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INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
PODERES DE COGNIÇÃO
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
Sumário
I - Se num recurso de uma decisão final de tribunal colectivo se refere a insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que se desenvolve em várias conclusões da motivação está-se a invocar o vício da al. a) do n.º 1 do art. 410.º do CPP, visando uma impugnação da matéria de facto. II - E se critica o uso feito pelo Tribunal a quo dos seus poderes de livre convicção, não se está perante um recurso exclusivamente de direito [art.º 432.°, al. d) do CPP], cujo conhecimento caiba ao Supremo Tribunal de Justiça, conhecimento que cabe sim à respectiva Relação - art.ºs 427.º e 428.º do CPP, a quem compete conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo em que se impugna a factualidade apurada e se invoca qualquer dos vícios previstos no art. 410.º daquele diploma. III - A norma do corpo do artigo 434.º do CPP só fixa os poderes de cognição do Supremo Tribunal em relação às decisões objecto de recurso referidas nas alíneas a), b) e c) do artigo 432.º, e não também às da alínea d), pois, em relação a estas, o âmbito do conhecimento é fixado na própria alínea, o que significa, que, relativamente aos acórdãos finais do tribunal colectivo, o recurso para o Supremo só pode visar o reexame da matéria de direito. IV - Assim, o recurso que verse [ou verse também] matéria de facto, designadamente os vícios referidos do artigo 410.º, terá sempre de ser dirigido à Relação, em cujos poderes de cognição está incluída a apreciação de uma e outro, sem prejuízo de o Supremo poder conhecer, oficiosamente, daqueles vícios como condição do conhecimento de direito. V - Não se verifica contradição entre esta posição e a possibilidade que assiste ao STJ de conhecer oficiosamente dos falados vícios. Enquanto a invocação expressa dos apontados vícios da matéria de facto visa sempre a reavaliação da matéria de facto que a Relação tem, em princípio, condições de conhecer e colmatar, se for caso disso, sendo claros os benefícios em sede de economia e celeridade processuais que, em casos tais, se conseguem, se o recurso para ali for logo encaminhado. O conhecimento oficioso pelo STJ é imposto pela sua natureza de tribunal de revista, que se vê privado de matéria de facto adequadamente provada e suficiente para constituir a necessária base de aplicação do direito. Um remédio, que, ao contrário do que em regra sucede na Relação, terá de ser solicitado a quem de direito (art.º 426.º, n.º 1, do CPP).
Texto Integral
Supremo Tribunal de Justiça:
I
1.1. A 4.ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 14.11.2001 (1), condenou como co-autores materiais e em concurso real, cada um dos arguidos A.... e B.... pela prática de 4 crimes de roubo do art. 210º, n.º 1, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, por cada crime e pela prática de 4 crimes de sequestro do art. 158.º, n.º 1, na pena de 9 meses de prisão, por cada crime.
Em cúmulo jurídico, foram os arguidos condenados nas seguintes penas únicas: o A.... em 7 anos de prisão e o B.... em 6 anos e 6 meses de prisão.
1.2. Inconformado, o arguido B... recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo na sua motivação:
1ª. - Os crimes de roubo foram todos praticados em obediência a uma forma homogénea de execução; o bem jurídico sacrificado foi sempre o mesmo; o condicionalismo exógeno manteve-se inalterado, em relação a cada uma das condutas; tudo ocorreu num curto lapso de tempo.
2.ª - Daí que face ao n.º 2 do art. 30º. do Cód. Penal, não se verifique concurso real, mas sim aparente.
3.ª - Os crimes de sequestro estão consumidos pelo de roubo, pelo que o arguido não deve ser condenado pela prática dos crimes de sequestro.
4.ª - Em conformidade com o referido e face ao disposto no n.º. 2 do art. 30.º do Cód. Penal a pena adequada à conduta do Recorrente deverá ser de 3 anos de prisão, devendo os quatro crimes de roubo ser tipificados, num só crime, continuado.
1.3. Igualmente inconformado, o arguido A..... recorreu também para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo na sua motivação:
I - O ora recorrente sempre negou a sua participação nos factos descritos na douta Acusação relativos ao dia 26 Outubro 2000.
II - O co-arguido B..... afirmou em audiência de julgamento que o ora recorrente, conjuntamente com ele, participou nos factos ocorridos no referido dia 26 de Outubro.
III - A ofendida C..... não logrou, em audiência, reconhecer o ora recorrente como sendo um dos autores materiais dos crimes de que foi vítima.
IV - Sendo única e exclusivamente o co-arguido e a ofendida os únicos meios de prova pessoal carreados para o Acórdão pelo Colectivo para fundamentarem a sua decisão quanto, repete-se, aos factos ocorridos em 26 de Outubro de 2000.
V - O Colectivo perante a negação do ora recorrente, o depoimento também em sentido negativo da ofendida e as declarações em sentido afirmativo do co-arguido mais não fez do que, abrigando-se no princípio da livre apreciação da prova, decidir, de uma forma discricionária, desfavoravelmente em relação ao ora recorrente.
VI - Padecendo o Aresto sob censura dos vícios do artº 410º, nº 2, al. a) na medida em que não existe matéria fáctica suficiente para justificar a decisão proferida.
VII - Bem assim como se incorre no vício da al. c) do mesmo diploma legal uma vez que o erro notório incide sobre a apreciação da prova e tem em vista, mercê dessa apreciação, os factos provados ou não provados, resulta evidente, do texto da decisão recorrida, por não passar despercebida ao comum dos observadores dotados de uma preparação e experiência judiciárias convenientes, uma conclusão sobre o significado da prova contrária à que o Colectivo chegou a respeito de factos relevantes para a decisão.
VIII - Nomeadamente quando o Tribunal "a quo" classifica o depoimento da ofendida C..... como de sério e convincente, quando a mesma refere não o reconhecer o arguido e, à revelia de toda a normalidade, o mesmo Colectivo assume este depoimento
X - Não devendo o ora recorrente vir a ser condenado pelos factos ocorridos em 26 de Outubro de 2000 e relativos à ofendida C......
XI - Sendo ainda inconstitucional o douto Acórdão sob censura por violação do artº 32, nº 5 do C.R.P. no sentido em que aplica a norma extraída com referência aos artºs 133º, 343º e 345º do C. P. Penal ao conferir valor de prova às declarações proferidas pelo co-arguido B......, em prejuízo do ora recorrente, quando um e outro produzem declarações antagónicas.
1.4. Respondeu a Ex.ma Procuradora da República, que fechou a sua resposta com as seguintes conclusões:
- não existindo na decisão em causa qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada,
- nem qualquer erro notório na apreciação da prova,
- nela não se contendo qualquer interpretação, valoração ou aplicação de norma violadora dos princípios constitucionalmente consagrados,
- tendo sido efectuada correcta aplicação do direito aos factos dados por provados,
- não violou tal decisão qualquer preceito legal, nem efectuou qualquer interpretação contrária à lei, pelo que, mantendo o douto acórdão impugnado, nos seus precisos termos, farão Vossas Excelências, como sempre, Justiça.
II
Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que, tratando o recorrente A..... de matéria de facto, é competente para o julgamento dos recursos o Tribunal da Relação de Lisboa.
Colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência para conhecimento e decisão de tal questão prévia.
III
Cumpre, pois, conhecer.
3.1. O arguido A.... nas conclusões da sua motivação de recurso impugna matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, designadamente quanto ao crime de roubo por que foi condenado, ocorrido em 26 Outubro 2000 (conclusões I e X).
E fá-lo, manifestando não só discordância quanto à forma pela qual o Tribunal apreciou a prova produzida em audiência à luz do princípio de livre apreciação da prova do art. 127.º do CPP (conclusões II a V), como invocando os vícios de insuficiência da matéria de facto para a decisão (conclusão VI (2) e de erro notório (conclusão VII).
3.2. Da posição assumida pelo recorrente A....., na impugnação que deduz, decorre que não se está perante um recurso exclusivamente de direito [art.º 432.°, al. d) do CPP], cuja apreciação pertença ao Supremo Tribunal de Justiça, mas de recurso a conhecer pela Relação do Porto - art.ºs 427.º e 428.º do Código de Processo Penal.
Coloca-se, assim, uma questão que tem sido objecto de frequentes decisões deste Tribunal (3), que tem entendido que, para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo em que se discuta matéria de facto, mesmo se com a invocação de qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º do Código de Processo Penal, é competente o Tribunal da Relação.
A norma do corpo do artigo 434.º do CPP só fixa os poderes de cognição do Supremo Tribunal em relação às decisões objecto de recurso referidas nas alíneas a), b) e c) do artigo 432.º, e não também às da alínea d), pois, em relação a estas, o âmbito do conhecimento é fixado na própria alínea, o que significa, que, relativamente aos acórdãos finais do tribunal colectivo, o recurso para o Supremo só pode visar o reexame da matéria de direito.
Assim, o recurso que verse [ou verse também] matéria de facto, designadamente os vícios referidos do artigo 410.º, terá sempre de ser dirigido à Relação, em cujos poderes de cognição está incluída a apreciação de uma e outro, sem prejuízo de o Supremo poder conhecer, oficiosamente, daqueles vícios como condição do conhecimento de direito (4).
Vale isto por dizer que, nos recursos das decisões finais do tribunal colectivo, o Supremo só conhece dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, se terá sempre de dirigir-se à Relação (5).
É essa, aliás, a solução que resulta do esquema conceptual integrado na recente Reforma do processo penal, que alterando a redacção da alínea d) (6) do citado artigo 432.º, acrescentou a expressão "visando exclusivamente o reexame da matéria de direito".
Pretendeu-se, então e explicitamente, limitar o acesso ao Supremo Tribunal, assim obstando à sobrecarga de casos para apreciação provocada pelo regime de recursos das decisões finais do colectivo, instituído originariamente pelo Código de 1987, à luz da definição do tribunal ad quem por mera consideração da natureza do tribunal a quo, sob pena de o sistema então vigente comprometer irremediavelmente a dignidade do Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que é.
Além de, com tal inovação, o legislador claramente pretender dar acolhimento a óbvias razões de operacionalidade judiciária, nomeadamente, restabelecendo mais equidade na distribuição de serviço entre os tribunais superiores (7).
E não se veja contradição entre a doutrina do Supremo sobre esta questão e a possibilidade de o mesmo conhecer oficiosamente dos falados vícios. Enquanto a invocação expressa dos apontados vícios da matéria de facto (8) visa sempre a reavaliação da matéria de facto que a Relação tem, em princípio, condições de conhecer e colmatar, se for caso disso, sendo claros os benefícios em sede de economia e celeridade processuais que, em casos tais, se conseguem, se o recurso para ali for logo encaminhado. O conhecimento oficioso pelo STJ é imposto pela sua natureza de tribunal de revista, que se vê privado de matéria de facto adequadamente provada e suficiente para constituir a necessária base de aplicação do direito. Um remédio, que, ao contrário do que em regra sucede na Relação (9), terá de ser solicitado a quem de direito (art.º 426.º, n.º 1, do CPP) (10).
Sublinhe-se, uma vez mais, que no caso sujeito foi impugnada a matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo, ao abrigo da sua livre convicção, que sempre estaria fora do alcance da sindicância do Supremo Tribunal de Justiça.
Por via deste entendimento, o outro recurso terá de ser igualmente conhecido pela Relação, face ao disposto no art. 414.º, n.º 7 do CPP.
IV
De harmonia com o sinteticamente exposto, e sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes que compõem a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em não conhecer do recurso e ordenar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, por lhe caber o seu conhecimento - art. 428.º, n.º 1 do CPP, com comunicação ao tribunal recorrido.
Pagará o recorrente A.... as custas, com 3 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 6 de Junho de 2002.
Simas Santos,
Abranches Martins. (Com a declaração de que, sendo o recurso de acórdão final de Tribunal Colectivo, continuo a entender que este Supremo Tribunal não pode conhecer oficiosamente dos vícios referidos no art. 410.º, n.º 2 do C.P.P., uma vez que além do mais, só o recorrente pode invocá-los, embora não perante este Supremo Tribunal, como se extrai claramente dos art.ºs 410.º, n.º 2 e 432.º, al. d) do C.P.P.; assim a pronúncia oficiosa do mesmo Tribunal sobre esta matéria exceda o objecto do recurso).
Oliveira Guimarães.
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(1) Processo Comum Singular n.º 54/2001 (NUIPC 2551/00.8PULSB.
(2) Da redacção da própria conclusão resulta, no entanto, que o recorrente confunde "insuficiência da matéria de facto para a decisão", vício que integra o elenco do n.º 2 do art.410.º do CPP, com a "insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto" e que é coisa bem diversa, susceptível, quando muito de gerar erro na apreciação da prova.
(3) Cfr. v.g. os Acs. de 25.1.01, proc. n.º 3306/00-5, de 23.11.00, proc. n.º 2832/00-5 e de 7.12.00, proc. n.º 2807/00-5.
(4) Cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal, Anotado, 2.ª edição, volume II, págs. 967, onde se pondera: "O considerar-se que não podem invocar-se os vícios do n.º 2 do art.º 410.º como fundamento do recurso directo para o STJ de decisão final do tribunal colectivo, não significa que este Supremo Tribunal não os possa conhecer oficiosamente, como ocorre no processo civil, e é jurisprudência fixada pelo STJ (...)"
(5) Interpretação que colheu a concordância de Germano Marques da Silva Cfr., Curso de Processo Penal III, 2.ª edição revista e actualizada, págs. 371.
(6) Correspondente à alínea c) da versão originária da disposição legal em causa.
(7) Como se refere nos acórdão já identificados e que aqui se acompanham de perto.
(8) Se bem que algumas vezes possa implicar alguma intromissão nos domínios do conhecimento de direito, designadamente quando se trate de conhecer do vício de insuficiência.
(9) Que o pode ministrar (art.ºs 428.º, 430.º e 431.º do CPP).
(10) E sempre com um percurso necessariamente mais alongado do que o da Relação, uma vez que, tendo de fazer voltar o processo à primeira instância para suprimento, irá provocar a reabertura integral do trajecto judiciário, que, pela via certa, tem largas possibilidades de sair encurtado.