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DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
CULPA GRAVE E INDESCULPÁVEL
Sumário
I - Se o sinistrado montava a tenda do empregador para venda de vestuário numa feira e, a dado momento, quando já estavam colocadas algumas cordas de amarração da tenda, sofreu uma descarga eléctrica quando tentava retirar, com um ferro, uma corda de sustentação da tenda que se prendera aos fios de uma cabina de alta tensão, ainda que seja do conhecimento comum o perigo de descargas eléctricas e mesmo aceitando que o sinistrado terá agido com alguma ligeireza quando pretendeu desprender a corda, o desconhecimento sobre como se desenvolveu em concreto a actuação do trabalhador sinistrado e quais os riscos que à partida se apresentavam a quem pretendesse retirar a corda dos fios da cabina, não permite afirmar que a conduta do sinistrado constitui um acto temerário inútil, revelou uma improcedência em que um normal cidadão, medianamente esclarecido e sensato não incorreria, tornando-a indesculpável.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
Com o patrocínio oficioso do Mº Pº, AA, viúva, por si e como representante do filho BB, nascido a 21/1/88, demandou no Tribunal do Trabalho de Penafiel, em acção especial emergente de acidente de trabalho, o Réu CC, pedindo que seja condenado a pagar:
- à Autora AA, a pensão anual e vitalícia no montante de 378.408$00;
- ao Autor BB, a pensão anual e temporária de 252.272$00;
- a cada um dos Autores, uma prestação complementar no mês de Dezembro de cada ano, de valor igual ao duodécimo da respectiva pensão.
- a reparação com as despesas do funeral no montante de 233.333$00.
- juros de mora à taxa legal, sendo que as pensões são devidas a partir de 15/11/95 (sic).
Alegou, no essencial, que foi casada com DD, falecido no dia 31 de Dezembro de 1998, em Valença, vítima de descarga eléctrica quando trabalhava para o Réu na montagem de uma tenda, na feira de Cerdão.
O marido da A. tinha a categoria de caixeiro e auferia a retribuição mensal de 100.000$00; era pai do Autor BB.
O réu não tinha transferido para uma seguradora a sua responsabilidade infortunística.
Frustrou-se a conciliação porquanto o Réu, para além de impugnar a retribuição que a vítima auferia, contrapondo a de 58.900$00 x 14 meses, não aceitou a caracterização do acidente como de trabalho, alegando que o mesmo ocorreu por falta grave e indesculpável do trabalhador.
Contestou o Réu aduzindo que o acidente ficou a dever-se ao comportamento da vítima, que não observou elementares regras de segurança, desrespeitando aquelas que o Réu havia estabelecido, provocando por isso a electrocussão que lhe causou a morte.
Assim, o acidente proveio de culpa grave e exclusiva da vítima, o que o descaracteriza como de trabalho.
Quanto à retribuição, a vítima não auferia a indicada, antes a de 58.000$00 x 14 meses.
Consequentemente, a acção deverá improceder.
Condensada, instruída e julgada a causa, proferiu-se sentença a condenar o Réu a pagar aos Autores a quantia de 132.300$00 a título de despesas de funeral, à Autora a pensão anual e vitalícia de 232.920$00 e ao Autor BB a pensão anual temporária de 155.280$00; ambas as pensões são devidas a partir de 1/11/98, acrescendo-lhes um duodécimo a pagar no mês de Dezembro de cada ano, e vencem juros de mora à taxa legal nos termos do disposto no art. 138º do Cód. Proc. do Trabalho .
Foi ainda o Réu condenado a pagar à Segurança Social, Centro Nacional de Protecção contra os Riscos Profissionais (doc.de fls. 83) as quantias que este organismo adiantadas aos Autores a título de pensão provisória.
Inconformado, interpôs o Réu recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que negou provimento ao recurso pelo acórdão de fls. 176-9.
Voltou a não se conformar o Réu, recorrendo de revista, tendo assim concluído a sua alegação:
a) A Juiz do Tribunal de 1ª Instância deu como provado, no que aqui interessa, que o acidente dos autos consistiu em o sinistrado ter sofrido uma descarga eléctrica quanto tentava retirar, com um ferro, uma das cordas de sustentação da tenda que a vítima montava no exercício das suas funções, que se prendera aos fios de uma cabine de alta tensão.
b) O Réu recorrente, contestou a acção em ordem a demonstrar a descaracterização do acidente por:
- falta grave e indesculpável da vítima,
- injustificada pelo exercício da sua profissão,
- adoptando um comportamento temerário e reprovável, e
- contra ordem expressa da entidade patronal, e
- contra as regras de segurança por esta estabelecidas, para isso alegando toda a factualidade constante dos art.s 2º a 28º da contestação, que aqui se reproduz para os devidos efeitos, da qual pelo menos a vertida nos itens 17º, 18º, 22º, 23º e 27º da mesma não foi sujeita a julgamento.
c) A decisão de improcedência da acção mantida pelo acórdão recorrido assenta num único pressuposto, o da não verificação da hipótese prevista na al. a) da Base VI da Lei 2127, na medida da não comprovação pelo Réu dos requisitos da existência de:
1ª - condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal;
2ª - acto ou omissão da vítima que as viole e,
3º - acto voluntário da vítima, embora não intencional sem causa que o justifique,
d) Sem que tenha curado de avaliar e sem pronúncia sobre a possibilidade de verificação da hipótese da al. b) da mesma Base, para o que são suficientes não só os supra referidos factos alegados pelo Réu como até a factualidade dada como provada no que concerne às circunstâncias do acidente.
e) É que é óbvio, porque é facto notório resultante da experiência comum, a não carecer de prova, que os fios referidos na resposta ao quesito 2º da base instrutória são fios condutores de electricidade em alta tensão e que qualquer contacto com eles constitui-se em condutor privilegiado de uma descarga eléctrica, sobretudo quando estabelecido através de um ferro e nenhum homem mediano o ignora ou pode ignorar, o que necessariamente determina a temeridade e reprobabilidade de comportamento da vítima por um elementar sentido de prudência que caracteriza a falta grave e indesculpável da vítima alegada pelo Réu.
f) Óbvio sendo que a actuação apurada daquela jamais seria susceptível de ser justificada pelo exercício da sua profissão.
g) Um e outro dos factos a ditarem a descaracterização invocada do acidente e a inexistência de direito à respectiva reparação nos termos do disposto na al. b) da Base VI da Lei 2127,
h) Com base em cuja verificação a acção deveria ter sido julgada improcedente com as legais consequências.
i) Tendo feito, por isso, incorrecta apreciação, interpretação e subsunção da matéria de facto ao Direito aplicado, violando-se assim a lei, designadamente a Base VI al. b) da Lei 2127 e o art. 514º do CPC.
j) Entendimento só afastável por eventual necessidade de maior indagação da matéria de facto alegada pelo Réu, acima invocada, a determinar a respectiva ampliação nos termos do disposto no nº 4 do art. 712º do CPC e art. 1º do CPT e a anulação da decisão da matéria de facto julgada, o que ao não ser entendido e atendido pelo Tribunal da Relação no acórdão recorrido ditou a violação pelo mesmo dos artigos 508º e seguintes e 712º do CPC.
l) por tudo, deve dar-se provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida (sic) e substituindo-a por outra que julgue improcedente a acção, ou, se assim não se entender, anulando o julgamento e ordenando a respectiva repetição, bem como a ampliação da matéria de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.
Na contra-alegação. o Exmo patrono dos AA. pronunciou-se no sentido de que não deve conhecer-se da invocada deficiência da matéria de facto, sendo no mais julgado improcedente o recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
O acórdão em recurso deixou fixada a seguinte matéria de facto:
1) A Autora AA, nasceu a 16 de Janeiro de 1964, em Santa Marta, Penafiel.
2) O A. BB, nasceu a 21 de Janeiro de 1988 em Penafiel.
3) Os Autores eram, respectivamente, mulher e filho do sinistrado, DD, falecido em 31/10/98.
4) No dia 31/10/98, cerca das 9 horas, na feira semanal de Cerdão, concelho de Valença, o sinistrado foi vítima de um acidente quando trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização do Réu, com a categoria de caixeiro.
5) No desempenho dessas funções, no dia do acidente, montava a tenda de venda de vestuário do Réu, naquela feira.
6) O Réu não tinha transferido a sua responsabilidade infortunística para qualquer seguradora.
7) Dá-se por reproduzido para todos os efeitos legais o teor e conteúdo do relatório de autópsia, junto a fls. 69 e segs.
8) O acidente referido em 4) consistiu em o sinistrado ter sofrido uma descarga eléctrica no corpo.
9) Quando tentava retirar, com um ferro, um das cordas de sustentação da tenda que se prendera aos fios de uma cabine de alta tensão.
10) A tenda referida em 5) tem a configuração de um rectângulo cujos lados maiores têm 15 metros de comprimento.
11) Estava a ser montada de um dos lados de um arruamento do recinto onde se instala a feira de Cerdão.
12) Pelo trabalho subordinado que o sinistrado prestava, o Réu pagava-lhe a retribuição mensal de 56.700$00, acrescida de subsídio de férias e subsídio de Natal.
13) O suporte da dita tenda é assegurado por cordas colocadas de cada um dos lados supra referidos, que são amarradas algumas em ferros, concebidas para o efeito, que se enterram no chão.
14) No caso, e na altura, estavam já esticadas várias das referidas cordas e amarradas.
Como fluía das conclusões da alegação do recorrente, delimitadoras do objecto do recurso, como se sabe, aponta aquele a insuficiência da factualidade que ficou apurada, questão a conhecer se não for de concluir, considerando o que está provado, pela descaracterização do acidente.
A Relação não fez uso do disposto no art. 712º nº 4 do Cód. Proc. Civil, não anulando a decisão da 1ª instância para ampliação da matéria de facto, como pretendia o apelante.
Insiste o recorrente na necessidade de uma tal ampliação, que é consentida a este Supremo Tribunal ordenar se reputar insuficiente para a decisão de direito a base factual sobre que incidiu a decisão de facto (nº 3 do art. 729º do CPC).
Há que reconhecer que a Relação decidiu bem, por não se justificar a pretendida ampliação.
Com efeito, o recorrente parece esquecer que a versão que trouxe ao processo no sentido de demonstrar a descaracterização do acidente foi levada, nos pormenores factuais relevantes, à base instrutória - a elaboração dos quesitos 8º a 16º é a demonstração evidente do que se afirma.
É certo que, na apelação, o recorrente apontou o alegado em outros artigos da contestação como matéria que interessava à decisão da causa e não incluída na base instrutória, insistindo nessa posição.
Mas como se disse no acórdão recorrido, trata-se de matéria insusceptível de quesitação, por ser conclusiva ou envolver juízos de valor - na simples leitura dos artigos da contestação que a contém, os 17º, 18º, 22º, 23º, 26º e 27º, confirma sem dificuldade o acerto do que se afirma.
De resto, tivesse o Réu logrado provar a matéria dos quesitos 8º a 16º - todos eles receberam a resposta de "não provado" (vide fls. 128),- e as conclusões e juízos contidos nos artigos da contestação, que pretendia ver quesitados, seriam facilmente alcançáveis, com óbvios reflexos na sorte da acção.
Portanto, impõe-se a este Supremo Tribunal acatar a factualidade que vem fixada das instâncias, por não ocorrer circunstância que permita alterá-la ou ordenar a sua ampliação (art. 729º nºs 2 e 3 do CPC).
Decidido este ponto, vejamos se é de descaracterizar o acidente.
Seguro é que tal descaracterização não encontra apoio na al. a) do nº1 da Base VI da Lei nº 2127, de 3/8/65, diploma aplicável uma vez que o acidente ocorreu em Outubro de 1998.
Com efeito, nem o acidente foi dolosamente provocado pela vítima nem o mesmo ocorreu por violação por parte do sinistrado das "condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal".
É certo que a descaracterização também pode verificar-se por outras circunstâncias, mas são de excluir à partida as referidas nas alíneas c) (resultar o acidente da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado) e d) (provier ele de caso de força maior) do referido nº1 daquela Base VI, porquanto a factualidade recolhida não lhes respeita minimamente, não tendo de resto, sido trazidas pelo Réu à sua defesa.
Resta, assim, ver se o acidente proveio exclusivamente de falta grave e indesculpável da vítima, causa de descaracterização contida na al. b) da citada disposição, e que também aparece invocada na defesa ainda que o Réu, na contestação, não tenha feito referência expressa à Base VI da Lei nº2127.
Perpassando em análise o que ficou provado, que ao tribunal de revista compete acatar, repete-se, há que reconhecer que é pouco para consentir uma tal conclusão.
Na verdade, o que se apurou diz-nos apenas que o sinistrado montava a tenda do Réu, para venda de vestuário, na feira de Cerdão, Valença, e que a dado momento, quando já estavam colocadas algumas cordas de amarração da tenda, sofreu uma descarga eléctrica quanto tentava retirar, com um ferro, uma corda de sustentação da tenda que se prendera aos fios de uma cabine de alta tensão (factos dos nºs 8 e 9).
Se nada mais sabemos, e ainda que seja do conhecimento comum o perigo das descargas eléctricas, mesmo aceitando que o sinistrado terá agido com alguma ligeireza quando pretendeu desprender a corda, ficou por apurar como se desenvolveu em concreto a actuação do trabalhador e quais os riscos que à partida se apresentavam a quem pretendesse retirar a corda dos fios da cabine.
Ignorando-se estes pormenores, não podemos afirmar que a conduta do trabalhador constituiu um acto de temeridade inútil, revelou uma imprudência em que um normal cidadão, medianamente esclarecido e sensato não incorria, tornando-a indesculpável.
Deste modo, se o Réu não logrou demonstrar que o acidente ficou a dever-se a falta grave e indesculpável da vítima, o que lhe cabia provar enquanto facto impeditivo do direito dos AA. (art. 342, nº2 do Cód. Civil), a sua condenação era o resultado que necessariamente se impunha, pelo que o acórdão recorrido merece confirmação.
Termos em que se acorda em negar a revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 30 de Abril de 2002
Manuel Pereira,
Azambuja da Fonseca,
Diniz Nunes.