PRÉDIO URBANO
COMODATO
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
MORA
CLÁUSULA PENAL
CLÁUSULA LEONINA
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
Sumário

I - Se num contrato de comodato de imóvel por um ano, se convenciou a possibilidade da respectiva prorrogação até três anos «por mútuo acordo», acordo que não chegou a ser firmado, a obrigação de restituir o imóvel ao comodante possuía data certa para cumprimento (a data / terminus desse 1º ano) sendo que a única forma de afastar a obrigação de restituição naquela data era a prorrogação do comodato por mútuo acordo, diferindo o cumprimento de tal obrigação pelo prazo da prorrogação.
II - Tendo essa obrigação de restituição prazo certo, uma vez ultrapassado esse prazo sem que haja sido feita tal entrega pelo comodatário, ficou este imediatamente constituído em mora (art.º 804, n. 2 do C. Civil), sem necessidade de ser "judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir" - conf. na al. a). do n. 2 do art.º 805 desse mesmo código.
III - Não tendo havido prorrogação do contrato de comodato, o título que legitimava a ocupação do imóvel pelo comodatário viu esse seu efeito jurídico extinto na data aprazada, pelo que a ocupação do imóvel após o decurso do 1º ano passou a ser abusiva, no sentido de feita sem qualquer legitimidade.
IV - Se acordada uma cláusula penal de 1000 contos por cada mês completo de atraso na restituição do prédio ao comodante ("stipulatio peanae") , fixado se encontra "ex-ante" o montante da indemnização exigível pelos prejuízos sofridos pelo comodante, em caso de mora na entrega do prédio (art.º 810, n. 1 do C. Civil).
V - Apurado que por mor da detenção ilícita do imóvel o comodante ficou impedido de lhe dar qualquer utilização ou destino lucrativo, designadamente o de o dar de arrendamento e até mesmo de o vender pelo melhor preço, manifesto se torna que essa falta de entrega oportuna é em si causadora de prejuízos.
VI - Demonstrando-se que o valor desse potencial arrendamento nunca seria inferior a 1000 contos mensais, há que concluir que aquela "cláusula penal", não excede o "valor do prejuízo" derivado do incumprimento pelo comodatário nos termos e para os efeitos do n. 3 do art.º 811 do C. Civil, não sendo pois de carácter abusivo ou leonino.

Texto Integral

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

1 - O "A", Réu na acção declarativa com processo ordinário, que lhe moveu "B", e que correu termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Barcelos, inconformado com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de Junho de 2001, que confirmou o saneador-sentença, em que condenara o Réu nos pedidos a) e b) da petição inicial e que apenas concedeu provimento parcial à apelação interposta da sentença final, reduzindo o montante da indemnização a pagar pelo Réu a 15.000.000$00, acrescidos de 1.000.000$00 por mês, desde Novembro de 1999 até à data da efectiva entrega do imóvel ocupado à Autora, dele veio recorrer, de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça.
O Recorrente apresentou alegações, onde formulou conclusões, em que suscita as seguintes questões:
O douto Acórdão recorrido enferma de nulidade - arts. 668, n. 1, al. d), 1ª parte, e 716 do CPC -, por omissão de pronúncia, pois não "valorou os meios probatórios constantes dos autos" e houve "factos alegados pelo réu, de interesse para o esclarecimento da verdade e para a boa decisão da causa, nomeadamente os referenciados na reclamação da douta especificação e questionário", que "não foram especificados uns e não quesitados outros", e, apesar de "constar da parte final do douto despacho que desatendeu a referida reclamação, que o perguntado no quesito 1º comportará o bom ou degradado estado do prédio" em ordem a aferir do valor do seu eventual arrendamento, a "sentença da 1ª instância não se pronunciou sobre o estado degradado do mesmo".
O réu nunca ocupou abusivamente o prédio em questão, já que "entre a autora e réu foi celebrado, em 16 de Julho de 1996, o contrato de comodato junto à petição inicial, pelo qual foi cedido ao réu, a título gratuito, e pelo prazo de um ano, com início em 1 de Maio de 1996, o referido prédio", que se podia renovar até ao limite de três anos, ou seja, até 1 de Maio de 1999 e, por tais motivos, não se pode invocar prejuízos nem invocar fosse abusiva e, consequentemente, ressarcível a sua ocupação ou utilização até àquele limite de três anos.
O réu propôs à autora a aquisição por compra do prédio em questão e, ainda o seu arrendamento por um período de tempo limitado e, na hipótese de não ser viável a sua compra e venda nem o seu arrendamento, a prorrogação do prazo do contrato, ainda que a título oneroso e em termos a acordar, pelo que o montante ressarcitório peticionado, além de exorbitante, é desajustado e leonino.
E, embora se afirme que o fez "violação e errada aplicação ou interpretação da lei substantiva e da lei processual", na verdade o Recorrente só invoca expressamente terem sido violadas as "disposições legais contidas nos arts.º 511, 653, 659, 668, ns. 1. al d) e 3, e 716 do CPC"..
Termina o Recorrente, pedindo a revogação do acórdão recorrido e, consequentemente, "reduzindo-se o montante indemnizatório peticionado e limitando-se o mesmo ao período posterior a 2 de Maio de 1999 ou, no mínimo, ordenando-se a ampliação e esclarecimento da matéria de facto".
A Autora, e ora Recorrida, veio contralegar.
Na sua douta contralegação sustenta o acórdão recorrido e manifesta opinião de que o presente recurso é improcedente e deve ser rejeitado.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
2 - Importa, seguidamente, verificar a factualidade relevante para apreciar as questões suscitadas no presente recurso.
2. 1 - Da 2ª Instância vêm dados como provados os seguintes factos relevantes:
"1. Encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos a favor da autora o prédio "Casa de três pavimentos, garagem e logradouro", sito na Av. Dr. Sidónio Pais, desta cidade de Barcelos, a confrontar do Norte com Empresa C, do Sul com Av. Dr. Sidónio Pais, do Nascente com caminho e do Poente com Rua Cândido da Cunha, inscrito na matriz urbana sob o artigo 9880 e descrito na Conservatória do Registo predial de Barcelos sob o nº. 00286/880829 (alínea A) de Factos Assentes).
"2. Há mais de 1, 10, 20 e 30 anos que a autora, por si e antepossuidores, se encontra na total usufruição do referido prédio, designadamente habitando e ocupando a referida casa e cortando árvores, arbustos e flores no logradouro, realizando obras de conservação e tudo fazendo sempre com ciência e paciência gerais, por forma contínua, ininterrupta e reiterada, e na convicção de sobre tal prédio exercer o direito de propriedade, em seu único e exclusivo proveito e interesse (alínea b) de Factos Assentes).
"3. Em 16 de Julho de 1996, mediante contrato escrito, a autora, na qualidade de primeira outorgante, e ré, na qualidade de segunda outorgante, convencionaram que:
"A) - A primeira entrega à segunda o seguinte prédio: Casa de três pavimentos, garagem e logradouro sita na Av. Dr. Sidónio Pais, desta cidade de Barcelos, a confrontar do norte com Empresa C, do sul com Av. Dr. Sidónio Pais, do nascente com caminho e do poente com R. Cândido da Cunha, inscrita na matriz urbana sob o art. 988.
"B - A entrega é feita para que a segunda outorgante se sirva do mesmo prédio pelo prazo de um ano, com início no dia 1 de Maio de 1996 e término no dia 1 de Maio 1997, data esta última em que a segunda outorgante se obriga a fazer a entrega do identificado prédio à primeira, livre e devoluto de pessoas e coisas.
"C) - O referido prazo pelo qual é celebrado o presente contrato, poderá ser renovado por mútuo acordo das partes, até ao limite máximo de três anos, ou seja até um de Maio de mil novecentos e noventa e nove.
"Neste caso, mantém-se para a segunda outorgante a obrigação de restituição à primeira do citado imóvel na data termo de renovação, qualquer que ela seja.
"D) - A cedência do referido prédio é feita a título gratuito.
"E) - O imóvel emprestado destina-se a ser aplicado e utilizado pela segunda outorgante no exercício da actividade escolar no âmbito das competências do segundo outorgante não lhe podendo ser dada outra utilização.
"F) - A segunda outorgante obriga-se a observar as obrigações consignadas no art.º 1135 do Código Civil.
"G) - Todas e quaisquer obras realizadas ou a realizar no imóvel pela segunda ou terceira outorgante ficarão a fazer parte integrante do prédio sem direito de retenção de indemnização para a segunda outorgante, e só poderão ser feitas com autorização escrita da primeira outorgante.
"O segundo outorgante reconhece serem da sua responsabilidade as obras já realizadas no imóvel e sujeitas ao regime aqui estabelecido, constante da memória descritiva e planta que constituem o anexo 1 deste contrato e vai assinado pelos outorgantes.
"H) - A segunda outorgante obriga-se à sua custa a celebrar com uma Companhia de Seguros um contrato de seguro que cubra integralmente o risco de incêndio no referido imóvel com validade pelo período de duração deste contrato e das suas eventuais renovações, seguro esse a celebrar no prazo de cento e vinte dias a contar da presente data sob pena de, não o fazendo, assistir à primeira o direito de resolução imediato deste contrato.
"I) - Se a segunda outorgante não cumprir a sua obrigação de restituição do imóvel findo o prazo do contrato ou renovações, indemnizará a primeira outorgante com a quantia de um milhão de escudos por cada mês completo de atraso", alínea C) de Factos Assentes.
"4. Decorrido o primeiro ano de vigência do contrato, que terminou em 01 de Maio de 1997, a ré não efectuou a entrega do imóvel à autora, alínea D) de Factos Assentes.
"5. Em 8 de Julho de 1998, a autora, através do advogado signatário, endereçou à ré a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 17 e cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, a qual foi recebida pela ré, conforme documento de fls. 18 e cujo teor se dá reproduzido para todos os efeitos legais, alíneas E) e F) de Factos Assentes.
"6. Em 4 de Março de 1999, a ré endereçou à autora a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 19 e cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, a qual foi recebida pela autora, através do advogado signatário, reiterando que nunca lhe tinha dado o seu acordo à renovação do contrato em mérito, carta que a ré recebeu, conforme documentos de fls. 20 e 21 e cujo teor se dá reproduzido para todos os efeitos legais alíneas G) e H) de Factos Assentes.
"7. Atenta a área do imóvel, a sua localização e características, se autora arrendasse o imóvel dos autos, a renda que lhe seria paga nunca seria inferior a mil contos mensais (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
"8. A autora nunca se opôs expressamente à renovação do prazo do contrato mencionado em C) dos factos Assentes até 8 de Julho de 1998, data em que expressamente se opôs a tal renovação" (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
2.2 - Por ter arguida a nulidade do douto acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, há analisá-lo e verificar que "questões a resolver" nele se suscitaram e quais as decisões que nele se tomaram, em relação às questões invocadamente omitidas.
É de anotar que a omissão de pronúncia arguida se verifica, alegadamente, apenas em relação à apelação interposta da sentença final.
Nesta apelação suscitaram-se as seguintes questões:
- Se a base instrutória deve ser alargada a determinados factos alegado pelo Réu;
- Se houve omissão de pronúncia sobre o estado do imóvel;
- Se a indemnização era excessiva e se deveria ter sido limitada ao período posterior a 2 de Maio de 1999, havendo ainda duplicação na sentença da indemnização relativa ao mês de Outubro deste ano;
- Se o Réu utilizou abusivamente o imóvel.
A primeira daquelas foi apreciada nas folhas 12 e 13 do douto acórdão (que constituem as fls. 142 e 143 dos autos) e conclui-se que "para o desfecho da acção, atenta a causa de pedir e os pedidos formulados, era inócua a alegação" referente às suas diligências no sentido de, através da via negocial com a Autora, continuar a fruir o prédio ou a adquiri-lo e, no que diz respeito ao "montante dispendido com obras realizadas no imóvel", era irrelevante tal quesitação, porquanto o réu aceitou prescindir de qualquer indemnização pelas obras realizadas".
A segunda questão foi tratada a folhas 13 e 14 (fls. 143 e 144), ali se considerando que a quesitação do estado do imóvel, em que tivera de fazer obras no valor alegado de 10.000.000$00, "apenas podia relevar para se decidir se era excessiva a cláusula penal" e que a "sentença tratou tal ponto da matéria de facto, na perspectiva de saber se a cláusula penal era ou não excessiva, concluindo-se pela sua razoabilidade, ... inexistindo omissão de pronúncia.
Não importa agora apreciar o que aconteceu em relação às duas restantes questões, já que o acórdão recorrido não vem arguido de nulo, por omissão de pronúncia sobre elas.
3 - Começaremos por analisar a mencionada nulidade por omissão de pronúncia.
Nos termos da al. d) do n. 1 do art.º668, aplicável por força do art. 716, ambos do Cód. Proc. Civil, há nulidade da sentença se o juiz deixou de apreciar qualquer questão que devesse conhecer.
Esta nulidade está relacionada com o disposto no art.º 660 do Cód. Proc. Civil, constituindo a sanção para a sua inobservância.
Segundo este art.º 660 o tribunal deve apreciar, além das questões que possam levar à absolvição da instância (cujo conhecimento tenha sido relegado para final ou que sejam supervenientes), deve resolver, para além das que "a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso", todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (n.2).
Têm-se suscitado dificuldades em fixar o exacto conteúdo das "questões a resolver" que devem ser apreciadas pelo juiz na sentença, sendo certo que há acentuado consenso no entendimento de que não se devem confundir as questões a resolver, propriamente ditas com as razões ou argumentos, de facto ou de direito, invocados por cada uma das partes, para sustentar a solução que defende a propósito de cada "questão a resolver" (1), sendo certo que a nulidade não se verifica quando o juiz deixe de apreciar algum ou todos os argumentos invocados pelas partes, conhecendo contudo da questão.
É ainda de salientar que "questão a resolver", para os efeitos do art.º 660 do Cód. Proc. Civil, é coisa diferente de questão jurídica (v.g., determinação de qual a norma legal aplicável e qual a sua correcta interpretação (2)) que, como fundamento ou argumento de direito, pudesse (ou até, devesse) ser apreciada no âmbito da apreciação da "questão a resolver". A melhor resolução da "questão a resolver" deveria, porventura, levar à apreciação de várias "questões" jurídicas, como válidos argumentos e como fundamentos da decisão sobre a "questão a resolver"; Se o juiz não apreciar todas essas "questões jurídicas" e não invocar todos os argumentos de direito, que cabiam na melhor ou mais desejável fundamentação da sua sentença ou acórdão, mas vier a proferir decisão, favorável ou desfavorável à parte, sobre a "questão a resolver", haverá apenas fundamentação pobre ou, no máximo, falta de fundamentação, mas não omissão de pronúncia.
O Prof. Dr. Alberto dos Reis, a propósito do critério de reconhecimento do que se deve entender por "questão a resolver", pondera "as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado" (3). Deverá, assim, o juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas, além das que forem de conhecimento oficioso (4).
Ou seja, terá o intérprete a identificar, caso a caso, quais as "questões" que lhe foram postas e que deverá decidir. No caso dos recursos, esta análise recairá sobre as conclusões das alegações de recurso.
Ora, como se viu em 2.2, o douto acórdão recorrido apreciou e decidiu as questões, que o Recorrente lhe argúi de não se ter pronunciado, pelo que não sofre ele de omissão de pronúncia e, portanto, da nulidade arguida.
4 - Antes de ir mais adiante, há que fazer uma precisão sobre o âmbito do recurso de revista, já que o Recorrente termina pedindo, subsidiariamente, que se ordene "a ampliação e esclarecimento da matéria de facto".
E, ao longo das suas alegações e nas respectivas conclusões, o Recorrente alinha vários argumentos pretendendo demonstrar que os factos apurados são insuficientes, apontando mesmo vários argumentos tendentes a demonstrar o desacerto das decisões tomadas acerca de alguns dos factos apurados em julgamento (5).
Mas, segundo o disposto no art.º 722, n. 2 do Cód. Proc. Civil, o "erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista", excepto se houver violação de lei expressa "que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova".
Porém, não invoca o Recorrente que as instâncias tenham cometido violação de qualquer lei que exija uma certa espécie de prova, para alguns dos factos dos autos, nem que tivessem avaliado ilegalmente qualquer meio de prova produzido, a que a lei tenha fixado a força probatória (6) e não se vê, pela análise dos autos, que as instâncias tenham cometido tais violações da lei;
Assim, não se estando em presença de nenhuma das excepções fixadas na parte final deste n.º 2, teremos de concluir, como lucidamente aponta o Recorrido, que tudo o que, nas alegações de recurso, diz respeito à matéria de facto apurada, está fora do âmbito do recurso de revista e seja vedado a este Supremo Tribunal sindicá-la (7).
5 - Chegados a este ponto, há que apreciar as demais "questões" a resolver, postas pelo Recorrente e que, no essencial, consistem em saber:
Se a Autora pode invocar prejuízos ressarcíveis pela ocupação do imóvel até ao limite de três anos;
Se "montante ressarcitório peticionado, além de exorbitante, é desajustado e leonino".
5.1 - Começaremos por apreciar a questão jurídica de saber se a ocupação que o ora Recorrente vem fazendo do imóvel questionado era, até ao limite de três anos sobre o início da validade do contrato, abusiva ou se estava, de alguma forma, legitimada, já que só no caso de ela ser abusiva há lugar a indemnização.
Estando assente, e inquestionado, que o Recorrente está a ocupar e utilizar o imóvel da Autora, importa para aquele efeito, essencialmente, atender ao clausulado do contrato celebrado entre a Autora e o Réu, que é formal e substancialmente válido e cuja validade não foi questionada.
Não vem questionada a gratuitidade da cedência da utilização do imóvel, nem qualificação jurídica do contrato como comodato, que é conforme à lei.
Assim, interessa sobretudo o que foi convencionado nas cláusulas B e C, que têm o seguinte conteúdo.
"A entrega é feita para que a segunda outorgante se sirva do mesmo prédio pelo prazo de um ano, com início no dia 1 de Maio de 1996 e término no dia 1 de Maio 1997, data esta última em que a segunda outorgante se obriga a fazer a entrega do identificado prédio à primeira, livre e devoluto de pessoas e coisas - cláusula B).
"O referido prazo pela qual é celebrado o presente contrato, poderá ser renovado por mútuo acordo das partes, até ao limite máximo de três anos, ou seja até um de Maio de mil novecentos e noventa e nove.
"Neste caso, mantém-se para a segunda outorgante a obrigação de restituição à primeira do citado imóvel na data termo de renovação, qualquer que ela seja - cláusula C).
Como se estipulou naquela cláusula B), a obrigação para o Recorrente fazer a restituição do imóvel à Autora, está fixada, em princípio, para o dia 1 de Maio de 1997 e só assim não seria, se houvesse renovação do contrato, no máximo, até 1 de Maio de 1999.
Ora, as partes acordaram expressamente (e, se o não tivessem feito, isso resultava dos princípios gerais de direito civil) que a renovação do contrato devia ser feita "por mútuo acordo" de Autora e Réu.
A este respeito, invocou o ora Recorrente que, o contrato se podia prorrogar até ao limite máximo de três anos e que "nunca a autora se tinha oposto expressa e inequivocamente à renovação do prazo".
Isto significa, implicitamente, que nunca houve o previsto "mútuo acordo" entre as partes, com vista à prorrogação do prazo de validade do comodato, pois este equivale a existência de duas declarações de vontade, uma da Autora e outra do Réu, de conteúdo concordante, no sentido de que a utilização que este vinha fazendo do prédio, a título gratuito, se prolongava pelo prazo em que concordassem (desde mais uns dias até ao limite de dois anos (8), o que é coisa diferente de inércia e falta de oposição expressa da Autora, em que não há qualquer manifestação de vontade, nem qualquer acordo com a eventual vontade do Réu.
Como resulta da matéria comprovada, a Autora não fez qualquer oposição à continuação da ocupação do imóvel pelo Réu, até 8 de Julho de 1998.
Qual o relevo deste facto para apurar da legitimidade da ocupação que o Réu fez, após 1 de Maio de 1997, do imóvel?
Salvo o devido respeito, entendemos que nenhum.
Na verdade, convencionalmente, a obrigação de restituir o imóvel à Autora tinha data certa para cumprimento (1 de Maio de 1997) e única forma de afastar a obrigação de restituição do imóvel naquela data, era a prorrogação do comodato por mútuo acordo, diferindo o cumprimento de tal obrigação pelo prazo da prorrogação.
Constatado que aquela obrigação do Réu tinha prazo certo para cumprimento, uma vez ultrapassado este prazo sem que tenha feito tal entrega, ficou ele imediatamente constituído em mora (art.º 804, n.º 2 do Cód. Civil), sem necessidade de ser "judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir", como resulta do exposto na al. a), do n. 2, do art.º 805 deste Código.
Não tendo havido prorrogação do contrato de comodato, o título que legitimava a ocupação do imóvel pelo Réu viu esse seu efeito jurídico extinto na data atrás apontava, pelo que esta ocupação do imóvel passou, no dia 2 de Maio de 1997, a ser abusiva, no sentido de feita sem qualquer legitimidade e, ao que consta dos autos, assim se mantém.
Sobre este ponto, são oportunas algumas considerações co-adjuvantes da conclusão a que se chegou.
A prorrogação do contrato de comodato funciona, em relação ao caso em apreço, como uma excepção peremptória, cuja demonstração, segundo as regras da repartição do ónus da prova estabelecido no art.º342.º do Cód. Civil, cabia ao Réu, ora Recorrente (n. 2 deste artigo) (9).
Ora, o Réu não só cumpriu este seu ónus, como nem sequer fez a alegação dos factos integradores daquela excepção, pelo que contra ele correm os inconvenientes dessa omissão.
Nos termos da cláusula I) daquele contrato de comodato, "Se a segunda outorgante não cumprir a sua obrigação de restituição do imóvel findo o prazo do contrato ou renovações, indemnizará a primeira outorgante com a quantia de um milhão de escudos por cada mês completo de atraso", o que significa, a partir de 2 de Maio de 1997, o Réu se colocou na obrigação de indemnizar a Autora. Esta cláusula criando a obrigação do Réu indemnizar pela mora, está em conformidade com o estabelecido no art. 804.º n. 1 do Cód. Civil.
Não tem qualquer relevância impeditiva da qualificação da ocupação feita pelo Réu, como abusiva e sem título válido que a legitime e do consequente direito da Autora a ser indemnizada, o facto de o Réu ter feito várias propostas à Autora para encontrar outras soluções extrajudiciais para continuar na detenção e utilização do imóvel, pois a Autora não é obrigada a contratar com o Réu, seja o que for e menos ainda tem que aceitar as propostas que este lhe fez.
Também a pretendida expropriação, por utilidade pública, do imóvel questionado só produzirá efeitos a partir da sua efectivação, com publicação em "Diário da República", não tendo antes disso qualquer influência nos direitos invocados pela Autora e nas pretensões que formulou.
Pelo que acabou de se expor e sem necessidade de maiores desenvolvimentos, temos de concluir que a Autora tem direito a ser indemnizada pela ocupação abusiva que o ora Recorrente vem fazendo do imóvel em questão, desde 2 de Maio de 1997. Como só o Réu recorreu das decisões da 1ª e da 2ª instâncias, há que aceitar os limites temporais nelas fixados ao direito da Autora a ser indemnizada.
5.2 - Não vem questionado que Recorrida e Recorrente convencionaram, no contrato de comodato invocado, uma cláusula penal de 1.000.000$00 por cada mês de atraso na entrega do prédio à primeira, pelo que só cabe, agora, apreciar se a cláusula penal acordada é excessiva e, por isso, inválida.
A cláusula penal (stipulatio poence) serve justamente para as partes, por acordo, fixarem o montante da indemnização exigível pelos prejuízos sofridos pela Autora, em caso de mora na entrega do prédio (art.º 810, n. 1 do Cód. Civil), evitando-se, por esta via, dúvidas futuras e litígios entre as partes quanto à determinação do seu quantum, (10) mas, nos termos do n. 3 do art.º 811 do Cód. Civil, a cláusula penal não pode exceder "o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal".
Como resulta da matéria de facto provada, o imóvel ainda não foi devolvido à detenção da Autora, que, por isso, está impedida de lhe dar qualquer utilização ou destino lucrativo, designadamente dando-o em arrendamento e até mesmo de, dispondo dele, o vender pelo melhor preço.
Assim, é manifesto que a falta de entrega do imóvel à Autora lhe causa prejuízos, pelo menos os provenientes de não poder arrendar o imóvel.
Tendo ficado comprovado que, atenta a área do imóvel, a sua localização e características, se autora arrendasse o imóvel dos autos, a renda que lhe seria paga nunca seria inferior a mil contos mensais, temos de concluir que a cláusula penal, estipulada no contrato de comodato invocado, não excede o "valor do prejuízo" derivado do incumprimento do Recorrente. Nada impede, portanto, que a cláusula penal se considere válida e que a Autora tem direito à indemnização de 1.000.000$00 por cada mês de atraso na entrega do prédio.
Nada há, portanto, a criticar ao douto acórdão recorrido relativamente a este ponto.
5.3 - Como sequela de tudo o que ficou explanado, temos de concluir que o douto acórdão recorrido deve ser inteiramente confirmado e, como tal, que a revista interposta pelo Réu deve ser julgada totalmente improcedente.
6 - Pelo exposto, acorda-se em negar provimento à presente revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Sem custas, por delas estar o Recorrente isento.

Lisboa, 24 de Abril de 2002
Eduardo Baptista,
Abílio Vasconcelos,
Moitinho de Almeida.
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(1) Cfr., Alberto Reis, in "Cód. Proc. Civil Anotado", vol V, pág.143 e, entre muitos, os Ac.s do STJ de 6.1.77, in "BMJ" n. 263, pág.187, de 5.6.85, in "Ac.s Doutrinais" n.289, pág 94, de 11.11.87, in "BMJ" n.371, pág.374 e de 27.1.93, in"BMJ" n.423, pág.444.
(2) Porventura, recorrendo aos elementos relevantes para a sua interpretação e fazendo a análise das várias posições que sobre ela tenham sido tomadas pela doutrina e pela jurisprudência.
(3) Cfr., op. e vol.cit.s, pág.53.
(4) Cfr., Lebre de Freitas e outros, in "Código de Processo Civil Anotado", vol. 2, pág. 670.
(5) Anota-se que alguns destes argumentos invocados (v.g., os constantes das 13ª, 14ª, 15ª, conclusões) dizem respeito "à livre apreciação prova" usada na 1ª instância, para a fixação dos factos provados, e que o Tribunal da Relação Porto manteve intocados, matéria que, por natureza, não é susceptível de impugnação.
(6) Cfr., F. Amâncio Ferreira, in "Manual dos recursos em Processo Civil", 2ª ed., pág.s 213/4 e A. Ribeiro Mendes, in "Recursos em Processo Civil", pág.258.
(7) Neste sentido, além dos Autores atrás citados, Cfr. Teixeira de Sousa, in "Estudos Sobre o Novo Processo Civil", 2ª ed., pág.s 422/3 e, entre muitos, os Ac.s do S.T.J. de 28.5.92, in "BMJ" n.417º, pág.750, de 31.10.90, in "BMJ" n.400º, pág. 591 e de 2.12.92, in "BMJ" n.422, pág.273.
(8) De acordo com o princípio da liberdade contratual, nada impedia, mas já por alteração não prevista previamente, estabelecessem um prazo de validade do comodato superior aqueles dois anos.
(9) Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4 ed., pág.s 305/6 e, numa perspectiva processual, Lebre de Freitas e outros, op. e vol. cit.s, pág.402/3.
(10) Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, "Código..." cit.,vol.II, 3ª ed., pág. 74 e Menezes Cordeiro, in "Direito das Obrigações", vol. 2º, 1980, pág. 426.