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SERVIDÃO PREDIAL
EXTINÇÃO
RENÚNCIA EXPRESSA
RENUNCIA TÁCITA
DESNECESSIDADE
MUDANÇA
PRÉDIO DOMINANTE
ÁGUA IMPRÓPRIA PARA CONSUMO
IMPOSSIBILIDADE DE EXERCÍCIO DA SERVIDÃO
Sumário
I - As servidões prediais podiam ser extintas por renúncia expressa ou tácita até 31/12/2008, sendo que, a partir daí, só o podem ser mediante renúncia expressa feita através de escritura pública ou por documento particular autenticado. II - A desnecessidade pode conduzir à extinção da servidão, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se verifique uma mudança na situação do prédio dominante em virtude de certas situações supervenientes, a aferir de forma objectiva, típica e exclusiva. III - O facto de os réus deixarem de residir no prédio dominante não permite ser interpretado como disposição do direito de servidão e concluir pela renúncia do mesmo. IV - A mera alegação de a água estar imprópria para o consumo doméstico não integra o conceito de desnecessidade. V- A alegada impropriedade da água pode ter uma duração precária, bastando eliminar a fonte de contaminação ou sujeitá-la a um processo químico que a torne potável. VI - Tal situação, quando muito, poderia integrar uma mera impossibilidade de exercício da servidão. VII - Só que esta impossibilidade não importa a extinção da servidão, enquanto não decorrer o prazo de vinte anos, previsto na alínea b) do n.° 1 do citado art.° 1569.° (cfr. art.° 1571º do Código Civil).
Texto Integral
Processo n.º 2616/09.0 TBVCD.P1 – 2.ª Secção
Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
B…………. e mulher C………., com residência na Rua ………., n.º …, freguesia de ………., concelho de Vila do Conde, intentaram, em 11/9/2009, no Tribunal Judicial daquela comarca, onde foi distribuída ao 1.º Juízo Cível, contra D………. e E………., ambos residentes na Rua ………., n.º …, ………., Póvoa de Varzim, acção declarativa com processo sumário, pedindo que se declare “extinta ou afastada a servidão de águas exercida pelos Réus, por si e seus antepossuidores e anteproprietários”, sobre o prédio identificado no art.º 6.º da petição inicial.
Para tanto, alegaram, em síntese, que:
São proprietários daquele prédio urbano, composto por casa de habitação e quintal, inscrito na respectiva matriz sob artigo 12 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 189/941214, onde se encontra inscrita, a seu favor, a aquisição, por compra, efectuada por escritura pública de 12/12/2003, e que também adquiriram por usucapião.
Nesse prédio, existe um poço, onde os réus e seus antecessores se deslocavam para se abastecer de água que utilizavam na casa de que são proprietários, com aquele confinante, para consumo doméstico, desde há mais de vinte anos, de forma contínua, pública, pacífica, na convicção de não lesarem direitos de outrem e de que exerciam um direito de servidão.
Em Julho de 2007, constataram que a água do referido poço estava imprópria para consumo e comunicaram ao primeiro réu esse facto.
Desde então, os réus jamais retiraram água do poço.
Esta não tem qualquer utilidade para o prédio dos réus, o que importa a extinção da servidão por desnecessidade.
Além disso, os réus deixaram de residir na sua referida casa, em Outubro de 2007, o que significa uma renúncia ao direito de servidão.
Acresce que o poço se encontra dentro de um prédio urbano, totalmente murado, o que, na sua óptica, impede a constituição da servidão.
Os réus contestaram por excepção, invocando a incapacidade do segundo réu, e por impugnação motivada, dizendo que a água continua a ter utilidade e que não renunciaram a ela, concluindo pela improcedência da acção.
Na resposta, os autores sustentaram que a invocada incapacidade judiciária se encontrava suprida, face à intervenção do representante legal do menor, e concluíram como na petição inicial.
No despacho saneador, considerou-se suprida a excepção da falta de capacidade judiciária do réu E………. com a intervenção do seu representante legal e, conhecendo do mérito, foi a acção julgada improcedente com a consequente absolvição dos réus do pedido formulado pelos autores.
Inconformados com o assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação para este Tribunal e apresentaram a sua alegação com as seguintes conclusões:
“Segundo o entendimento dos Recorrentes e tendo em conta toda a matéria produzida, através dos articulados juntos quer pelos Recorrentes, quer pelos Recorridos, deveria a meritíssima Juiz "a quo":
A) - Ter entendido que poderíamos, abstractamente, estar perante um caso que consubstancia um direito de renúncia expressa;
B) - Que no caso aqui em apreço a renúncia tanto pode ser expressa como inclusivamente tácita;
C) - Que, tendo em conta a matéria alegada pelos Recorrentes e Recorridos, é possível concluir, que pelo menos em tese, e tendo em conta a prova que se poderia produzir em audiência de julgamento, que poderíamos estar perante um caso de desnecessidade de servidão;
D) - Uma vez que existe matéria de facto contraditória e com interesse para a demanda, não poderia o meritíssimo juiz "a quo" julgar, nesta fase processual, o presente litígio, sob pena de violar, como efectivamente violou, os mais elementares princípios do contraditório, de defesa e de produção de prova;
E) - Princípios estes processual e constitucionalmente consagrados;
F) - Em virtude disso, deveria ter sido dado oportunidade às partes, nomeadamente aos aqui Recorrentes, a possibilidade de produzirem prova no sentido de provarem os factos por si alegados na P.I.;
G) - Deverá ainda por isso a presente demanda prosseguir, agora com a fase de instrução e posterior julgamento.
Dado o exposto e o Douto Suprimento, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em virtude disso, ser revogada a aliás Douta Sentença recorrida e mandando-se em virtude disso prosseguir a presente instância, nos seus termos processuais normais até final, tudo com as devidas consequências legais.”
Os réus contra-alegaram pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 707.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC.
Tudo visto, cumpre decidir do mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto está delimitado pelas conclusões dos recorrentes (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, visto que a propositura da acção é posterior a 1/1/2008 – cfr. art.º 12.º do mesmo diploma), a única questão a decidir consiste em saber se a mesma podia ser decidida, como foi, no despacho saneador ou se deve prosseguir com a instrução e posterior julgamento.
II. Fundamentação
1. De facto
Na decisão recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública lavrada no 1.º Cartório Notarial de Vila do Conde, no dia 12.12.2003, F………. e G………. declararam vender e os Autores declararam comprar, pelo preço de € 85 000,00, o prédio urbano composto de casa de um andar, para habitação, com quintal, sito no ………., da freguesia de ………., concelho de Vila do Conde, descrito na CRP sob o n.º 00189 / 941214, cf. documento de fls. 35 a 41, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido.
2. Esse facto foi inscrito, na CRP de Vila do Conde, pela apresentação n.º 3, de 6.01.2004, cf. documento de fls. 26 a 32, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido.
3. O identificado prédio confronta, pelo seu lado poente, com um prédio composto por casa de habitação e quintal, que está descrito na mesma CRP sob o n.º 179 e que actualmente pertence aos Réus.
4. O prédio identificado em 1 é murado em todo o seu perímetro.
5. Nele existe um poço de água.
6. Para aceder a esse poço, existe uma abertura no muro, a qual é tapada por uma porta.
7. Desde há mais de 20 anos e pelo menos até 21 de Outubro de 2007, que os Réus, por si e respectivos antepossuidores, retiram água do referido poço utilizando para o efeito baldes, que fazem baixar e subir através de uma corda.
8. Para tanto, entram no prédio identificado em 1 através da abertura referida.
9. Os Réus e os respectivos antepossuidores sempre agiram desse modo com o conhecimento e sem oposição dos Autores e dos anteriores proprietários do prédio que a estes pertence.
10. Na convicção de que têm direito a utilizar a água do poço.
2. De direito
As partes estão de acordo relativamente à constituição da invocada servidão por usucapião, divergindo apenas quanto à sua extinção, sendo que esta constitui o objecto da presente acção.
No saneador-sentença, a acção foi julgada improcedente por se ter entendido que a renúncia deve constar de escritura pública, que os factos alegados não integram sequer renúncia tácita nem desnecessidade e que é equívoca e contraditória a alegada “isenção” da servidão, já que não se pode extinguir aquilo que nunca foi constituído.
No recurso, os apelantes pugnam pelo prosseguimento da acção, defendendo que a renúncia pode ser expressa ou tácita e que “em tese” podemos estar perante um caso de desnecessidade.
Que dizer?
É sabido que o juiz só pode fundar a decisão nos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art.º 264.º do CPC (cfr. art.º 664.º do CPC).
Por força do princípio dispositivo, consagrado no citado art.º 264.º, cabe às partes alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (n.º 1), só podendo o juiz servir-se dos factos articulados, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito, isto é, com excepção dos factos notórios, dos factos de conhecimento oficial do tribunal e dos factos indiciadores de uso anormal do processo, bem como dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa e dos factos essenciais que sejam “complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório” (cfr. art.ºs 664.º, 514.º, 665.º e 264.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPC).
Quer dizer, excepcionados estes casos, o juiz só pode servir-se dos factos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos das pretensões formuladas na acção, alegados pelas partes, seja qual for a natureza e o tipo de acção.
São as partes quem define os contornos fácticos do litígio, pois devem ser elas a carrear para os autos os factos em que o tribunal se pode basear para decidir.
Assim, o autor deverá alegar os factos que dão consistência à pretensão por si formulada, enquanto ao réu competirá alegar os factos que servem de base à sua defesa.
É, portanto, monopólio das partes a conformação da instância nos seus elementos objectivos e também subjectivos (cfr. Montalvão Machado, O Novo Processo Civil, 2.ª ed., pág. 26 e Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil (revisto), págs. 53, 128 e 129).
É certo que, nesta temática, houve alguma limitação ao princípio dispositivo, decorrente da oficialidade resultante dos “factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa” (cfr. n.º 2 do citado art.º 264.º) e mesmo dos factos essenciais que sejam “complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado”, conquanto se verifiquem os condicionalismos já referidos, mencionados no n.º 3 do mesmo artigo.
Mas esta limitação do princípio dispositivo não pode ir ao ponto de a busca da verdade material - que se traduz na coincidência entre os factos provados e os factos realmente verificados - aligeirar os cuidados que a lei põe no tocante ao ónus da alegação e da prova.
Note-se, ainda, que os factos instrumentais ou indiciários são “factos que não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes, e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção (constitutivos)”, isto é, “factos que têm apenas a função possível de factos-base de presunção, e, como tais, dada a sua função instrumental e auxiliar da prova, estão subtraídos ao princípio dispositivo”, mas sempre sujeitos ao exercício do contraditório (cfr. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, págs. 275 e 276).
Por outro lado, dispõe o art.º 510.º, n.º 1, al. b) do CPC que, findos os articulados, se não houver que proceder à convocação da audiência preliminar, o juiz profere despacho saneador destinado a “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória”.
Como já se referiu, a acção foi julgada improcedente, na fase do saneador, além do mais que agora não interessa considerar visto não ter sido posto em causa no recurso, por se ter entendido que a renúncia deve constar de escritura pública e que os factos alegados não integram sequer renúncia tácita nem desnecessidade.
Não há dúvidas de que a renúncia constitui uma causa de extinção das servidões (cfr. art.º 1569.º, n.º 1, al. d) do Código Civil).
A renúncia consiste na declaração unilateral entre vivos pela qual o sujeito activo da servidão concretiza a sua decisão de deixar de ser titular desse direito, traduzindo-se assim na perda de um direito por vontade unilateral do respectivo titular. Como tal, constitui um negócio jurídico unilateral, pelo que não carece de aceitação do proprietário do prédio serviente (cfr. n.º 5 do citado art.º 1569.º).
A mesma podia ser expressa ou tácita, até 31/12/2008.
Sendo expressa, devia constar de escritura pública, visto que versava sobre a extinção de direito de servidão sobre imóvel (cfr. art.º 80.º, n.º 1 do Código do Notariado).
Por sua vez, a renúncia tácita podia resultar de factos donde a mesma se deduzisse claramente (cfr. Mário Tavarela Lobo, Manual do Direito das Águas, vol. II, 2.ª edição, pág. 321 e doutrina e jurisprudência aí citadas).
Porém, parece-nos indubitável que, a partir de 1/1/2009, deixou de poder verificar-se esta modalidade de renúncia, porquanto o DL n.º 116/2008, de 4/7, cujo art.º 34.º, alínea d) revogou o n.º 1 do citado art.º 80.º, veio dispor no seu art.º 22.º que “Sem prejuízo do disposto em lei especial, só são válidos se forem celebrados por escritura pública ou documento particular autenticado os seguintes actos: os actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis” [cfr. alínea a) e, quanto à entrada em vigor, o art.º 36.º, n.º 3, c)].
No caso dos autos, inexiste renúncia expressa, feita sob qualquer uma das aludidas modalidades de forma – escritura pública ou documento particular autenticado. Tal renúncia jamais foi alegada, sendo que os recorrentes também não a sustentam em sede de recurso.
E, quanto à renúncia tácita, permitida, a nosso ver, até 31/12/2008, não foram alegados factos bastantes donde a mesma se pudesse deduzir com clareza, sendo certo que, para ocorrer, era necessário alegar, para depois provar, factos que, com toda a probabilidade, a revelassem (cfr. art.º 217.º, n.º 1, parte final, do Código Civil).
É que os autores, aqui apelantes, limitaram-se a alegar que os réus deixaram de residir no prédio. Este facto não permite, só por si, ser interpretado como disposição do direito de servidão e concluir pela renúncia de tal direito. Como bem se diz na sentença recorrida, quando muito, poderia ser interpretado apenas como “não uso”, aqui irrelevante, porquanto, para servir de causa de extinção da servidão, teriam que decorrer vinte anos, o que não ocorreu manifestamente (cfr. alínea b) do citado art.º 1569.º).
Sustentam, ainda, os recorrentes que poderíamos estar perante um caso de desnecessidade da servidão, “em tese” e “tendo em conta a prova que se poderia produzir em audiência de julgamento”.
É certo que a desnecessidade pode conduzir à extinção de servidões nos termos do n.º 2 do citado art.º 1569.º, segundo o qual “As servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”.
Na interpretação do conceito de desnecessidade, tem-se entendido que ela “corresponde a uma falta de justificação objectiva para a manutenção de um encargo com o prédio serviente, atenta a inutilidade ou escassa utilidade que a existência de servidão representa para o prédio dominante. Este juízo de proporcionalidade deve ser encontrado na ponderação das circunstâncias concretas de cada caso” (cfr. Ac. da R.C. de 6/12/05, CJ, ano XXX, tomo V, pág. 29 e da RP de 12/12/2006, proferido no processo n.º 0622564, disponível em www.dgsi.pt).
Para além de objectiva, a desnecessidade deve ser típica e exclusiva, concretizando-se por uma mudança na situação, não do prédio onerado ou serviente, mas do prédio dominante, por virtude de certas situações neste sobrevindas. Efectivamente, na apreciação da desnecessidade, só interessa considerar o prédio dominante, pois só a ele, em princípio, respeita o proveito da servidão. Não tem, por isso, qualquer relevância a alteração sofrida pelo prédio serviente, tendo apenas interesse a modificação de que resultou a necessidade sobrevinda (cfr. Mário Tavarela Lobo, obra citada, pág. 327).
Escusado será dizer que os elementos necessários à avaliação da desnecessidade têm de ser alegados pelo requerente da extinção.
Quanto a esta matéria, os autores limitaram-se a alegar que a água do poço estava imprópria para o consumo doméstico e que, por isso, não tinha utilidade para o prédio dos réus.
Ora, esta matéria é manifestamente insuficiente para configurar uma situação de desnecessidade, tanto mais que a alteração verificada terá ocorrido no prédio serviente e não no prédio dominante, onde nada se alega ter acontecido relativamente à existência de água.
Tal situação, quando muito, poderia integrar uma mera impossibilidade de exercício da servidão.
Só que esta impossibilidade não importa a extinção da servidão, enquanto não decorrer o prazo de vinte anos, previsto na alínea b) do n.º 1 do citado art.º 1569.º (cfr. art.º 1571.º do Código Civil).
A ratio legis deste normativo é lapidarmente definida por Pires de Lima e Antunes Varela, nestes termos:
«Suponhamos que seca a nascente de água que servia de objecto à servidão, ou que é dado outro destino ao edifício onde estava a igreja ou a fábrica, às quais tinha acesso o dono do prédio dominante.
Se os factos forem temporários, seria manifesto desacerto considerar extinta a servidão, prejudicando definitivamente os interesses do proprietário dominante.
Mesmo, porém, que a impossibilidade seja considerada permanente e irremediável, se nenhum interesse reveste a afirmação (platónica) de que a servidão se mantém, também se afigura manifestamente inútil a declaração formal da sua extinção.
A solução deste artigo 1571.º, remetendo para o prazo aplicável ao não uso (art.º 1569.º, 1, alínea b)), tem, entre outras, a vantagem não despicienda de, imprimindo maior certeza ao direito, evitar que os tribunais se vejam envolvidos em indagações, nem sempre fáceis de levar a bom termo, sobre o carácter temporário ou permanente da impossibilidade.
Os termos amplos em que o artigo 1571.º se refere à impossibilidade de exercício são de molde a abranger todos os casos de verdadeira impossibilidade, onde quer que radique a sua causa: no prédio dominante, no prédio serviente ou fora deles…. E pouco importa também à aplicação da norma que a causa da impossibilidade provenha de factos naturais, ou de facto imputável ao titular da servidão, ao dono do prédio serviente ou a terceiro” (Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição, págs. 680 e 681).
A alegada impropriedade da água pode ter uma duração precária, bastando eliminar a fonte de contaminação ou sujeitá-la a um processo químico que a torne potável.
Mas nunca pode conduzir à pretendida extinção da servidão por desnecessidade, sendo evidente que também não decorreu o tempo necessário à extinção por impossibilidade de exercício do correspondente direito.
Quer tudo isto dizer que a acção podia ser decidida, como foi, no despacho saneador, nos termos do art.º 510.º, n.º 1, al. b) do CPC, já que o processo fornecia todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa e à apreciação do pedido formulado, com base em todos os fundamentos invocados, sem necessidade de produção de mais provas, sendo irrelevante a matéria de facto controvertida.
Por isso, não podem os autos prosseguir com a organização da base instrutória, nos termos do art.º 511.º, n.º 1 do CPC, tanto mais que não foram alegados outros factos relevantes para a decisão da causa e ainda vigora o princípio dispositivo em processo civil.
Como já se deixou dito, por força deste princípio, é às partes que cabe alegar os factos integradores da causa de pedir e aqueles em que baseiam as excepções, sendo que o juiz só pode fundar a sua decisão nos factos alegados, salvo no que respeita a factos notórios ou de que tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções ou indiciadores de uso anormal do processo, bem como nos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
Não se tratando de qualquer excepção ao princípio dispositivo, deviam os pertinentes factos ter sido alegados no respectivo articulado e por quem se arrogasse do correspondente direito.
Não o tendo sido, é manifesto que a acção não podia prosseguir com a elaboração da base instrutória, subsequente instrução e posterior audiência de discussão e julgamento, o que redundaria na prática de actos inúteis, que a lei proíbe (cfr. art.º 137.º do CPC).
Assim sendo, é por demais evidente que a acção podia e devia ser decidida, como foi, no despacho saneador, não se vislumbrando violação de qualquer norma jurídica ou princípio processual.
Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC para concluir:
1. As servidões prediais podiam ser extintas por renúncia expressa ou tácita até 31/12/2008, sendo que, a partir daí, só o podem ser mediante renúncia expressa feita através de escritura pública ou por documento particular autenticado;
2. A desnecessidade pode conduzir à extinção da servidão, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se verifique uma mudança na situação do prédio dominante em virtude de certas situações supervenientes, a aferir de forma objectiva, típica e exclusiva;
3. O facto de os réus deixarem de residir no prédio dominante não permite ser interpretado como disposição do direito de servidão e concluir pela renúncia do mesmo;
4. A mera alegação de a água estar imprópria para o consumo doméstico não integra o conceito de desnecessidade;
5. Por isso, a acção podia ser decidida, como foi, no despacho saneador.
Improcedem, deste modo, todas as conclusões e, consequentemente, a apelação, pelo que deve manter-se a decisão por esta via impugnada.
III. Decisão
Por tudo o exposto, julga-se improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
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Custas pelos apelantes.
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Porto, 18 de Janeiro de 2011
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo