Sumário

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", pede, na presente acção sumária, a condenação da "Companhia de Seguros B, SA", a pagar-lhe a quantia de 4234146 escudos - que, depois, ampliou para 12963000 escudos --, com juros de mora, à taxa legal, desde a citação, a título indemnizatório pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência do acidente de viação ocorrido, em 30/4/1997, em Eiras, comarca de Coimbra, entre o motociclo ES, por si conduzido, e o automóvel ligeiro de mercadorias VB, segurado na ré.
Segundo o autor, o acidente ficou a dever-se à culpa exclusiva do condutor do VB, por ter saído de marcha-atrás, inopinadamente e sem as devidas precauções, de um parque de estacionamento, invadindo a faixa de rodagem por onde circulava o autor, cumprindo todas as regra estradais.
A ré contestou, alegando, quanto ao circunstancialismo do acidente, que o VB ocupou, e não de maneira súbita, apenas parte da faixa de rodagem, por onde circulava o autor, que não conseguiu evitar o acidente por seguir com excesso de velocidade e por falta de perícia.
Efectuado o julgamento, a primeira instância considerou único culpado do acidente o condutor do VB e, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 8.962.896 escudos, com juros moratórios, vencidos e vincendos, desde 13/10/1999.
Em provimento parcial do recurso de apelação interposto pela ré, a Relação de Coimbra concluiu pela conculpabilidade de ambos os condutores, na proporção de ¼ e ¾, respectivamente para o autor e para o condutor do veículo segurado na ré, pelo que reduziu a indemnização para o montante de 6722172 escudos (33530.05 Euros).
Inconformado, recorre agora de revista o autor, formulando as seguintes conclusões:
1. O douto acórdão em recurso viola o inciso normativo plasmado no artigo 570 do Código Civil;
2. Na verdade, o mencionado preceito legal estatui a possibilidade da indemnização atribuída ser reduzida, ou excluída, quando um facto culposo do lesado concorrer para o agravamento dos danos;
3. E foi com fundamento em tal clausulado que a douta decisão reduziu a indemnização fixada em um quarto;
4. Todavia, salvo o devido respeito que é efectivo, tal segmento decisório peca por precipitado;
5. Com efeito, cotejadas as actuações do recorrente e do segurado da recorrida, há-de concluir-se que a eclosão do acidente é, em tudo, imputável a este;
6. Na verdade, é o condutor do veículo da segurada da recorrida quem age em flagrante violação dos incisos legais plasmados nos artigos 12,1,23,31,1,al.a), 35,46 e 47, al.d) do C.E. - DL 114/94, de 3 de Maio, na redacção conferida pelo DL 2/98, de 30/1;
7. Por outro lado, o condutor seguia a uma velocidade inferior a 50 Km/hora, a adequada legalmente a quem circula dentro das povoações, ideia que associada à teoria da confiança - quem cumpre os deveres objectivos de cuidado a que está obrigado deve confiar que os outros adoptam similar comportamento - afasta toda e qualquer responsabilidade do recorrente;
8. Assim, conclui-se pela inaplicabilidade ao caso dos autos do conteúdo do artigo 570 do Código Civil;
A recorrida contra-alegou, propugnando a confirmação do julgado.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Dos factos provados os que relevam para a solução do recurso são os seguintes:
1º No dia 30 de Abril de 1997, por cerca das 16 horas, no interior do lugar e freguesia de Eiras, comarca de Coimbra, nas imediações do Centro de Saúde de Eiras, o autor tripulava a moto marca Yamaha, matrícula ES, rodando no interior de tal povoação, sentido Eiras / Bairro de Santa Apolónia (Coimbra), o que fazia dentro da respectiva mão de trânsito, ou seja, na hemi-faixa do lado direito da estrada, atento o mencionado sentido de marcha;
2º No lado direito dessa rua, atento o mencionado destino do autor, existe um parque de estacionamento, onde "C" tinha parqueado o veículo automóvel ligeiro de mercadorias matrícula VB, marca Ford Fiesta, propriedade de "D, Ldª", com sede em Cernache, Coimbra;
3º Na iminência do embate, o autor ainda tentou evitá-lo, accionando os travões, tendo o veículo por si tripulado deixado no solo um rasto de travagem com cerca de 5,20 metros;
4º No dia e circunstâncias em referência o autor, repentinamente, viu a meia faixa do lado direito do seu sentido de marcha, pela qual circulava, invadida pelo veículo VB;
5º O qual, ao sair do parque de estacionamento aludido em 1º, inflectiu à esquerda, intentando o respectivo condutor dirigir-se com o veículo VB no sentido Bairro de Santa Apolónia/Eiras, mas ocupando a mão de trânsito do autor;
6º O condutor do VB estava atravessado na faixa de rodagem na execução da referenciada manobra, a começar a engrenar a 1ª velocidade e a virar as rodas para a direita para avançar e posicionar-se na sua hemi-faixa de rodagem; então, o autor, tripulando o ES, assomou na curva que dista do local do embate cerca de 20 metros, apercebeu-se nessa iminência da manobra do condutor do VB e não conseguiu, contudo, evitar embater-lhe, frontalmente, sobre o lado esquerdo de ambos os veículos;
7º Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referenciadas, o "C" certificou-se de que nas imediações não havia trânsito antes de efectuar a manobra de marcha-atrás com o veículo VB.
A única questão a resolver nesta revista é a de apurar se o recorrente contribuiu ou não - e em que medida, no caso afirmativo - para a eclosão do acidente em causa.
A primeira instância decidiu pela negativa, considerando como exclusivo culpado o condutor do veículo segurado na ré.
A segunda instância, porém, dando alguma razão à seguradora, entendeu repartir as culpas por ambos os condutores intervenientes, considerando, no entanto, muito mais grave a do segurado na ré, pelo que, em termos proporcionais, fixou a responsabilidade concorrente de cada um em ¼ e ¾, respectivamente para o autor e para o veículo segurado na ré.
Vejamos.
A matéria do concurso de culpa do lesado na prática de um acto ilícito vem plasmada no nº 1 do artigo 570 do Código Civil, que reza assim:
«Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambos as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.».
A actividade concorrente do lesado na eclosão de um evento danoso praticado por terceiro tem, assim e também, que ser apreciada à luz dos pressupostos da obrigação de indemnizar por prática de factos ilícitos, designadamente da culpa e do nexo de causalidade entre o facto e o dano - artigos 483, 487, n. 2 e 562 e 563, todos do Código Civil.
Na lição do Prof. Vaz Serra, Conculpabilidade do Prejudicado, BMJ 86 - 135:
«Visto que se está em face de um facto de terceiro, causador de dano, quer-se dizer que o facto do prejudicado só contribui para redução da indemnização quando este tenha omitido a diligência exigível com a qual poderia ter evitado o dano. Entende-se que aquela redução só é razoável quando o prejudicado não tenha adoptado as medidas exigíveis com que poderia ter impedido o dano.».
No que concerne ao pressuposto da culpa, vem estabelecido no nº 2 do artigo 487 do Código Civil, o conceito da culpa em abstracto, segundo o qual e na falta de outro critério legal, ela é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
A culpa responsabilizante por factos ilícitos abrange, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 483 do mesmo Código, o dolo e a mera culpa (distinguindo-se ainda nesta os casos de negligência consciente dos de negligência inconsciente), sendo certo que o grau de censura ou de reprovação será tanto maior quanto mais ampla for a possibilidade de se ter agido de outro modo, e mais forte e intenso o dever de o ter feito.
Em termos probatórios, a regra, prescrita no nº 1 do artigo 487 do Código Civil, é a de que, salvo os casos de presunção legal, a prova da culpa do autor da lesão incumbe ao lesado.
Tem sido, porém, entendimento constante deste Tribunal que a inobservância de leis e regulamentos, designadamente das normas de perigo abstracto, como são as do direito estradal, faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando-se, assim, a prova da falta de diligência - cfr.acs. do STJ, de 10/3/1998, BMJ 475º-635 e de 1/2/2000, CJSTJ, ano VIII, tomo I, página 50.
No que diz respeito ao nexo de causalidade, o artigo 563 do C. Civil consagra a teoria da causalidade adequada, na vertente negativa, segundo a qual um facto é causal (em termos juridicamente relevantes) de um dano quando é uma das condições sem as quais o dano não se teria produzido, desaparecendo essa causalidade quando o facto for, segundo as regras da experiência comum, totalmente irrelevante para a produção do resultado.
Em suma, enquanto na variante negativa, própria da responsabilidade civil, - em que prepondera a finalidade ressarcitiva do lesado em detrimento do sancionamento do agente -- para que se verifique o nexo causal, basta a previsibilidade do facto danoso, na variante positiva - mais conexionada com a valoração ética do facto e, por isso, mais utilizada no âmbito do direito criminal - exige-se não só a previsibilidade do facto, como também a dos danos (cfr. ac. STJ, de 3/12/98, BMJ 482º-207).
A supra referida orientação constante deste Tribunal - nos casos de violação de leis e regulamentos, particularmente quando se trata de normas de cariz abstracto, como são as do direito estradal - tem alargado o âmbito da presunção da culpa também ao nexo de causalidade, restritivamente embora às consequência típicas e normais do facto, ou seja àquelas que respeitam aos fins para cuja protecção a norma foi criada.
Assentes estes princípios, vejamos então agora, sob o ponto de vista teleológico, qual o fim protegido pela norma contravencional, cuja violação foi assacada ao recorrente pela Relação.
Essa contravenção é a do nº 1 do artigo 24 do Código da Estrada, aprovado pelo DL 114/94, de 3 de Maio (vigente aquando dos factos), que impõe ao condutor a regulação da velocidade de modo que, «atendendo às circunstâncias e estado da via e do veículo... possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente».
É claro que o fim desta norma consiste em impor ao condutor a adequação da velocidade às circunstâncias, quer da via, quer do próprio veículo que tripula, por forma a poder pará-lo e evitar o embate com qualquer obstáculo que, eventualmente, lhe surja no espaço livre e visível à sua frente.
É evidente que o acatamento desta norma pode até determinar que o condutor tenha de adoptar uma velocidade inferior ao limite legal de velocidade instantânea que lhe é permitido, como claramente resulta do nº 1 do artigo 27 do referido Código («Sem prejuízo do disposto nos artigos 24º e 25º...»).
Como igualmente evidente será que não cabem na previsão da norma os obstáculos que surjam, brusca e inopinadamente, na via, ultrapassando a previsibilidade normal de qualquer condutor medianamente diligente.
O que, manifestamente, não é o caso, ao contrário do que pretende o recorrente.
E isto porque, segundo a prova, quando o recorrente «assomou» à curva, que antecede o local do acidente em cerca de 20 metros, e se apercebeu da manobra do condutor do veículo segurado na recorrida, este já estava a engrenar a 1ª velocidade, a virar as rodas para a direita e a posicionar-se na sua hemi-faixa da direita, ou seja, estava já a ultimar a manobra.
Assim, se é certo que o acidente se ficou a dever, em maior grau de culpa, à actuação ilícita e altamente arriscada do condutor do veículo segurado na recorrida, por sair de marcha-atrás (manobra de recurso), de um parque de estacionamento, situado a cerca de 20 metros de uma curva (local, portanto, de visibilidade reduzida), não menos certo é que o recorrente não regulou -- como se lhe impunha, atentas esta mesma circunstância da via e a advinda da maior dificuldade de equilíbrio do seu veículo (motociclo) - a velocidade por forma a parar no espaço livre e visível de cerca de 20 metros, que frontalmente se lhe deparou.
Espaço este de visibilidade reduzida ou insuficiente na definição do artigo 23 do Código da Estrada (referida versão de 1994).
Por tudo isto, mostra-se correcta a aplicação, pelo acórdão recorrido, do disposto no nº 1 do artigo 570 do Código Civil, pois que ambos os condutores concorreram para a eclosão do sinistro, considerando-se ainda adequada e equilibrada a proporção que se fixou na graduação das respectivas culpas.

DECISÃO
Pelo exposto nega-se a revista, com custas pelo recorrente.

Lisboa, 4 de Julho de 2002.
Ferreira Girão,
Luis Fonseca,
Moitinho de Almeida (dispensei o visto).