VÍCIOS DA SENTENÇA
OMISSÃO DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário


I - Tendo o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação passado directamente do relatório para a fundamentação de direito, seguida da decisão, verifica-se completa omissão da fundamentação de facto, o que viola frontalmente o disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPP.

II - Tal omissão provoca a nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma.

III - Esta nulidade deve ser conhecida em recurso, como dispõe o n.º 2 daquele artigo, cabendo o seu suprimento ao tribunal recorrido.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. No processo comum colectivo nº 10-2/98, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Beja, o arguido AA veio, nos termos do art. 43º, nº 1 do C.P.P., requerer a recusa da Exmª Juíza de Círculo Drª. BB e dos Exmºs Juízes que compunham o colectivo que proferiu o acórdão de 12-06-2000 no âmbito do referido processo, apresentado, em conclusão, os seguintes fundamentos:

1 - Por acórdão de 12-6-2000, proferido nos presentes autos, pelo Tribunal Colectivo de Beja, presidido pela Exmª. Juíza Dra. BB, o ora recorrente foi condenado a dois anos e três meses de prisão;
2 - No âmbito do mesmo processo, a Exmª Juíza, cuja recusa se impetra, havia determinado o desentranhamento da contestação e do requerimento para a produção de prova, oferecidos pelo ora recusante, tendo-o convidado a constituir novo mandatário;
3 - Desse despacho foi interposto recurso, o qual obteve provimento por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11-7-2000;
4 - Face a este aresto, o Exmº Juiz da Comarca de Beja, por despacho de 21-11-2000, declarou inválidos os actos posteriores ao não recebimento da contestação (como correctamente no requerimento a fls. 3) e, consequentemente, o julgamento;
5 - A Exmª Juíza Drª. BB, que determinou o desentranhamento da contestação e presidiu ao colectivo que havia julgado e condenado o ora recorrente, vem, agora, na qualidade de Presidente do Tribunal Colectivo, designar os dias 19, 21 e 23 de Março de 2001, como datas para novo julgamento;
6 - Nos termos do art. 43º, nº 1, bem como dos princípios extraídos do art. 40º, ambos do C.P.P. e, outrossim, do art. 32º, nº 1 da Constituição da República, deve a Senhora Juíza. Dra. BB ser recusada a intervir no novo julgamento, bem como os Exmos. Juízes que participaram no julgamento de 12-6-2000, que foi anulado.

Responderam por escrito a Exma. Juíza Presidente do Tribunal Colectivo e a Exma. Juíza 1ª Adjunta (o 2º Adjunto já não exercia funções na Comarca de Beja), que se pronunciaram pela improcedência da recusa.
O Tribunal da Relação de Évora não concedeu a requerida recusa, considerando-a manifestamente infundada, por não se ver, em termos objectivos, que se possa questionar, quer a imparcialidade, quer a independência dos juízes em causa.

Inconformado com esta decisão, dela o requerente interpôs recurso para este Supremo Tribunal, em cuja motivação formulou as seguintes conclusões:
1ª Por acórdão de 12.6.2000, proferido no processo nº 10.2/98, do Tribunal Colectivo de Beja, presidido pela Meritíssima Juíza, Dra. BB, o ora recorrente foi condenado a dois anos e três meses de prisão;
2ª No âmbito do mesmo processo a Meritíssima Juiz, cuja recusa se impetra, bem como dos Meritíssimos Juízes que compunham a mesma formação, havia determinado o desentranhamento da contestação e o requerimento para a produção de prova oferecidos tempestivamente pelo ora recorrente, tendo-o convidado a constituir novo mandatário;
3ª Desse despacho foi interposto recurso o qual obteve provimento por douto acórdão de 17 de Julho de 2000 do Tribunal da Relação de Évora;
4ª Em cumprimento desse douto aresto o Meritíssimo Juiz de Beja, por despacho de 21 de Novembro de 2000, declarou inválidos os actos posteriores ao não recebimento da acusação e, em consequência, o julgamento.
5ª Por virtude do douto aresto da Relação de Évora, que precipitou a nulidade do acórdão condenatório de 12.6.2000, do Tribunal Colectivo de Beja, o recurso interposto pelo ora recorrente deste acórdão ficou, também, prejudicado.
6ª Porém, a Meritíssima Juiz, Dra. BB, que havia proferido o despacho anulado pelo acórdão de 11.7.2000, da Relação de Évora, e que presidiu ao Colectivo que havia julgado e condenado o ora recorrente - acórdão de 12.6.2000 - agora, na qualidade de Presidente do Tribunal Colectivo designou para novo julgamento os dias 19, 21 e 30 de Março de 2001.
7ª O ora recorrente suscitou, então, perante o douto Tribunal da Relação de Évora, a recusa da Meritíssima Juiz, Dra. BB, e dos Meritíssimos Juízes que participaram no julgamento declarado inválido.
8ª O pedido tem como suporte legal os art.s 40º, 43º nºs 1 e 2 do CPP, bem como no art. 32º nº 1 da Constituição, normas que se consideram violadas.
9ª Com efeito, a Meritíssima Juíza, Dra. BB, e seus Ilustres Pares que compunham o Tribunal Colectivo, e que condenaram o ora recorrente, já possuem, necessária e inevitavelmente, uma ideia formada (convicção) sobre a culpabilidade do recorrente devido à participação, muito activa, que tiveram no decorrer das várias audiências de julgamento ocorridas no âmbito do Proc. nº 10-2/98, do Tribunal de Beja:

10ª Daí que aqueles Meritíssimos Juízes do Tribunal de 1ª instância não possam, nem devam, intervir no novo julgamento que tem por objecto o mesmo processo.
11ª Contudo, o douto Tribunal a quo, o da Relação de Évora, no aresto de 5.6.2001 sufraga entendimento diametralmente oposto, concluindo, aliás, que o pedido de recusa é manifestamente infundado e condenado o ora recorrente em 8 Usc.
12ª Salvo o devido respeito, o douto Tribunal a quo viola flagrantemente a Constituição, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Lei.
13ª Com efeito, um dos fundamentos invocados pelo douto Tribunal a quo, quando faz apelo ao art. 43º do CPP, e diz não se verificar é o relacionado com o "especial contacto com o objecto da decisão" (cfr. a citação feita pelo Tribunal a quo ao Prof. José Alberto dos Reis);
14ª Ora, não pode sofrer contradita que a Meritíssima Juiz cuja recusa se impetra, e os seus Pares que formaram o Tribunal Colectivo, tiveram "especial contacto" com o processo - crime porque sobre ele se debruçaram longamente durante o decorrer das várias audiências de julgamento e que culminou com a condenação do ora recorrente na pena de dois anos e três meses de prisão.
15ª Anulado o julgamento, não pode integrar o Tribunal Colectivo o Juiz ou os Juízes que fizeram parte do Tribunal que proferiu a decisão anulada, sob pena de violação dos art.s 40º, 43º nºs 1 e 2 do CPP, do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicável por força do estatuído no art. 8º da Constituição, norma que consagra o direito a um processo equitativo e, por isso, com garantias de imparcialidade;
16ª A interpretação dada pelo Tribunal a quo aos art.s 40º e 43º, nºs 1 e 2 do CPP, é manifestamente inconstitucional por violar o art. 32º, nº 1 da Lei Fundamental, precipitando, outrossim, a violação dos art.s 1º, 2º, 8º, 16º e 204º da Constituição.
17ª Com efeito, os magistrados que julgaram o ora recorrente e o condenaram em 12.6.2000, ficaram com uma convicção de tal modo arreigada quanto à sua culpabilidade que, objectivamente - e sem prejuízo da independência interior que os magistrados sejam capazes de preservar - fica inexoravelmente comprometida a independência e imparcialidade desses magistrados no novo julgamento do mesmo processo.
18ª Destarte, o Tribunal da Relação de Évora, pelo acórdão de 5.6.2001, violou os normativos indicados na conclusão 16ª, proferindo uma decisão inconstitucional, já que deveria ter declarado impedida de participar no novo julgamento a Meritíssima Juiz, Dra. BB, e os Meritíssimos Juízes Adjuntos que compunham o Colectivo que proferiu o acórdão de 12.6.2000 e que foi declarado inválido, na sequência do douto Acórdão de 11 de Julho de 2000, do Tribunal a quo.
19ª O douto acórdão recorrido violou, outrossim, o art. 45º nº 5 do CPP, porquanto o pedido de recusa é manifestamente fundado e, por consequência, deve ser deferido.

Por assim ser, impetra-se a Vossas Excelências, Venerandos Conselheiros, se dignem das provimento ao presente recurso, anulando o douto acórdão recorrido e declarando impedidos de participar no novo julgamento do Proc. Comum Colectivo nº 10-2/98, do Tribunal Judicial de Beja, a Meritíssima Juiz, Dra. BB, e os Meritíssimos Juízes Adjuntos que participaram no julgamento do ora recorrente, no mesmo processo, e que proferiram o acórdão condenatório de 12.6.2000, que foi declarado inválido.

O recorrente roga, por isso, seja dito o Direito e feita JUSTIÇA..
Respondendo, o Ministério Público pugnou pela não concessão da recusa.
Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no mesmo sentido.
Colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência para decisão.
Cumpre, pois, decidir.

2. O acórdão da Relação de Évora passou directamente do relatório para a fundamentação de direito, seguida da decisão.
Houve, pois, completa omissão da fundamentação de facto, o que viola frontalmente o disposto no nº 2 do art. 374º do C.P.P..
Tal omissão provoca a nulidade do acórdão recorrido, nos termos da al. a) do nº 1, do art. 379º do mesmo Código, nulidade esta que pode ser, melhor dizendo, deve ser conhecida em recurso, como dispõe o nº 2 daquele art., cabendo o seu suprimento ao tribunal recorrido, que decidirá com fundamento na matéria de facto que vier a apurar.

3. Pelo exposto, acorda-se em anular o acórdão recorrido, que deverá ser reformulado, nos termos acima referidos, pelos mesmos Exmos. Desembargadores, se for possível.
Sem tributação.

Lisboa, 3 de Outubro de 2002

Abranches Martins (Relator)
Oliveira Guimarães
Dinis Alves