CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
Sumário

Para prevenir a hipótese de não haver elementos que permitam fixar o objecto ou a quantidade da condenação, o n.º 2 do art.º 661 do CPC prescreve que, em tal caso, a sentença condene no que se liquidar em execução, pressupondo que, na acção declarativa se tenha provado a existência de danos cujo montante não foi possível apurar nem com recurso à equidade, ficando dispensada a prova do respectivo valor.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I

1. A 13.9.93, A propôs acção declarativa com processo ordinário contra a Companhia de Seguros B, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 61.181.300$00, acrescida de juros de mora desde a citação.
Para tanto, e em síntese, alegou ter celebrado com a ré um contrato de seguro que cobria os riscos emergentes de incêndio num imóvel de sua propriedade, imóvel em que veio a deflagrar um incêndio, recusando-se a ré a proceder à reparação dos respectivos danos ou a pagar a indemnização reclamada.
Deduzido pela ré o incidente de chamamento à autoria de C, por ambas foi a acção contestada.
2. Realizado julgamento, a 06.03.2001 foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, por não provada, absolvendo a ré e a chamada do pedido (fls. 305).
Inconformado, apelou o autor para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 15.01.2002, concedeu parcial provimento ao recurso interposto, condenando a ré B - Companhia de Seguros a indemnizar o autor na quantia que se liquidar em execução de sentença, nos termos do artigo 661º, nº 2, do CPC” (fls. 341).
3. É deste acórdão que a ré interpôs o presente recurso de revista, concluindo ao alegar:
1ª A douta sentença proferida em 1ª instância, perante a qual foi produzida a prova - talvez antes a "não prova" - é inatacável e funda-se em jurisprudência pacífica deste mais alto e sábio Tribunal.
2ª O douto Acórdão recorrido ao relegar para execução de sentença a liquidação do pedido do autor, veio conceder uma segunda oportunidade ao autor, subvertendo princípios fundamentais em processo civil criando uma situação de desigualdade entre as partes na discussão da causa.
3ª A falta de elementos para fixar o objecto e a quantidade do pedido do autor foi uma consequência do fracasso da prova apresentada pelo autor.
4ª O douto Acórdão recorrido violou, assim, o disposto nos artigos 444º do Código Comercial e 661º do Código Processo Civil.
5ª Donde, não podia o Venerando Tribunal da Relação revogar a douta sentença proferida em 1ª instância.
6ª Deve ser seguida a douta jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, como a citada, pelo que não há fundamentos legais que sustentem a decisão sob recurso.
7ª À cautela, dir-se-á, ainda, que em caso de provimento parcial do recurso da apelação, as custas não são imputáveis apenas ao apelado”.

O recorrido defendeu a confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II

Foram considerados provados os seguintes factos:
1. Por proposta subscrita pelo autor em 27/08/90, cópia junta a fls. 5, aqui dada como reproduzida, foi celebrado com a ré um contrato de seguro, mediante o qual ficara transferida para esta todas as responsabilidades emergentes do risco de incêndio, pela apólice número 17947.
2. O capital seguro foi convencionado em 95.000.000$00, com efeitos a partir de 11/06/91, data em que se passou a incluir a instalação eléctrica até ao limite de 10.000.000$00.
3. No dia 18 de Novembro de 1991, pelas 18.00 horas, deflagrou nas instalações um violento incêndio, o qual é descrito no auto de notícia da GNR que se mostra junto a fls. 9 e cujo teor damos aqui por integralmente reproduzido.
4. A referida apólice n° 17947 abrangia as seguintes garantias:
- a) seguro de um edifício misto de dois pisos, com o capital de 85.000.000$00, sendo 5.000.000$00 de benfeitorias (tecto falso, azulejos, pinturas e melhoramentos na zona industrial);
- b) o referido risco subdividia-se em 60% para habitação e 40% para a área industrial, ou seja, respectivamente 51.000.000$00 e 34.000.000$00.
5. Desde 11 de Junho de 1991, por inclusão das instalações eléctricas de 10.000.000$00, o capital total passou para 95.000.000$00.
6. A aquisição, por compra, do prédio rústico sito no lugar do Barrito, Montemor, freguesia e concelho de Loures, inscrito na respectiva matriz cadastral sob o artigo 96 da secção M, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n° ... , está inscrita a favor do autor desde 27/12/90.
7. No prédio atrás referido tinha o autor instalada uma edificação urbana, parte da qual estava afecta à sua residência e do seu agregado familiar.
8. A parte restante do prédio, embora contígua à habitação, era ocupada por uma construção de dois pisos, com a área de 186 m2 por piso, na qual o autor exercia a actividade industrial de confeitaria e armazenava matérias primas e na qual tinha instalados os necessários equipamentos.
9. Em consequência do incêndio referido em 3, ruiu o telhado, bem como paredes em alvenaria do primeiro piso, e respectivos pilares do edifício afecto à actividade industrial.
10. Estalou a placa separadora do primeiro e segundo pisos.
11. O sinistro foi participado à ré em 19 de Novembro de 1991.
12. Foi facultado à ré o exame do local, o qual foi visitado e inspeccionado pela ré mais do que uma vez.
13. Até à presente data a ré não mandou proceder à reparação dos danos.
14. A firma ... - Construções, Lda., orçamentou em 30.080.000$00 a reconstrução da construção de dois pisos referida em 8. e em 11.750.000$00 a reparação da vivenda, valores estes acrescidos de IVA á taxa de 16%.
15. O orçamento ora referido foi rectificado nos termos do documento junto a fls. 12.
16. Para reposição do forro do tecto em madeira, foi obtido um novo orçamento de 2.369.000$00 (IVA incluído).
17. O 1º piso da construção referida em 8 tinha paredes simples de tijolo e estava coberto com placa de lusalite”
III

É bem singela a questão essencial que importa dirimir.
Questão sobre a qual as instâncias divergiram.
1. Entendeu a 1ª instância que, não obstante:
- ter a ré assumido contratualmente os riscos emergentes de incêndio nas instalações do autor;
- ter o autor logrado fazer prova da ocorrência do sinistro;
- não ter a ré conseguido provar qualquer facto que impeça o funcionamento da apólice;
- ter o autor provado a ocorrência de danos em consequência directa do referido incêndio,
a acção tinha que improceder porquanto “cabia ainda ao autor alegar e provar o valor dos danos sofridos, desígnio no qual soçobrou” (cfr. fls. 304).
2. Diverso foi o entendimento perfilhado pelo acórdão recorrido, o qual, arrancando da existência provada de danos - há somente dúvidas quanto ao montante destes danos -, concluiu que “o facto de não se saber, neste momento, o montante exacto do prejuízo sofrido pelo autor, não pode levar o tribunal a absolver a ré do pedido, rematando como segue:
Tal decisão, a manter-se, seria contraditória consigo própria: por um lado, reconhecia ao autor o direito de ser indemnizado e, por outro lado, não o indemnizaria por não se ter apurado, em acção declarativa, o montante dos danos sofridos”.
3. Pensa-se que a razão está do lado do acórdão.
Como se procurará demonstrar.
3.1. Para prevenir a hipótese de não haver elementos que permitam fixar o objecto ou a quantidade da condenação, o nº 2 do artigo 661º do CPC prescreve que, em tal caso, a sentença condene no que se liquidar em execução.
Sugestivamente, escreve Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, 1952, pp. 70-71:
O tribunal encontra-se perante esta situação: verificou que o réu deixou de cumprir determinada obrigação ou praticou certo facto ilícito; quer dizer, reconhece que tem de o condenar; mas o processo não lhe fornece elementos para determinar o objecto ou a quantidade da condenação. Em face destes factos, nem seria admissível que a sentença absolvesse o réu, nem seria tolerável que o condenasse ‘à toa’, naquilo que ao juiz apetecesse. A única solução jurídica é a que o texto consagra: proferir condenação ilíquida. O juiz condenará o réu no que se liquidar em execução da sentença”.
Sintetizando: aquele comando só é de aplicar quando se não se chegarem a coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, o objecto ou a quantidade da condenação (Alberto dos Reis, ob. e loc. cits.; Rodrigues Bastos, “Notas ao CPC”, vol. III, pp. 232-233).
Este Supremo Tribunal vem entendendo que a possibilidade de se relegar para liquidação em execução de sentença o quantum indemnizatório pressupõe que na acção declarativa se tenha provado a existência dos danos cujo montante não foi possível apurar, ou seja, “a existência do dano, como pressuposto da obrigação de indemnizar, tem de ser provada em acção declarativa, só se podendo deixar para a execução de sentença a determinação meramente quantitativa do seu valor” - ou seja, “do cotejo dos artigos 661º, nº 2, do CPC, 565º e 566º, nº 3, do CC, resulta que só é possível deixar para liquidação em execução de sentença a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora de existência comprovada, não existam os elementos indispensáveis para fixar o seu quantitativo, nem sequer recorrendo à equidade; essencial é, pois, que esteja provada a existência dos danos, ficando dispensada apenas a prova do respectivo valor” (acórdãos de 1.6.99, Proc. nº 452/99, 29.2.2000, Proc. nº 41/00, 28.9.2000, Proc. nº 2227/00, 23.11.2000, Proc. nº 2469/00, 20.03.2001, Proc. nº 3620/00, in CJSTJ, ano IX, tomo I-177, 19.4.2001, Proc. nº 3783/01, e de 19.12.2001, Proc. nº 1761/01).
3.2. Temos para nós que, no caso em apreço, não pode razoavelmente questionar-se a existência de danos decorrentes do incêndio – risco coberto pelo seguro contratado.
3.2.1. Basta respigar do quadro factual provado os pontos 9., 10. e 13.:
- em consequência do incêndio referido em 3., ruiu o telhado, bem como paredes em alvenaria do primeiro piso, e respectivos pilares do edifício afecto à actividade industrial;
- estalou a placa separadora do primeiro e segundo pisos;
- até à presente data a ré não mandou proceder à reparação dos danos.
E não será despiciendo recordar, também, o ponto 3.:
“No dia 18 de Novembro de 1991, pelas 18.00 horas, deflagrou nas instalações um violento incêndio, o qual é descrito no auto de notícia da GNR que se mostra junto a fls. 9 e cujo teor damos aqui por integralmente reproduzido”.
Ora, deste auto de notícia consta que “do facto resultou ter ficado o edifício todo danificado incluindo material de fabrico que se encontrava dentro, toda a fruta armazenada, sendo ainda atingidas as paredes da vivenda juntas, cujos prejuízos são orçados em cerca de cento e oitenta mil contos” (fls. 10).
Aliás, como já se salientou, a própria sentença expressamente reconheceu que “conseguiu o autor provar a ocorrência de danos em consequência directa do referido incêndio”.
3.2.2. Argumenta a sentença com a resposta restritiva que teve o quesito 13º, em que se perguntava:
Para reconstrução dos edifícios o autor vai gastar 52.002.800$00, nos termos do orçamento que se dá como reproduzido –doc. nº 4?” (cfr. fls. 119).
Resposta essa do seguinte teor:
Provado que a ... Construções, Lda., orçamentou em 30.080.000$00 a reconstrução da construção de dois pisos referida no quesito 3º e em 11.750.000$00 a reparação da vivenda, valores estes acrescidos de IVA à taxa de 16%, conforme documento junto a fls. 11” (cfr. fls. 291).
Argumento que neste contexto não assume relevo.
3.2.3. Acresce que do laudo dos peritos - decisivo que foi para a formação da convicção dos juízes (cfr. fls. 293) - consta, além do mais:
- “relativamente ao quesito 13º do questionário, os peritos consideram uma estimativa de 18.600 contos para o valor do edifício tal como se encontra hoje” (fls. 190);
- “o perito da ré refere ter havido destruição parcial do 1º andar e da cobertura, tendo havido estragos por fumo no resto da construção” (fls. 192);
- “se os materiais existentes à data do incêndio fossem idênticos aos actualmente aplicados, estima-se o valor de reconstrução dos dois pisos das oficinas em 18.600 contos” (fls. 195);
- “o preço total da reconstrução já efectuada é estimado em 18.600 contos, na data da vistoria” (fls. 195);
- “em valores actuais, se os materiais fossem idênticos aos actualmente aplicados, o montante pecuniário de reconstrução ultrapassaria os 15.000 contos, mais concretamente em 3.600 contos” (fls. 195).
3.3. Repete-se, pois: perante semelhante quadro factual temos como seguro não poder duvidar-se que ficou demonstrada a existência de dano, enquanto pressuposto da responsabilidade civil.
O que não resultou provado foi o quantum desse dano.
Mas sendo assim, justificada está a condenação ilíquida, proferida pelo acórdão recorrido.
Certo que a recorrente invoca, em seu favor, os acórdãos deste STJ de 17.1.95, BMJ, nº 443-395, 13.01.2000, Proc. nº 44/99 e de 24.02.2000, Proc. nº 27/00.
Cumpre, porém, salientar que não é nesse sentido a orientação dominante do Supremo Tribunal de Justiça - como resulta dos arestos antes citados (cfr. ponto 3.1.), e é reconhecido por José Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2001, pp. 648-649, contexto em que este Autor apoda aquela interpretação de restritiva, ponderando:
Pode acontecer que, em acção de condenação, os factos provados, embora conduzam à condenação do réu, não permitam concretizar inteiramente a prestação devida. Tal pode acontecer tanto nos casos em que é deduzido um pedido genérico não subsequentemente liquidado...como naqueles em que o pedido se apresenta determinado, mas os factos constitutivos da liquidação da obrigação não são provados” (o Autor cita, de seguida, Alberto dos Reis, “CPC Anotado”, vol. I-615 e vol. V-71, Augusto Lopes Cardoso, “O pedido e a sentença”, RT 93º-57, Rodrigues Bastos, “Notas ao CPC”, vol. III-184, e Manuel Gonçalves Salvador, “Pedidos genéricos”, RT 88º-5 a 62).

Improcedem, assim, as primeiras 6 conclusões.

4. Na última conclusão a recorrente questiona que apenas ela tenha sido condenada em custas.
Vejamos.
4.1. A regra geral em matéria de custas é a sua imputação àquele dos dois - autor ou réu - que tenha dado causa à acção ou a uma tramitação autónoma (incidente ou recurso).
E dá causa à acção, incidente ou recurso quem perde - o processo não deve ocasionar dano ao pleiteante que tem razão.
Muito esquematicamente, dir-se-á que a questão de saber quem deve entender-se parte vencedora e parte vencida se resolve cotejando o pedido com a decisão.
Quanto à acção, perde-a o réu quando é condenado no pedido, e perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância.
No caso dos recursos, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento - se o êxito (procedência ou provimento) for apenas parcial, o encargo das custas é repartido entre ambas as partes, na proporção em que cada uma tenha ficado vencida.
4.2. Casos há, porém, em que a aplicação deste critério geral põe dificuldades - precisamente quando foi formulado pedido de condenação em quantia certa (pedido líquido) e o tribunal condenou o réu no que se liquidar em execução de sentença (é o caso com aqui nos deparamos).
Reconhecendo, embora que a solução não tem preceito expresso em que se apoie, Rodrigues Bastos, “Notas ao CPC”, vol. II, 1971, p. 331, entende que “o julgador deve condenar o réu na totalidade das custas, mas sem prejuízo da divisão que destas venha a fazer-se na conta do processo executivo, conforme o resultado da liquidação a efectuar”.
Diferente é a posição de José Lebre de Freitas, loc. cit., p. 177, que considera “bom critério o de condenar provisoriamente autor e réu em partes iguais, reservando-se para depois da liquidação o rateio definitivo das custas”.
Neste sentido se pronuncia também António Santos Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, I vol., 1999, pp. 183-186, segundo o qual “a responsabilidade das custas da acção declarativa deve ser provisoriamente repartida por igual entre o autor e pelo réu, sem prejuízo dos acertos que se mostrarem necessários resultantes da liquidação que eventualmente seja feita no processo executivo na verdade, prossegue, perante este circunstancialismo ambas as partes devem ser consideradas parcialmente vencidas”, já que “a pretensão se decompõe em dois pedidos, o pedido de declaração do direito de crédito e o pedido respeitante à condenação no pagamento de determinada quantia”, face ao que se deve entender que “ambas as partes dão causa à actividade jurisdicional exercida na acção declarativa e, por isso, ambas devem ser responsabilizadas” (cfr., também, Alberto dos Reis, “Comentário ao CPC”, vol. III, 1946, p. 181, e “CPC Anotado”, vol. II, 1949, p. 204).
Propendemos para este entendimento, que tem por si decisões quer do STJ - acórdão de 11.3.69, BMJ, nº 185-259 -, quer das Relações - acórdãos da RL, de 19.1.79, CJ, ano 1979, tomo I-93, da RP, de 4.3.77, CJ, ano 1977, tomo II-436, de 29.7.82, CJ, ano 1982, tomo IV-227, e de 27.6.95, CJ, ano 1995, tomo III-243, e da RC, de 20.5.97, CJ, ano 1997, tomo II-15.

Termos em que se nega a revista e confirma o acórdão recorrido, salvo quanto à condenação em custas - autor e réu vão provisoriamente condenados em partes iguais.

Lisboa, 1 de Outubro de 2002.


Ferreira Ramos (Relator)

Pinto Monteiro

Lemos Triunfante