor em 12.06.1989, data em que ocorreu o acidente.
Segundo o disposto no art. 2, nº 2, 3 e 4 daquele diploma, a detecção de uma taxa de alcoolemia igual ou superior à indicada, impedia o seu portador de iniciar ou continuar a condução durante 12 horas, sob pena de desobediência qualificada.
Nos termos daquela alínea c) a seguradora tem direito de regresso contra o condutor "se tiver agido sob a influência do álcool", expressão que corresponde a "condução sob influência do álcool" ou seja do condutor que "apresentar uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 0,8 g/l".
A lei não fala de qualquer nexo de causalidade para o exercício do direito de regresso da seguradora contra o condutor, que pode ou não coincidir com o tomador do seguro.
Não tem o mínimo apoio no texto da lei uma tal exigência. A ratio legis reside no risco agravado da condução sob o efeito do álcool, conforme resulta dos ensinamentos da ciência médica. Uma vez que a seguradora não pode opor ao lesado a exclusão da responsabilidade pela indemnização, dada natureza do seguro obrigatório, a lei confere-lhe o direito de regresso contra o condutor que agiu sob a influência do álcool ou seja que conduziu com uma taxa de alcoolemia igual ou superior ao mínimo legal.
Não se trata de uma presunção legal de culpa do condutor, ao contrário do que acontece com a hipótese prevista na al. f) do mesmo art. 19. O lesado tem sempre que comprovar na acção de indemnização os pressupostos da responsabilidade civil, entre eles o nexo de causalidade e a culpa ou o risco.
A seguradora no exercício da acção de regresso tem de provar apenas que foi condenada a indemnizar por culpa ou pelo risco e que o condutor era portador de taxa de alcoolemia superior à legal, agindo assim sob a influência do álcool. Impor à seguradora o ónus da prova do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente seria esvaziar, na totalidade, o conteúdo do direito de regresso, quando a ingestão de álcool não é, segundo o sentido da lei, irrelevante para o desencadear do acidente seja por culpa do condutor ou pelo risco.
Deste modo, tendo a seguradora provado que o R. conduzia o veículo causador do acidente com a taxa de alcoolemia de 0,95 g/l, assiste-lhe o direito em via de regresso obter daquele a indemnização que foi condenada a satisfazer ao lesado.
Decisão:
- Concede-se a revista e, revogando-se o acórdão recorrido e a sentença de primeira instância, julga-se a acção procedente e condena-se o R. no pedido.
- Custas neste Supremo e nas instâncias pelo R.
Lisboa, 18 de Abril de 2002.
Nascimento Costa. (Vencido - Segue Declaração de Voto).
Dionísio Correia,
Quirino Soares,
Araújo de Barros,
Neves Ribeiro. (Vencido conforme ao voto que antecede).
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(1) Cfr. sobre o exposto, "Seguro da Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação - Da Natureza Jurídica, pág. 55/66".
(2) Cfr. ª e obra citada na nota anterior, pág. 65.
(3) Diploma a que respeitam os preceitos a citar sem outra menção.
(4) Harrisson’s "Principles of Internal Medicine, Volume 2, 12th edition, pág. 2147.
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DECLARAÇÃO DE VOTO
Como relator, elaborei projecto de acórdão negando a revista.
Transcrevo desse projecto:
«Defende a Autora que compete ao Réu o ónus da prova de ausência de nexo de causalidade entre a taxa de alcoolémia apresentada e a condução que levou ao acidente, ou que nem é necessário provar esse nexo de causalidade.
Continuamos seguindo orientação contrária.
Como tem entendido uniformemente este Tribunal (1), não basta provar que o condutor apresenta uma taxa de álcool no sangue superior à prevista na lei.
Pelo facto de se punir quem conduzir com taxa de álcool no sangue superior a 0,50 g/l não se segue necessariamente que exista nexo de causalidade entre este facto e acidente eventualmente ocorrido.
Terá o autor de provar o nexo de causalidade entre ambas as ocorrências.
O acidente pode dever-se a outros factores, que não a ingestão de álcool pelo condutor demandado.
Aliás, como foi salientado já em alguns dos acórdãos citados, varia muito a capacidade alcoólica de cada um.
A ingestão de álcool pode ter sido irrelevante para o desencadear do acidente.
Seria demasiado gravoso para o segurado penalizá-lo nos termos pretendidos pela Autor sem se ter provado aquele nexo de causalidade.
Se a prova positiva pode ser difícil para as seguradoras mais difícil seria a prova negativa para os segurados.
Essa sim seria verdadeira "prova diabólica".
Deve por isso a seguradora ter o cuidado de alegar factos tendentes a demonstrar o nexo de causalidade.
A jurisprudência mais recente deste Tribunal por nós conhecida continua na mesma orientação (2).
Ilídio Gaspar Nascimento Costa.
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(1) ver acórdãos de 4-3-97, rec. 87728, 28-11-96, rec. 364/96, 7-10-97, rec. 333/97, 23-9-97, rec. 102/97, 17-6-97, rec. 115/97, acórdãos de 14-1-97, in Col. Jur. V, I, pág. 39 e 57.
(2) citam-se os acórdãos de 8-3-99, rec. 706/99, 22-2-2000, rec. 1147/99, 20-2-2001, rec. 4035/00, 24-2-99, rec. 34/99, 22-2-2000, in BMJ 494, 325, onde se tecem largos considerandos justificativos da interpretação aqui feita da lei, de 30-10-2001, rec. 2827/01.