Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
PRÉDIO INDIVISO
DIREITO DE PROPRIEDADE
USUFRUTO
NUA-PROPRIEDADE
ARRENDAMENTO
NULIDADE
USUFRUTUÁRIO
MORTE
CADUCIDADE
DECLARAÇÃO TÁCITA
CONFIRMAÇÃO
Sumário
I - Se à data do arrendamento o prédio era objecto de um usufruto sobre uma metade indivisa, de um direito de uma propriedade sobre a mesma metade e de um direito de propriedade pleno sobre a outra metade indivisa, os poderes de fruição cabiam, conjuntamente, ao usufrutuário e a estes comproprietários, pelo que o seu exercício de um contrato de arrendamento incidindo sobre uma sua parte especificada cabia a todos. II - Tal arrendamento padece da nulidade atípica prevista no art. 1024 n. 2 CCIV. III - Dado de arrendamento pelo usufrutuário, nele assentiram os restantes contitulares - tacitamente - se ao longo de mais de 30 anos não promoveram a declaração da sua nulidade. IV - Há reconhecimento tácito se falecido o usufrutuário, os contitulares reconhecem ao inquilino o direito a novo arrendamento.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
"A" e sua mulher B propuseram contra C e D uma acção declarativa pela qual pediram que se declarasse:
a) que não caducou o arrendamento existente entre demandantes e demandadas e que o mesmo continua a vigorar para o futuro sem quaisquer limitações e sem aumento extraordinário da renda;
b) a entender-se haver caducidade, que os demandantes têm direito a novo arrendamento nos termos do art. 66 do RAU;
c) que a renda condicionada de 27.200$00 pedida pelas demandadas é ilegal e que a devida seria a de 13.241$00;
d) que, não tendo as demandadas dado qualquer resposta à carta dos demandantes de 24/11/95, não é devido qualquer aumento ou actualização da renda, por força do art. 94, nº 4 do RAU;
e) que é ilegítimo, por força do art. 334 do CC, o exercício do direito à caducidade do contrato invocado pelas demandadas.
Houve contestação e réplica, após o que os autores requereram a intervenção principal provocada, como associados da parte contrária, de E, sua mulher F e de G, que foi admitida, efectuando-se a sua citação.
Foi proferido despacho saneador que, conhecendo do mérito, julgou improcedente a acção, deixando declarado que o arrendamento em causa caducou por extinção de usufruto mas sem prejuízo de direito a novo arrendamento por parte dos autores em relação aos proprietários da fracção, nos termos do art. 66 do RAU.
A apelação dos autores foi tida como improcedente em acórdão proferido pela Relação de Lisboa.
Deste acórdão vem interposto pelos autores o presente recurso de revista em que, alegando, disseram terem sido violados os arts. 334, 1024, 217, nº 1 e 2, 1405, 1406 e 1051, al. c) do CC e 66 do RAU e formularam as seguintes conclusões:
1. As demandadas sempre figuraram, no bem imóvel, como proprietárias plenas de metade do prédio urbano, desde 1961;
2. O usufrutuário outorgou o contrato de arrendamento naquela qualidade e implicitamente juntamente com as RR/senhorias, ou não estivesse no contrato a expressão inequívoca "... e outros"
3. Através de declaração negocial tácita, as RR. deram o seu assentimento, quanto a arrendar, ficando vinculadas no contrato de arrendamento como senhorias, na parte em que eram proprietárias plenas;
4. Se há que falar-se de caducidade, por extinção do usufruto, por óbito do usufrutuário, então essa caducidade só pode ter-se verificado na parte onerada, "scilicet" metade; nesta óptica, é irrelevante o conhecimento ou a ignorância da posição real do senhorio, por parte do arrendatário, uma vez que se trata de um dado objectivo;
5. A invocação da caducidade constitui abuso de direito;
6. Não se trata só de aplicar o regime da renda condicionada e duração limitada, introduzido pelo RAU - art. 66 - como fez a sentença. Trata-se, isso sim, de considerar-se ilegítima essa invocação, por excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé (venire contra factum proprium).
Terminam pedindo que se declare não ter caducado o arrendamento, continuando vigente para o futuro sem quaisquer limitações e sem aumento extraordinário de renda e que o exercício do direito à caducidade por parte das rés é abusivo por não respeitar os ditames da boa fé, na vertente do venire contra factum proprium.
Não houve resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Vêm dados como provados os seguintes factos:
1. Em 1/4/64 o autor A celebrou com H o contrato de arrendamento referente ao 3º andar direito do prédio sito na Praceta ......., nº ...., na Amadora, conforme documento junto a fls. 25;
2. Tal como aí consta, o H deu de arrendamento esse andar na qualidade de usufrutuário;
3. O mesmo H e sua mulher I eram desde 1961 usufrutuários vitalícios de ½ do mesmo prédio, constituído por rés do chão, 1º, 2º, 3º e 4º andares e casa de porteira;
4. Também em 1961 o mesmo prédio foi adquirido por J, casado com a ré D, e pela ré C, casada com L;
5. A referida I faleceu em 3/8/95, no estado de viúva;
6. Pelo documento junto a fls. 26, sem data, as rés dirigiram ao autor carta em que comunicaram o falecimento da usufrutuária H e consequente caducidade do arrendamento e disseram ao autor que, tendo este direito a novo arrendamento, ficaria obrigado, a partir da renda que se venceria em Dezembro de 1995, referente a Janeiro de 1996, ao pagamento da renda mensal de 27.200$00.
Deve esclarecer-se, com maior rigor, que o que consta do facto nº 4 supra é um tanto inexacto; na verdade, como consta da escritura certificada a fls. 29 e segs., da qual este facto e o anterior foram retirados, a ré C e o mesmo J fizeram aí compra, em comum e partes iguais, da nua propriedade da metade indivisa do mesmo prédio que correspondia ao usufruto que pelo mesmo acto os referidos H e I haviam adquirido e compraram igualmente a plena propriedade da outra metade indivisa do mesmo prédio.
Interessa ainda, como apoio para o que a seguir se dirá, transcrever parte do cabeçalho do documento que encerra o contrato de arrendamento invocado pelos recorrentes:
"Os abaixo assinados, H, casado, proprietário, residente em Lisboa, na Rua ........, 4-2º. andar esqº. e outros, digo, como usufrutuário; A, ...... , como inquilino; ..."
Na conclusão 2ª das suas alegações na apelação os ora recorrentes escreveram o seguinte:
"O usufrutuário outorgou o contrato de arrendamento naquela qualidade e implicitamente juntamente com as senhorias/Rés, ou não estivesse no contrato a expressão "... e outros".
Ou seja, o mesmo conteúdo que verteram na conclusão 2ª deste recurso e com quase a mesma forma, já que nas alegações referentes ao presente recurso se limitaram a inverter a ordem de dois daqueles termos para "RR/senhorias" e qualificaram de "inequívoca" a expressão "... e outros".
Tudo se passa, pois, como se defendessem que o arrendamento foi celebrado conjuntamente com o usufrutuário e as rés na qualidade de senhorios.
A este respeito o acórdão recorrido salientou que a expressão "... e outros" se acha ressalvada e substituída pela expressão "como usufrutuário" que a seguir foi escrita.
Não se disse aí em que consistiu tal ressalva, mas é para nós evidente que serviu como tal a palavra "digo" que se interpõe, no meio de vírgulas, entre aqueles dois termos - tal como é uso generalizadamente conhecido na expressão escrita em língua portuguesa. Tudo se passa, na verdade, como se a expressão "... e outros" não houvesse sido escrita e a menção da qualidade em que o senhorio intervinha se seguisse imediatamente à indicação da sua morada.
Porém, apesar de tal passagem, tão clara e categórica, do acórdão recorrido os recorrentes passam por cima dela como se não tivesse sido escrita e alegam nesta revista argumentando ainda com essa, para nós já famosa - porém, não inequívoca -, expressão "... e outros" em termos semelhantes aos que usaram na apelação, sem se dignarem desenvolver um mínimo esforço para demonstração de um eventual erro cometido a este propósito no acórdão recorrido.
Não sendo crível que tal passagem lhes haja escapado por apressada leitura, fica a ideia de que os fins - no caso, a ânsia de ganhar este recurso - podem ter justificado todos os meios - mesmo os que consistem em argumentos que se sabe não terem consistência.
O que, obviamente, seria lamentável, pois os Tribunais devem merecer respeito a todos, designadamente a quem com eles colabora institucionalmente na missão de fazer Justiça.
Quem celebrou o arrendamento na qualidade de locador foi, portanto, um usufrutuário - não de todo o prédio, mas apenas de uma sua metade indivisa.
Entre os direitos do usufrutuário figura o de fruir a coisa - cfr. art. 1446º do CC, diploma do qual serão as disposições legais que adiante referirmos sem outra menção de origem -, o que lhe confere a faculdade de a dar de arrendamento se de um imóvel se tratar.
Trata-se, porém, nesse caso de um arrendamento sujeito a uma causa especial de caducidade - a prevista na al. c) do art. 1051 -, pois que, sendo o usufruto um direito sujeito a termo - define-o o art. 1439 como sendo o direito ao gozo temporário de uma coisa que se extingue, nos termos do art. 1476, nº 1, al. a), ou pelo decurso do prazo por que foi conferido, ou pela morte do seu titular -, a sua extinção envolve a cessação do direito à sombra do qual foi celebrado.
Considerando a morte, em 1995, da usufrutuária I, e visto o disposto nos arts. 66, nº 2 e 90 e segs. do RAU, compreende-se a razão de ser do que consta do facto nº 6 supra.
As recorridas, proprietárias do prédio, extraíram daquele decesso a conclusão de que o arrendamento caducara nos termos das supracitadas disposições e reconheceram ao inquilino o direito a um novo arrendamento sobre o mesmo andar.
No entanto, a relação locatícia gerada pelo contrato referido no facto nº 1 esteve desde o seu início viciada pela circunstância de o usufrutuário que nele interveio como senhorio não poder ser considerado como usufrutuário pleno do andar que era seu objecto.
O prédio em causa, composto de vários andares, não estava constituído em propriedade horizontal, sendo todo ele uma só coisa.
E, como é bem sabido, a contitularidade de direitos reais sobre a mesma coisa faz com que todos os seus titulares sejam consortes numa coisa comum a todos e em que participam, conjuntamente, enquanto detentores do direito a uma sua parte indivisa, que, precisamente por o ser, não pode ser referida a uma parte específica da mesma.
A situação jurídica do prédio à data do arrendamento - objecto de um usufruto sobre uma metade indivisa, por um lado, e de um direito de nua propriedade sobre a mesma a par de um direito de propriedade pleno sobre a outra metade indivisa, ambos encabeçados nas ora recorridas - fazia com que os respectivos poderes de fruição coubessem, conjuntamente, ao usufrutuário e a estas comproprietárias; o seu exercício através de um contrato de arrendamento incidindo sobre uma sua parte especificada - designadamente um seu andar - cabia a todos.
Impõe-se, pois, reconhecer que o arrendamento em causa era susceptível de ser reconduzido à previsão do art. 1024, nº 2 - interpretado extensivamente por forma a que, por evidente igualdade de razão, se faça entrar no conceito de "consorte" nele usado aquele que, não sendo dono de parte indivisa do prédio, é, no entanto, titular, enquanto usufrutuário, dos respectivos poderes de fruição.
E, padecendo da nulidade atípica a que se referem Pires de Lima e Antunes Varela - cfr. Código Civil Anotado, Vol. II. 4ª edição, pgs. 346-347 -, pôde produzir os seus efeitos durante mais de trinta anos por aquelas não terem promovido a respectiva declaração.
Mais do que isso, porém, avulta o facto de as recorridas terem assumido, na carta referida no facto nº 6 supra, a existência de tal arrendamento e a válida qualidade de inquilino que dele adveio para o recorrente, por isso mesmo aí reconhecido como titular de um direito a novo arrendamento.
O que constitui uma manifestação tácita - cfr. arts. 217, nº 1 e 288, nº 3, aos quais deve atribuir-se idêntico alcance nesta perspectiva, como defende Rui de Alarcão, A Confirmação dos Negócios Anuláveis, pgs. 212-213 e 217-218; cfr. ainda Antunes Varela, RLJ, ano 107º, pg. 362 - do seu assentimento em tal contrato, se acaso tal não resultara já do decurso incontestado de tão longo prazo de vigência do mesmo - e tácita porque do descrito comportamento das recorridas resulta, com toda a probabilidade, que se conformaram com o vínculo negocial estabelecido pelo acordo outorgado pelo usufrutuário E e pelo aqui recorrente.
De tal assentimento resulta caber também às recorridas - e não apenas aos falecidos H e I - a posição de senhorias no dito arrendamento, o que leva a que este não encontre fundamento apenas no usufruto que àqueles coube, mas também no direito de propriedade destas.
Daí que fique prejudicada a possibilidade de a extinção do usufruto conduzir à caducidade do arrendamento - cfr., em sentido semelhante, os acórdãos deste STJ proferidos em 20/11/73, BMJ nº 231, pg. 146, e em 19/3/76, BMJ nº 255, pg. 119, e, mais recentemente, o acórdão proferido em 14/11/00 na revista nº 3165/00, da 6ª secção, que versou um arrendamento tendo como objecto o rés do chão do prédio a que se refere o presente.
Procedem, deste modo, as conclusões 3ª e 4ª.
O que se disse, sendo bastante para assegurar o êxito do recurso, dispensa a apreciação aprofundada da questão do abuso de direito.
Dela se dirá apenas que, embora este abuso, na modalidade do "venire contra factum proprium", haja sido reconhecido no citado acórdão de 14/11/00, tal juízo assentou numa circunstância aí verificada e aqui inexistente: a de que o arrendamento fora celebrado com ocultação da qualidade de usufrutuário que cabia ao também aí locador H.
Isso levaria a que aqui fosse de formular opinião diferente.
No caso, como se disse, irrelevante.
Pelo exposto, concede-se a revista e, revogando-se o acórdão recorrido, julga-se a acção procedente, deixando-se declarado que o arrendamento referente ao 3º andar direito do prédio sito na Praceta ........, nº ...., na Amadora, e celebrado entre o usufrutuário H, como locador, e o autor A, como locatário, não caducou com a extinção do usufruto e continua a vigorar sem quaisquer limitações.
Custas, aqui e nas instâncias, pelas recorridas.
Lisboa, 30 de Abril de 2002
Ribeiro Coelho,
Garcia Marques,
Ferreira Ramos.