HABEAS CORPUS
ABUSO DO PODER
Sumário

I - O habeas corpus, tal como o configura a lei (art. 222.º do CPP), é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, que não um recurso, não visando, pois, submeter ao Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação da decisão da instância à ordem de quem está preso o requerente, mas sim colocar a questão da ilegalidade dessa prisão.
II - Assim não pode o Supremo Tribunal substituir-se às instâncias na apreciação da nulidade dos mandados de detenção, já conhecida pela 1.ª Instância.
III - O habeas corpus tem, em sede de direito ordinário, como fundamentos, que se reconduzem todos à ilegalidade da prisão: a incompetência da entidade donde partiu a prisão; a motivação imprópria; e  o excesso de prazos, sendo ainda necessário que a ilegalidade da prisão seja actual, actualidade reportada ao momento em que é apreciado aquele pedido.
IV - Sendo só invocada a nulidade dos mandados de detenção para apresentação ao juiz com vista à constituição como arguido e subsequente interrogatório, não é questionada a prisão preventiva actual aplicada nesse interrogatório.
V - Em sede de previsão constitucional, o acento tónico do habeas corpus é posto na ocorrência de abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, na protecção do direito à liberdade, constituindo uma providência a decretar apenas nos casos de atentado ilegítimo à liberdade individual - grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integrem as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas nas disposições legais que desenvolvem o preceito constitucional.
VI - Mas nesse caso é necessária a invocação do abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, do atentado ilegítimo à liberdade individual - grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integre as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas na lei ordinária, para desencadear o exame da situação de detenção ou prisão em sede da providência de habeas corpus, invocação que obrigatoriamente aponte os factos em que se apoia, incluindo os referentes à componente subjectiva imputada à autoridade ou magistrado envolvido

Texto Integral

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

I

1.1. A...., com os sinais nos autos, arguido no inquérito n.º 160/01.3GBGDL, de Grândola, veio a 15.5.02 requerer a concessão da providência excepcional de habeas corpus, invocando o art. 31.º da C.R.P. a al. b) do n.ºs 2 e 3 do art. 222.º do CPP.

E precisa «a mesma, deverá ser decretada apenas nos casos de atentado ilegítimo a liberdade individual - grave e em princípio grosseiro rapidamente verificável - que integrem duas vertentes, entre elas, a ilegalidade da detenção, ou da prisão taxativamente indicadas nas disposições legais, que desenvolvem, o preceito constitucional.

In casu, a presente petição, tem como fundamento legal, o facto da prisão, ter sido motivada por facto, pela qual, a lei a não permite, sendo ilegal, ela resulta de desvios dos fins para que são por lei outorgados os poderes judiciais.»

Alega para tanto, longamente:

«A presente providência de habeas corpus, como e do conhecimento de Vossa Excelência, é uma garantia privilegiada do Direito a Liberdade, com dignidade Constitucional, nos termos dos artºs 27 e 28 da C.R.P.

A mesma, devera ser decretada apenas nos casos de atentado ilegítimo a liberdade individual - grave e em princípio grosseiro rapidamente verificável - que integrem duas vertentes, entre elas, a ilegalidade da detenção, ou da prisão taxativamente indicadas nas disposições legais, que desenvolvem, o preceito constitucional.

In casu, a presente petição, tem como fundamento legal, o facto da prisão, ter sido motivada por facto, pela qual, a lei a não permite, sendo ilegal, ela resulta de desvios dos fins para que são por lei outorgados os poderes judiciais,

Pelo que, apresenta-se os seguintes fundamentos:


1.º

Em 8 de Maio de 2002, o ora requerente foi detido, na sequência, do cumprimento de mandado de captura para detenção fora de flagrante delito. - Cfr. Copia do mandado de detenção datado de 26 de Novembro de 2001, que sob o doc. n.º 1 se junta (as anotações a esferográfica; apostas, não são da autoria da mandatária, pelo que deverão dar-se por não escritas) e cópia da respectiva certificação da captura, que aqui se dão por inteiramente reproduzidas para todos os efeitos legais.


Ora requerente, apresentado, pelas autoridades, no Tribunal Judicial de Grândola, para o primeiro interrogatório, no dia 10 de Maio de 2002, perante a Meritíssima Juíza de Direito, requereu a nulidade de tal mandato. - Cfr. Cópia total do auto de interrogatório, que aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais. JÁ QUE,


Do referido mandado não consta a indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam. - Cfr. Mandado. DAQUELE,

4.º

Mandado, consta,

a) A assinatura da autoridade judiciária;

b) A identificação da pessoa a deter.

O mesmo foi emitido, pela Magistrada Judicial, a Meritíssima Juiz de Direito e encontra-se datado de 26 de Novembro.. - Idem doc, citado.

ORA,


5.º

Os mandados obedecem aos requisitos enunciados nos arts 257º e 258º do C.P.P., tendo este ultimo, a seguinte redacção:

1 - Os mandados de detenção são passados em triplicado e contêm, sob pena de nulidade:

a) A assinatura da autoridade judiciária ou de polícia criminal competentes;

b) A identificação da pessoa a deter; e

c) A indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam.

2 - Em caso de urgência e de perigo na demora é admissível a requisição da detenção por qualquer meio de telecomunicação, seguindo-se-lhe imediatamente confirmação por mandado, nos termos do numero anterior.

3 - Ao detido é exibido o mandado de detenção e entregue uma das copias. No caso do número anterior, é-lhe exibida a ordem de detenção donde conste a requisição, a Indicação da  autoridade judiciária ou de policia criminal que a fez e os demais requisitos referidos do nº1 e entregue a respectiva copia. DO MANDADO,



Já referido, não consta a exigência contida no disposto da alínea c) do nº1 do artº 258º do C.P.P., pelo que, aquela ilustre Magistrada, violou tal norma.

7.º

A violação de tal disposição legal, constitui nulidade do mandado em causa.

8.º

"A exigência de menção, nos mandados de detenção do facto imputado ao arguido e das circunstâncias legais que a autorizam, nos termos da alínea c) do nº 1 do citado artº258º do C.P.P., tem em vista proporcionar ao arguido a possibilidade de organizar a sua defesa para quando for presente a interrogatório ao Juiz.

9.º

A falta daquela menção integra nulidade de mandado de detenção e a insubsistência da prisão ordenada por ilegal." - Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 8 de Agosto de 1997, proc. n.º 0049193. (sublinhado nosso)

PELO QUE,


10.º

O ora requerente, com base era tal nulidade, requereu que de imediato fosse ordenada a sua libertação.

UMA VEZ QUE,


11.º

A não ser assim, colocar-se-ia em crise o direito á liberdade e segurança, que todo o cidadão tem. - Cfr. art. 27º da C.R.P,

12.º

A ilustre Magistrada sobre tal pedido de nulidade, proferiu o seguinte despacho:

" A detenção efectuada foi legal porque efectuada fora de flagrante delito, tendo o detido sido apresentado dentro do prazo das 48 horas para ser presente ao Juiz para 1.º interrogatório judicial e aplicação de medida de coacção, tendo-lhe sido comunicados os factos que lhe são imputados - arts. 254º n.º 1, a) e 257º, nº 1, ambos do C,P.P."


13.º

Ordenando, a prisão preventiva, do ora recorrente.

14.º

Sendo a detenção do ora recorrente ilegal, consequentemente a sua prisão também o é.

UMA VEZ QUE,


15º

Tal acto procedimental, não deixa de afeitar o acto final - detenção - prisão ilegal.

TANTO ASSIM É QUE,


16.º

Dispõe o art.º 122 do C.P.P. o seguinte:

As nulidades tornam inválido o acto em que se verificaram, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar, MAS,


17.º

Poder-se-á afirmar que, tratando-se de uma detenção ilegal, o ora recorrido, poder-se-ia ter recorrido, da providência de habeas corpus, prevista no art.º 220 do C.P.P, SALVO,

18º

O devido respeito e melhor opinião, o ora recorrente não concorda.

JÁ QUE,


19.º

Tal providência tem lugar, quando o mandado é emitido por outras autoridades, que não o Juiz. - Cfr. art.s 220, 221, 254, 257 todos do G.P.P,

TANTO ASSIM É,


20º

Que o requerimento é dirigido ao juiz de instrução da área, e o mesmo, se não considerar aquele requerimento infundado, devera se entender necessário, ordenar a apresentação imediata do detido. - idem artigos citados.

OU SE ASSIM,


21.º

O não entender, notifica a entidade competente que tiver o detido á sua guarda, ou quem puder representá-la, para se apresentar no mesmo acto munido de informações e esclarecimentos necessários à decisão sobre o requerimento, - idem.

PELO QUE,


22.º

In casu, tal não se verifica, no caso concreto, o mandado é emitido pela Meritíssima Juiz de Direito, e o mesmo, não obedece a um dos requisitos enunciados no artº 258º do C.P.P., nomeadamente o constante da alínea c), - Cfr. mandado. TAL,

23.º

Mandado, visa não só a detenção do ora recorrente, como a sua constituição de arguido, a submissão deste a primeiro interrogatório, bem como, a aplicação de uma medida de coacção. - idem.

E,


24º

Tendo a detenção tal objectivo, não tendo aquele mandado menção, exigida pela alínea c) do artº 258º do C.P.P - pelas razões, explanadas no artigos 1º a 16º do presente requerimento, o mesmo é nulo, sendo a detenção do ora recorrente ilegal e a privação da sua Liberdade também.

TENDO,


25.º

Sido requerida tal nulidade, e por causa dela, ter-se sustentado, a insubsistência da prisão, a Meritíssima Juiz de Direito, obedecendo aos princípios da legalidade, da contraditoriedade, a que deve obediência, deveria, ter-se pronunciado acerca da mesma, fundamentando, as razões de facto e de direito, para o indeferimento da referida nulidade, bem correio, da subsistência da prisão.

NO ENTANTO,


26.º

Valida tal detenção, conforme o já o referido no artº 12 do presente requerimento.

27.º

Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. - Cfr. artº 27º da C.R.P.

28º

Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:

f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente


29.º

Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos. - Idem.

ORA,


30º

A exigência do mandado em obedecer aos requisitos enunciados no art.º 258 do C.P.P., visam, não só assegurar, os direitos de defesa e de garantia, bem como o direito ao contraditório, constitucionalmente consagrados.

31º

A não indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam, O um acto, lesivo, já que, projecta os seus efeitos negativamente na esfera jurídica do ora recorrente, violando direitos legalmente protegidos.

32.º

Ora, salvo o devido respeito, aqui, não se discute, se os factos lhe foram comunicados, aquando do primeiro interrogatório, o que aqui está em causa, é a nulidade do mandado e a insubsistência da prisão do ora recorrente.

UMA VEZ QUE,


33º

O mesmo não contem um dos requisitos:

A indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam - Cfr. mandado e alínea c) do artº 258º do C,P,P.

ASSIM,


34.º

O referido mandado, tem como, objectivo a detenção do ora recorrente e é uma fase preliminar, no entanto, visa a constituição do ora recorrente, como arguido, a submissão deste ao primeiro interrogatório e a aplicação de uma medida de coacção, ao não conter o requisito supra mencionado.

35.º

Motivada por facto peio qual a lei a não permite, já que, a emissão  de mandados, está sujeita ao princípio da legalidade e no caso concreto, o facto do mandado não conter a indicação de tal facto, é nulo. - Idem

EMBORA,


36º

A detenção, seja uma fase preliminar, no caso concreto, não deixa de ser um acto, acto esse que afecta necessariamente os actos subsequentes. - Cfr. artº 118º a 123º, 257º e 258º todos do C.P.P.

TANTO,


37.º

Assim é, que as medidas de coacção, só podem ser aplicadas, desde que, haja prévia constituição como arguido e obedecem aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade. - Cfr. artºs 191º a 193º, 196º, 202º e 204º todos do C.P.P.,

CONSEQUENTEMENTE,


38º

Estando a detenção do ora recorrente ferida de nulidade, pelas razões aqui explanadas, os actos subsequentes á sua detenção, estão também feridos, pelo que, a subsistência da sua prisão, é ilegal. - Cfr. artºs 27º, 28º e 32º da C.R.P. 61º nº 1 alíneas a) e b), 97º, 118º, 119º a 123º, alínea b) do nº 2, do 222º, 257º e alínea c} do 258º todos do C.P.P.

DAÍ QUE,


39.º

O ora recorrente, tivesse solicitado a sua imediata libertação. - Cfr. mandado e acta da primeiro interrogatório.

NO ENTANTO,


40.º

Quanto á matéria levantada pelo recorrente, aquela ilustre Magistrada, proferiu o seguinte despacho:

"A detenção efectuada foi legai porque efectuada fora de flagrante delito, tendo o detido sido apresentado dentro do prazo das 48 horas para ser presente ao Juiz para 1º interrogatório judicial e aplicação de medida de coacção, tendo-lhe sido comunicados os factos que lhe são imputados - artºs 254º n.º 1 al. 8) e 257º nº1 ambos do C.P.P." - Cfr. auto de interrogatório,


40.º

O mesmo, salvo o devido respeito, e melhor opinião, e uma vez, que não se discute a existência de indícios, mas sim, a nulidade da detenção, que originou e afectou todos os restantes actos praticados, incluindo a insubsistente da prisão por ilegal, não está suficientemente, fundamentado de facto e de direito. - Cfr. arts 27º, 28º e 32º da C.R.P e 61 nº1 alíneas a) e b), 97º, 118º, 119º a 123º, alínea b) do nº2 do 222', 257 e alínea c) do 258º todos do C.P.P.

42.º

Num Estado de Direito Democrático, a estrutura de um sistema em processo penal, tem como objectivo fundamental promover a defesa da dignidade da pessoa,

DAÍ QUE,


43.º

A Liberdade da pessoa, é um dos direitos constitucionalmente consagrados e que só era casos excepcionais a lei, determina, que assim não seja, quando estão em causa outras finalidades, que devam igualmente ser prosseguidas pelo sistema processual penal. - Idem art.s citados.

44º

Com efeito o artigo 32º da Constituição da Republica Portuguesa, estabelece o princípio da imparcialidade objectiva do juiz, ínsito no princípio do acusatório.

Tais distinções atingem-se a dois níveis:

Primeiro, no dever ético-social do juiz, isto é, no seu carácter, na sua personalidade moral, na sua capacidade de se não deixar influenciar.

Segundo, no quadro legai que permite o exercício de tal dever ético-social e de garantia externa da confiança desse exercício, isto é, as condições constitucionais da função de julgar, exigem não só a imparcialidade do julgador mas também a confiança pública dessa imparcialidade. É


45.º

Função daquela ilustre Magistrada, administrar a Justiça de acordo com as fontes a que segundo a lei deva recorrer e fazer executar as suas decisões. - Cfr. E.M.J.

PELO QUE,


46.º

Ao lhe ser colocada a questão da nulidade do mandado e a insubsistência da prisão, por ilegal, pelas razões explanadas neste requerimento, aquela ilustre Magistrada, no referido despacho, ao omitir as razões de ciência, que determinaram a validação da detenção e subsistência da prisão, não conduziu diligentemente o regular andamento do processo.

ASSIM SENDO,


47.º

E salvo melhor opinião, praticou um acto no exercício de poderes decorrentes do cargo, na esfera da sua competência, que lhe cabia, tal acto, e discricionário e anti jurídico, com tal conduta, produziu o efeito jurídico, aqui colocado em crise, na esfera jurídica do recorrente, violando, desta forma as normas dos artes 18º, 27º, 28º e 32º da C.R.P, 61 nº l alíneas a) e b), 97", 118º, 119º a 123º, alínea b) do nº2 do 222º, 257' e alínea c) do 258º todos do C.P.P.»

 

1.2. A Sr.ª Juíza prestou, nos termos do art. 233.º do Código de Processo Penal, a seguinte informação:

«Em obediência ao ordenado pelo Ex.mo Juiz Conselheiro Presidente das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, e nos termos do disposto no art. 223.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, cumpre-me informar que a prisão (preventiva) do arguido foi efectuada na sequência da realização de 1.º interrogatório judicial de arguido detido, como medida de coacção, por se entender existir, em concreto, perigo de fuga, conforme melhor se deixou expresso no respectivo auto.

Oportunamente, sendo caso disso, serão reexaminados os pressupostos que determinaram a aplicação da prisão preventiva., aí de decidindo da sua (ou não) manutenção.»

II

Entrada a petição neste Supremo Tribunal, teve lugar a audiência a que alude o n.º 3 do art. 223.º do CPP, pelo que cumpre, pois, conhecer e decidir.

  III
E conhecendo.

3.1. O requerente têm legitimidade e pode formular, como formulou, a petição - n.º 2 do art. 222.º do CPP.

Mantém-se a prisão, como resulta da informação do Sr. Juiz - n.º 2 do art. 223.º do CPP.

O habeas corpus, tal como o configura a lei (art. 222.º do CPP), é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido.

Essa medida tem, em sede de direito ordinário, como fundamentos, que se reconduzem todos à ilegalidade da prisão (art. 222.º do CPP):

- a incompetência da entidade donde partiu a prisão - assim sucede quando o mandado de prisão foi assinado por quem não seja juiz, contrariando o disposto no art.º 194.º, n.º 1, ou a prisão não resulte de uma decisão condenatória - al. a);

- a motivação imprópria - verifica-se sempre que a prisão tenha assentado em razões ou motivos não consentidos ou não previstos na lei (v.g. falta de algum dos requisitos enunciados no art.º 204.º) - al. b);

- o excesso de prazos - a prisão obedece a prazos, sejam os prazos máximos legalmente estipulados para a prisão preventiva (cfr. art.ºs 215.º e 218.º), seja a medida concreta da pena fixada em decisão judicial condenatória - al. c).

3.2. Para que possa merecer acolhimento o pedido de habeas corpus é ainda necessário que a ilegalidade da prisão seja actual, actualidade reportada ao momento em que é apreciado aquele pedido. Tal tem sido a jurisprudência constante e pacífica deste Supremo Tribunal de Justiça (cfr. Acs de11.2.93, Acs do STJ n.º 1, 196, de 23.11.95, proc. n.º 112/95, de 21.5.97, proc. n.º 635/97, de 9.10.97, proc. n.º 1263/97, de 26.10.00, proc. n.º 3310/00-5, de 25.10.01, proc. n.º 3551/01-5 e de 24.10.01, proc. n.º 3543/01-3).

É, pois, da legalidade da prisão actual (da que se mantém no momento da apreciação) que se ocupa o habeas corpus e não de qualquer outra medida limitativa da liberdade da mesma pessoa que tenha eventual e anteriormente tido lugar.
Daqui resulta, desde logo e manifestamente, a falta de fundamento do presente pedido de habeas corpus.
Com efeito, toda a construção elaborada no mesmo pedido assenta na alegada nulidade dos mandados de detenção do arguido para ser constituído e interrogado como arguido e para aplicação de medida de cocção.

Com data de 26.11.2001 foram expedidos mandados de captura do requerente, deles constando que visavam a detenção fora de flagrante delito no processo n.º 160/01.3gbgdl - inquérito, pela Magistrada Judicial, com vista à sua apresentação em Tribunal para constituição e interrogatório como arguido e aplicação de medida de coacção.

Consta ainda dos mesmos mandados que «a  captura poderá ser efectuada com busca em lugar reservado não livremente acessível a público se necessário, e pelo tempo indispensável à realização das diligências [art. 254.º, al. a) e 174.º  do CPP]».

A captura teve lugar às 14h50m de 8 do corrente mês e o requerente foi apresentado à M.ª Juíza de Instrução que no dia 10 seguinte, pelas 11 horas, procedeu ao interrogatório, no decurso do qual  o requerente arguiu a nulidade dos mandados de detenção.

Proferiu então aquela Magistrada despacho em que, desatendendo aquela arguição, se entendeu que a detenção efectuada fora legal porque efectuada fora de flagrante delito, com a apresentação do detido dentro das  48 horas ao Juiz para 1.º interrogatório judicial e aplicação de medida de coacção, quando lhe foram comunicados os factos que lhe são imputados [arts. 254.º, n.º 1, a) e 257.º, n.º 1 ambos do CPP].

De seguida, depois de efectuado o interrogatório, entendendo que se indiciava fortemente a prática pelo arguido de 4 crimes de furto qualificado do art. 204.º, n.º 2, al. a) do C. P.; um crime de falsificação de notação técnica do art. 258.º, n.º 2, al. b) do C. P.; 6 crimes de detenção ilegal de arma do art. 6.º da Lei n.º 22/97 de 27.06, um crime de posse de arma proibida do art. 275.º, n.º 3 do C. P. e um crime de fraude fiscal do art. 23.º do DL 20-A/90 de 15.01  e que se verifica, em concreto, perigo de fuga, pelas razões que indicou (1), a M.ª Juíza considerou que, não obstante a sua subsidiariedade, era de aplicar ao arguido a prisão preventiva, única medida que, sendo proporcional à gravidade dos crimes imputados é adequada a evitar o referido perigo, pelo que determinou, ao abrigo dos arts 191.º, 193.º, 202.º e 204.º, a), todos do CPP, que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo, em prisão preventiva.

Impõe-se inevitavelmente a conclusão de que o requerente está actualmente preso à ordem do inquérito mencionado, por virtude de decisão judicial proferida na sequência do interrogatório judicial e não por virtude do mandado de detenção.

Ora, como se vê da respectiva petição, o requerente não critica directamente o despacho judicial que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, raciocinando  como se a prisão actual resultasse dos mandados de detenção, que critica directamente.

Só que esses mandados esgotaram-se com a detenção e apresentação do detido em Tribunal para interrogatório judicial: o escopo a que visavam. E, sendo assim como é, nenhuma relevância têm, nem podem ter, no desenrolar processual posterior respeitante à situação do requerente, que é tributária de outros actos como a decisão de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.

Na verdade, a eventual ocorrência de qualquer invalidade dos mandados de detenção poderia ter consequências (2), mas que se não transmitiriam à decisão posterior e autónoma de aplicação da prisão preventiva.

Aliás, o requerente dispensou-se de demonstrar que a invocada nulidade desses mandados se repercutiria na decisão que ordenou a prisão preventiva, por depender daqueles ou puder ser por ela afectada (n.º 1 do art 122.º do CPP), como se imporia.

Por outro lado, é certo que o recurso às regras de fundamentação das sentenças e despachos não aplicáveis ao caso de mandados: ordens executivas com fins concretos bem definidos e que se não confundem com os actos que os geram.

De todo o modo, o despacho que ordenou a passagem de mandados de detenção e a que se não referiu o requerente mostra-se devidamente fundamentado de facto e de direito, quer directamente, quer por remissão para a promoção do Ministério Público (cfr. 437, 444 a 446 dos autos, conforma certidão junta).

E o despacho que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva mostra-se igualmente fundamentado de facto e de direito, como se relatou.

Depois, e como se viu, também se dispensou o requerente de demonstrar que uma nulidade dos mandados inquinava as decisões posteriores, mesmo as que se apresentam como autónomas em relação a eles, como é o caso da decisão que ordenou a prisão preventiva, em tudo alheia à detenção, decorrendo antes dos indícios recolhidos e do interrogatório do arguido.

Invoca o requerente como fundamento do habeas corpus a al. b) do n.º 1 do art. 222.º do CPP: ser a prisão ilegal motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

Em relação à prisão actual, sem contestação do requerente, este está preso por facto que permite a prisão preventiva [art. 202.º, al. a) do CPP], pelo que, em relação à prisão preventiva que importa apreciar, é patente a inverificação de tal fundamento.

Embora só esteja (só pudesse estar) em causa a prisão actual, sempre se dirá que o requerente arguiu a nulidade durante o interrogatório e ela foi desatendida, pelo que se impunha a impugnação de tal despacho através de recurso ordinário, não cabendo o respectivo conhecimento a este Supremo Tribunal de Justiça mediante a providência de habeas corpus (3).

3.3. Invoca também o requerente o art. 31.º da Constituição, entendendo que a M.ª Juíza não conduziu diligentemente o regular andamento do processo (n.º 46.º da petição), sendo o acto praticado "discricionário e anti-jurídico" (n.º 47).

Vejamos:

De acordo com a jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça que o habeas corpus, tal como o configura a lei (art. 222.º do CPP), é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, que não um recurso, não visando, pois, submeter ao Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação da decisão da instância à ordem de quem está o preso o requerente, mas sim colocar a questão da ilegalidade dessa prisão.

Assim não pode o Supremo Tribunal substituir-se às instâncias na apreciação da nulidade dos mandados de detenção e já conhecida pela 1.ª Instância.

Em sede de previsão constitucional, o acento tónico do habeas corpus é posto na ocorrência de abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, na protecção do direito à liberdade, constituindo uma providência a decretar apenas nos casos de atentado ilegítimo à liberdade individual - grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integrem as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas nas disposições legais que desenvolvem o preceito constitucional.

     Mas nesse caso é necessária a invocação do abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, do atentado ilegítimo à liberdade individual - grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integre as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas na lei ordinária, para desencadear o exame da situação de detenção ou prisão em sede da providência de habeas corpus, invocação que obrigatoriamente aponte os factos em que se apoia, incluindo os referentes à componente subjectiva imputada à autoridade ou magistrado envolvido (4).
Ora o requerente não caracterizou nenhuma situação que, reunindo as características que se enunciaram, permita afirmar o abuso de poder a que se refere o preceito constitucional, mas se limitou a enunciar divergências quanto a entendimento jurídico, que se analisaram já, e não o favorecem.

 
IV

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir, por falta de fundamento legal, o pedido de habeas corpus deduzido pelo requerente A.....

O requerente  pagará taxa de justiça que se fixa em 4 UC (art. 84.º, n.º 1, do CCJ).

Pagará ainda 10 Ucs, nos termos do n.º 6 do art. 223.º do CPP.

Lisboa, 23 de Maio de 2002.

Simas Santos,

Abranches Martins,

Oliveira Guimarães,

Dinis Alves.
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(1) «Acresce que, como bem assinala a Digna Magistrada do Ministério Público, que ao arguido não é conhecida qualquer actividade remunerada muito embora lhe seja conhecido um estilo de vida próprio de quem tem muito dinheiro, possuindo vários veículos automóveis, uma propriedade em Ferreira do Alentejo, diversas armas, sendo certo que não é portador de licença de uso e porte de arma, e bens registados em nome da sociedade "Mundialfungi, Ldª" à qual não é conhecida actividade efectiva, e de que foi o único utilizador, património que ascende a dezenas ou centenas de milhões de escudos.
Face a tais incriminações, e considerando que o arguido esteve desde 27.11.2001, até à sua detenção subtraído à acção da justiça, não tendo nunca voltado à sua residência oficial, nem se apresentado voluntariamente às autoridades, quando sabia que existiam mandados com vista à sua captura na sequência da fuga efectuada no referido 27.11.2001, facto que era do conhecimento da sua companheira e do seu filho David que voluntariamente se apresentou neste tribunal.»
(2) Eventualmente, responsabilidade civil do Estado, criminal ou disciplinar dos agentes envolvidos.
(3) De qualquer modo não está demonstrado que se verificaria em relação aos mandados o fundamento da falada al. b) (prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite). Não se trata de uma prisão, mas uma detenção, entretanto validada expressamente por despacho judicial; e, por outro lado,  quando o art. 258.º do CPP (mandados de detenção) indica que os mandados de detenção contêm, sob pena de nulidade a indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam [al. c)], estando em causa uma detenção para apresentação ao juiz para constituição de arguido e interrogatório judicial, está-se a referir não aos factos que são imputados ao arguido no processo e que o juiz então lhe comunicará (art. 141.º, n.º 4 do CPP), mas o motivo que conduziu à detenção: no caso a apresentação ao juiz para constituição como arguido e subsequente interrogatório,  "facto" constava dos mandados, como se viu.
(4) Cfr. o Ac. de 24-04-2002, proc. n.º 1569/02-5.