Sumário

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1" A, com sede na Rua......., n°....., Lever, V.N. de Gaia intentou acção ordinária contra B, com sede na Rua....., n°......, Porto, alegando resumidamente que:
- no dia 11-1-96 ocorreu um incêndio nas instalações da A., o qual teve origem numa descarga eléctrica, descarga essa que provocou a queda de linhas de alta tensão, bem como a destruição da instalação de um prédio de rés-do-chão e 1 ° andar da pertença da A.;
- a Ré nunca pagou à A. qualquer quantia por conta dos danos por esta sofridos, os quais ascendem a 24.385.291$00;
- a Ré é responsável por tais danos uma vez que as suas instalações não cumpriam as regras de segurança exigidas e foram as causadoras do sinistro.
Concluiu pedindo a procedência da acção, com a consequente condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 24.385.291$00, actualizada mediante os coeficientes de inflacção verificados entre Janeiro de 1996 e a data da propositura, bem como os respectivos juros moratórios, à taxa legal, contados sobre a quantia apurada nos ditos termos desde a citação até efectivo e integral pagamento.

2. Contestou a Ré o pedido, excepcionado a ilegitimidade «ad causam» da A. para peticionar a indemnização por determinados danos e alegando resumidamente o seguinte:
- os danos sofridos pela A. resultaram de uma descarga atmosférica, fenómeno qualificável como de «causa de força maior», o que constitui excepção peremptória, não tendo a Ré violado qualquer regra de segurança;
- as instalações da Ré obedeciam às normas vigentes e em observância das regras de segurança;
- desconhece o valor dos danos sofridos pela A. que, todavia, se afiguram exagerados;
- a eventual responsabilidade da Ré pelos danos em causa achava-se transferida para a Seguradora - " C ".
Concluiu pedindo a procedência das excepções, com a sua consequente absolvição, ou, se assim não se entendesse, deveria a sua condenação da Ré limitar-se a 4.000.000$00 nos termos do artº 510 n° 2 do C. Civil.

3. Requereu ainda a intervenção da C.

4. Na réplica a A. manteve as suas posições de princípio.

5. Admitida a intervenção da seguradora, veio esta contestar alegando, também resumidamente, o seguinte:
- é verdade que a D transferiu para a contestante a cobertura das indemnizações devidas por danos corporais e ou materiais causados a terceiros pelas empresas do grupo, entre as quais a Ré;
- porém, a cobertura dos danos materiais não é aplicável à Ré;
- de todo o modo, sempre existia para todos os sinistros uma franquia de 15.000.000$00;
- acresce que o sinistro foi causado por um fenómeno natural de todo estranho ao funcionamento das instalações da Ré

6. Na contestação ao articulado da interveniente a A. reiterou as posições já antes processualmente assumidas.

7. Por sentença de 9-11-00, o Mmo Juiz da 1ª Vara Mista da Comarca de Vila Nova de Gaia, julgou a acção improcedente, com a consequente absolvição da Ré do pedido.

8. Inconformada com tal decisão, dela veio a A. apelar, mas o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 11-12-01, negou provimento ao recurso.

9. De novo irresignada, desta feita com tal aresto, dele veio a mesma A. recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
Iª - O douto acórdão... entendeu não estarem preenchidos os pressupostos exigidos pelo art° 483° do C. Civil para que possa haver responsabilidade por facto ilícito por parte da recorrida, nomeadamente, o nexo de imputação do facto - incêndio - ao lesante - a D - ou seja, a culpa; e por, no que toca à responsabilidade pelo risco, no âmbito do art° 509° do C. Civil, a causa do incêndio ter sido exterior e independente do funcionamento e utilização do apoio de suporte das linhas de alta tensão, e daí a inexistência de responsabilidade da por parte da D, e ainda por a responsabilidade desta pelos os danos que tivessem advindo da condução ou instalação deficiente pela recorrida, a sua responsabilidade estar afastada por o incêndio em causa se dever a causa de força maior, ou seja provocada por um raio;
IIª - não parece à recorrente acertada a douta decisão em apreço, pelos motivos que infra melhor se explanarão..
IIIª - De facto, era, e é, obrigação da Ré B diligenciar no sentido de manter as instalações eléctricas em perfeito estado de conservação, sendo que, conforme determina o Dec Reg 1/92 de 18/02 no seu preâmbulo, " a regulamentação de segurança das instalações eléctricas reveste-se da maior relevância (...) e carece de constante actualização, decorrente da evolução da técnica ";
IVª - Ora, resulta do texto da decisão em apreço, que a Recorrida B não tomou todos os cuidados que se lhe impunham, adoptando as medidas e segurança exigidas pelo Dec Reg 1/92 de 18/02, em ordem a evitar o perigo de incidentes como os que se verificaram, tendo também omitido deveres na instalação, conservação e manutenção das redes de distribuição de energia eléctrica em condições de segurança;
Vª - Assim sendo, como é, líquido se torna ter existido culpa, por omissão, da recorrida, que não providenciou por que todas as normas de segurança fossem verificadas, o que in casu não sucedeu, violando assim o disposto no citado artº 156, n° 1, do Reg anexo ao Dec Reg 1/92;
VIª - De facto, deveria a B ter diligenciado no sentido de colocar as ligações à terra, com as dimensões exigidas por lei, bem como colocar seccionador ou interruptor, segundo a prática seguida aquando da construção da linha em que integra, ligações essas que de imediato escoariam a corrente eléctrica evitando o incêndio e, consequentemente, os danos causados no edifício propriedade da recorrente;
VIIª - Não o tendo feito, existe, necessariamente, facto ilícito, bem como culpa, e, logicamente, nexo de imputação do facto ao lesante, devendo considerar-se ilícita a conduta da recorrida B;
VIIIª - Assim, a causa adequada a provocar o incêndio em questão consistiu, sem qualquer dúvida, nas referidas falhas, incúrias por parte da recorrida B, tornando-se claro que a B deveria ter previsto o resultado obtido, pois nada mais natural e previsível do que a ocorrência de uma descarga atmosférica, fenómeno, aliás, bastante frequente no Inverno, a fim de o evitar, e nem sequer o previu, devendo ter usado de uma diligência que não empregou;
IXª - encontram-se assim preenchidos os todos os pressupostos... da responsabilidade por factos ilícitos, nomeadamente, o nexo de imputação do facto ao lesante;
Xª - sempre a recorrida seria, de resto, responsável pelo pagamento dos danos à recorrente, nos termos do disposto no art°. 509°, nº 1 do C. Civil, sendo que a situação prevista pelo mencionado nesse preceito é uma das situações em que a lei prevê que exista responsabilidade indemnizatória independentemente da culpa do agente.
XIª - a recorrida B não só não provou que a instalação estava de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação, como, bem ao invés, resultou da matéria dada como assente que o apoio sito nas proximidades do estabelecimento comercial da A. está implantado directamente no solo, que data de 1945 e que não suporta seccionador ou interruptor, segundo a prática seguida aquando da construção da linha em que se integra, sendo que, mesmo estando provido de eléctrodo de terra, o mesmo não dispunha das dimensões exigidas por lei, pois, caso contrário, a corrente eléctrica seria facilmente escoada e não teria ocorrido tal incêndio, pelo que o eléctrodo existente foi manifestamente ineficaz para evitar o incêndio em apreço.
XIIª - Por outro lado, é indubitável também que a situação em apreço nos presentes autos não se trata de uma situação susceptível de integrar o conceito de "força maior ", pois que, se verifica que a recorrida B não agiu com todas as cautelas para poder evitar os danos eventualmente causados por uma descarga eléctrica provocada por um raio, não podendo tal fenómeno integrar o conceito de " caso de força maior ", visto ser previsível, sobretudo no Inverno, a ocorrência de tempestades geradoras de descargas eléctricas, que são atraídas por cabos de alta tensão;
XIIIª - De facto, uma descarga atmosférica é um evento natural bastante vulgar e que apesar de não ser previsível no tempo e no espaço, tomará previsível a sua ocorrência, nomeadamente na estação do Inverno e mais especificamente devendo ter-se como muito provável causador de danos, tanto mais que quando ocorre o fenómeno designado por " raio ", ou seja, a descarga atmosférica, não é este que procura o contacto com os fios de alta tensão mas, ao invés, são estes que os atraem;
XIVª - É que, se pudermos aceitar que uma descarga atmosférica, provocada por um raio, integra o conceito de força maior, toda e qualquer empresa estaria a coberto de qualquer responsabilidade pois que poderia sempre invocar o referido "caso de força maior ";
XVª - Existe também culpa da B sobre a forma de negligência, uma vez que não praticou todos os factos necessários para evitar o acidente como podia e devia ter feito;
XVIª - Ao não entender de tal modo, o douto acórdão recorrido violou o disposto nos artºs 483° e segs., 493°, n° 2, 509°, 562° e ss, 566°, 805° e 806°, todos do C. Civil, quer por erro de interpretação, quer por erro de aplicação das referidas normas;
XVIIª - Acresce que, no recurso de apelação por si interposto, o Recorrente invoca também a responsabilização da Recorrida B por força do disposto no artº 493°, n° 2 do C. Civil, sendo que no, aliás douto, acórdão recorrido, não consta qualquer alusão à responsabilidade da recorrida B por força de tais normas;
XVIIIª - Sendo assim, como é, nos termos do disposto nos arts. 721 ° e 668° do CPC deverá o douto acórdão recorrido, na parte em que omite a pronúncia sobre a responsabilidade da Recorrida B por força do disposto no artº 493, n° 2 do C. Civil, ser considerado nulo, seguindo-se os ulteriores termos, de acordo com o disposto no artº 731 ° do CPC;

10. Contra-alegou a Ré recorrida B sustentando a correcção do julgado, formulando, por seu turno as seguintes conclusões:
1ª- Da factualidade provada nos autos, não decorre qualquer actuação culposa imputável à recorrida B;
2ª- Ao invés, ficou provado que os danos foram causados por uma descarga atmosférica de grande intensidade e violência;
3ª- Esta, de acordo com a jurisprudência praticamente unânime e doutrina, constitui um caso de força maior que nos termos do artº 509º do C. Civil constitui uma causa exterior e independente do funcionamento e utilização da coisa.

11. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.

12. Em matéria de facto relevante, deu a Relação como assentes os seguintes pontos:
A)- A A. é uma sociedade comercial por quotas, cujo objecto consiste em supermercado, comércio e géneros alimentícios, incluindo talho, de produtos de higiene e limpeza, de vestuário e calçado e bar;
B)- Por sua vez, a Ré é uma entidade integrante do Grupo D, o qual detém, em exclusivo, o fornecimento de energia eléctrica em Portugal;
C)- Sendo a distribuição da mesma aos consumidores feita por diversos meios, nomeadamente através de linhas aéreas;
D)- As quais se encontram ligadas àquilo que vulgarmente se designa por postos de alta tensão;
E)- Dadas as enormes quantidades de energia que passam pelas aludidas linhas, a colocação das mesmas obedece a rigorosíssimas regras de segurança;
F)- Uma má colocação daquelas constitui um verdadeiro perigo de morte para todos aqueles que delas se aproximam;
G)- O estabelecimento comercial supermercado identificado em A) foi construído e encontrava-se, e ainda se encontra, instalado num terreno onde se encontra uma coluna que suporta linhas eléctricas condutoras de energia, com todos os projectos aprovados e licenciados e com concessão de todos os alvarás de funcionamento;
H)- Sendo que essas colunas designadas por postes de alta tensão devem ser construídos de acordo com a lei, respeitando todas as regras básicas de segurança;
I)- D transferiu, através de contrato de seguro titulado pela apólice n° 2-1-91-037322/07 para a C na qualidade de seguradora, a cobertura das indemnizações devidas por danos corporais e/ou materiais causados a terceiros pelas empresas do Holding, como segurado, entre as quais se encontra a ré B verificados no âmbito dos riscos cobertos pela apólice n° 2-1-91-37360/04; alínea I) da especificação;
J)- A mesma D transferiu o risco de responsabilidade civil "Geral. Exploração, Produtos e Poluição" pelo contrato de seguro titulado pela apólice n° 2-1-91-37360/04 em co-seguro que abrange todas as empresas do grupo D incluindo a Ré;
K)- B que compete realizar todas as tarefas de colocação, conservação e manutenção dos postes de alta tensão situados dentro da sua área geográfica de actuação, nomeadamente, em Vila Nova de Gaia;
L)- No dia 11-1-96 ocorreu um incêndio nas instalações da A.;
M)- O incêndio referido em causa foi originado por uma descarga atmosférica, vulgo raio,que é um fenómeno natural, o qual provocou uma descarga eléctrica;
N)- A descarga atmosférica referida provocou a queda de uma linha de alta tensão, tendo a descarga eléctrica que se lhe seguiu provocado a destruição da instalação eléctrica de um prédio de rés do chão e 1 ° andar;
O)- Como consequência desse facto, as instalações da autora ficaram parcialmente destruídas pelo fogo;
P)- Tendo a habitação do 1°andar sofrido avultados danos, nomeadamente num quarto que ficou parcialmente destruído;
Q)- Os danos sofridos no 1° andar do imóvel, que é pertença de E, importaram num valor global de 4.329.000$00, o qual foi integralmente liquidado pela Ré;
R)- Também a outros lesados pelo sinistro a Ré pagou todos os prejuízos por eles sofridos;
S)- Nomeadamente a E, que recebeu a quantia de 279.790$00;
T)- A Ré não pagou à A. qualquer quantia por conta dos prejuízos por esta sofridos em consequência do sinistro ora em causa;
U)- Tais prejuízos eram claramente perceptíveis por todos aqueles que posteriormente ao sinistro ocorreram ao local;
V)- Nomeadamente os técnicos responsáveis da Ré que ali se deslocaram para se inteirarem da situação e procederem às reparações necessárias num poste de alta tensão e nas instalações eléctricas;
X)- O toldo das instalações da A. encontrava-se queimado;
Y)- O interior estava num estado verdadeiramente caótico;
Z)- Com produtos completamente carbonizados;
A-1)- Outros, perfeitamente adulterados, por força das elevadas temperaturas a que foram sujeitos, maxime aqueles cuja conservação é feita em frio;
B-1)- Algumas máquinas encontravam-se irrecuperáveis do ponto de vista técnico;
C-1)- Tendo mesmo algumas delas ardido;
D-1)- Tudo por força, quer do elevado calor resultante do incêndio, quer da sobrecarga eléctrica a que foram sujeitos;
D-1)- Estes dois factores conjugados levaram a que, surpreendentemente a carne, que é um produto que deve ser conservado em frio, ficasse literalmente cozida;
E-1)- Logo após a ocorrência do sinistro os responsáveis da A. contactararn a Dra. F, Técnica Oficial de Contas que - presta serviços à A. -, a qual encarregou uma sua colaboradora para fazer um exame da situação e depois, perante tal exame, elaborar um relatório;
F-1)- A Dra. F concluiu, nesse relatório, pela existência de um prejuízo global em consequência do sinistro de 24.385.291$00;
G-1)-Em consequência do incêndio ficaram totalmente destruídos ou gravemente danificados, os seguintes artigos: maquinaria e produtos afins; câmara frigorífica de conservação de carnes; mesa de desmancho; 8 arcas congeladoras; murallacticineiro com 1,5; 2 armários frigoríficos; ilha congeladora; balcão frigorífico; armário expositor vertical; 1 moinho de café; 1 picadora; 1 cortadora mod.M-250; 1 máquina de café; 1 cortadora 1-250; balanças electrónicas; 10 módulos de gondola central; 3 prumos finais de gôndola; 2 mesas de saída 1500x1000; 1 mesa de balança; 1 expositor mural mod. ET -55416; 1 registadora mod. ET -5416; 2 insectocutores mod. 2214; 2 espelhos de supermercado; 1 vitrine frigorifica de talho mod. Sameiro com 6000 de cumprimento; 2 cepos em aço inox com madeira; produtos alimentares tais como fumados, queijos, gelados, produtos hortícolas, derivados de leite e afins, carnes; vestuário e calçado; artigos de drogaria; computadores e material de escritório;
H-1)- A linha de alta tensão em causa foi construída em 1945/1946;
I-1)- O apoio sito nas proximidades do estabelecimento comercial da autora está implantado directamente no solo;
J-1)- E, apesar de não suportar seccionador ou interruptor, segundo a prática seguida aquando da construção da linha em que se integra, foi e está provido de eléctrodo de terra;
K-1)- A linha de tensão era e é de 60 KV;
L-1)- A descarga atmosférica que atingiu o apoio próximo do estabelecimento da A. foi de tal violência que fracturou a cadeia de isoladores que suportava um dos condutores;
M-1)- Que, assim, passou a estar em contacto com a ferragem do - poste, agravando momentânea e instantaneamente as consequências do sinistro;
N-1)- A instalação da linha de alta tensão em causa obedecia à boa técnica;
O-1)- A Ré reparou os danos nas suas instalações;
P-1)- A A., em consequência do sinistro em causa nos autos, sofreu prejuízos cujo montante não foi possível apurar em concreto.
Passemos ao direito aplicável.

13. Um breve parêntesis para rejeitar a aventada nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, pois que a suposta " questão " da responsabilidade da Ré com base no disposto no nº 2 do artº 492º do C. Civil, pois que, conforme bem se alcança do respectivo texto e contexto, tal questão ficou claramente prejudicada pela solução dada às demais questões expressamente dirimidas ( artº 668º n nº 1 al d) do CPC) e que se prendiam com a responsabilidade por facto ilícito e/ou pelo risco, uma e outra afastadas pela ocorrência do detectado " caso de força maior ".

14. Estatui o artº 509º do C. Civil:
" 1. Aquele que tiver a direcção efectiva de instalação destinada à condução ou entrega de energia eléctrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou entrega da electricidade ou do gás, como pelos danos resultantes da própria instalação, excepto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.
2. Não obrigam a reparação os danos devidos a causa de força maior; considera-se de força maior toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa ".
Comentando o artº 509º do C. Civil, escrevem os Profs Pires de Lima e Antunes Varela, in " Código Civil Anotado ", vol I, 4ª ed, ver, pág 525:
" É um novo caso de responsabilidade objectiva, de resto atenuada quanto aos danos resultantes da própria instalação, pois se admite, para afastar a responsabilidade (objectiva), a prova de que a instalação se encontrava, ao tempo do acidente, de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação. É já puramente objectiva quando se trate de danos resultantes da condução ou transporte e da entrega ou distribuição de energia eléctrica ou de gás, seja qual for o meio utilizado.
O nº 2 do artigo exceptua os danos devidos a casos de força maior, isto é a uma causa exterior, independentemente do funcionamento e utilização da coisa. Tal é o caso de um ciclone ou de um raio " (sic).
Consagrando, no fundo a teoria da causalidade adequada, esse nº 2 "exclui a responsabilidade nos casos de força maior - considerando-se como tal não só toda a «causa exterior independente do funcionamento ou utilização da coisa» - como ainda nos casos de culpa vítima ou de terceiro. A lei refere-se apenas aos primeiros, não porque se pretenda considerar irrelevantes os outros motivos, mas por ser em relação à força maior (nomeadamente quanto à queda dos fios de alta tensão, provocada por temporal) que a doutrina e a jurisprudência tem levantado dúvidas e algumas legislações têm adoptado soluções diferentes " (sic).
Na legislação alemã por ex. - Lei de 15-VIII-43 - não é excluída a responsabilidade pelos danos provenientes da queda dos fios de condução, mesmo quando ela resulte de caso de força maior " - conf. Antunes Varela in "Das Obrigações em Geral ", vol I, 9ª ed., pág 739-740.
O STJ entendeu já, no Ac de 5-6-85, in BMJ nº 348, pág 397 que " a acção de ventos fortes não ciclónicos concorrentes para o entrechoque dos cabos das redes de distribuição de energia eléctrica não constitui força maior excludente da responsabilidade civil da empresa distribuidora pelos danos provocados por esse entrechoque ".
Depara-se pois uma típica situação de responsabilidade indemnizatória independentemente de culpa do agente - artº 483º nº 2 do C. Civil.
Os danos causados pela instalação (produção e armazenagem, condução (transporte) ou entrega (distribuição) dessas fontes de energia correm por conta das empresas que as explorem (como proprietários, concessionários, arrendatárias, etc). Assim como auferem o principal proveito da sua utilização, é justo que elas suportem os riscos correspondentes " - conf. prof Antunes Varela in ob cit, pág 737.
Pois bem: o que nos mostram os autos a este respeito da causa do evento danoso?
Concluiu a Relação soberanamente em matéria de facto que:
- no dia 11-1-96 ocorreu um incêndio nas instalações da A., " que foi originado por uma descarga atmosférica - vulgo «raio» - que provocou uma descarga eléctrica ";
- tal descarga atmosférica provocou a queda de uma linha de alta tensão, e a descarga eléctrica que se lhe seguiu provocou a destruição da instalação eléctrica de um prédio urbano e o fogo nas instalações da A., as quais ficaram parcialmente destruídas;
- a descarga atmosférica foi de tal violência que, atingindo o apoio próximo das instalações da A. fracturou a cadeia de isoladores que suportava um dos condutores, o qual passou a estar em contacto com a ferragem do poste, agravando instantaneamente as consequências do sinistro " (fim de transcrição).
Pretende a recorrente reconduzir a hipótese vertente a uma questão de pura responsabilidade extra-contratual, mas torna-se manifesto o não preenchimento dos pressupostos desse tipo de responsabilidade e da correlativa obrigação de indemnizar plasmados no artº 483º e s do C. Civil.
Faz-se o acórdão sub-judice eco da alegação da recorrente no sentido de imputar à Ré ora recorrida a autoria, ou seja a responsabilidade, pelo incêndio nas suas instalações, invocando adrede a violação do seu direito de propriedade e invocando ainda a violação pela Ré das normas destinadas a proteger interesses alheios, designadamente as normas do Decreto Regulamentar nº 1 /92 de 18/2 e respectivo Regulamento Anexo, mormente a do artº 5º deste último nos termos do qual " as linhas eléctricas de alta tensão serão estabelecidas de modo a eliminar todo o perigo previsível para as pessoas e a acautelar de danos os bens materiais ", sendo que " tal Regulamento " fixa as condições técnicas a que devem obedecer o estabelecimento e a exploração das linhas eléctricas de alta tensão com vista à protecção de pessoas e coisas e à salvaguarda dos interesses colectivos - artºs 1º nº 1 e 2º nº 1 ).
Isto vindo provado que é à Ré, ora recorrida, B, que compete realizar todas as tarefas de colocação, conservação e manutenção de postes de alta tensão situados dentro da sua área geográfica de actuação em Vila Nova de Gaia ".
Pretende a recorrente imputar culpa à Ré no deflagrar do incêndio no seu estabelecimento, traduzida aquela no facto de o poste ou apoio da linha de alta tensão sobre o qual incidiu a descarga atmosférica e a consequente descarga eléctrica não estava dotado de ligação à terra.
O artº 147º do Regulamento Anexo ao Citado Dec Regulamentar postula mesmo que " os apoios metálicos e de betão armado deverão ser individualmente ligados à terra por intermédio de um eléctrodo de terra". Eléctrodos esses que deverão possuir dimensões que permitam dar escoamento fácil às correntes de terra previstas, de forma a que o seu potencial e o gradiente de potencial à superfície do solo sejam os menores possíveis - artº 156º nº 1 do mesmo regulamento.
Ora, vem provado - resposta ao quesito 38º- que o apoio sito nas proximidades do estabelecimento comercial da A. estava provido de eléctrodo de terra. Ignora-se, é certo, se tal eléctrodo reunia as dimensões e espessura referidas nos nºs 2 e 5 do citado artº 156º, mas o certo é que competiria à A. ora recorrente, alegar e provar - como facto constitutivo do deu direito que era - que o eléctrodo colocado no apoio da linha de alta tensão em causa não permitia dar escoamento fácil e suficiente às correntes de terra previats " - artºs 342º e 487º do C. Civil.
E não resultando da restante matéria de facto provada que a Ré ora recorrida B haja omitido qualquer outro dever, seja no que respeita à manutenção e conservação do apoio da linha em causa, seja no que concerne à prevenção de eventuais descargas eléctricas, falha o nexo de imputação do facto - incêndio - ao presuntivo lesante - A Ré B- ou seja a respectiva culpa.
Aquele citado nº 1 do artº 509º contemplando a responsabilidade objectiva abrange danos com duas causas diversas: os da condução ou entrega de energia eléctrica e os inerentes à própria instalação. Nesta segunda hipótese, a responsabilidade é afastada se o lesante provar que a instalação ao tempo do acidente se encontrava de harmonia com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.
Em qualquer dos casos não existe, todavia, obrigação de indemnizar quando os danos sejam devidos a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa.
No caso sub-specie, os danos sofridos pela A. não resultaram - repete-se - da condução ou entrega da energia eléctrica, nem da respectiva instalação; resultaram isso sim, e como já deixámos dito, de uma descarga atmosférica que, por sua vez, originou o incêndio causador dos danos.
Tratou-se de uma causa de carácter exógeno e alheia ao funcionamento e utilização do apoio de suporte das linhas de alta tensão, a qual fracturou a cadeia de isoladores que suportava um dos consultores, que passou a estar em contacto com a ferragem de suporte - respostas aos quesitos 43º e 44º.
Ainda porém que os danos fossem advenientes daquelas situações - condução ou instalação - sempre a responsabilidade da Ré B se encontraria afastada pela ocorrência de motivo de força maior - nº 2 do citado preceito.
Na terminologia de Cunha Gonçalves, consubstancia «força maior» o acontecimento que podia ser previsto, mas não dominado, pelo menos dentro das forças o devedor " distinguindo-se do caso fortuito que é o facto imprevisto e irresistível. Exemplifica o mesmo autor, como situações de força maior, entre outras, os "fenómenos materiais e naturais " como " terramotos, tempestades, inundações, trombas de água ou de ar, nevões, raios etc.." - conf. Tratado de Direito Civil, vol IV, pág 527/528.
Um raio originado por trovoada deve qualificar-se como " força maior ", pois que embora previsível, não é susceptível de ser dominado pelo homem ".
Arredada se encontra pois a responsabilidade da Ré D ora recorrida (e subsequentemente da chamada Seguradora C) seja por via de responsabilidade extracontratual baseada em qualquer suposto facto ilícito (art.483º) seja por via de responsabilidade pelo risco (artº 509º), ambos essas normas do C. Civil.

15. Assim havendo decidido neste pendor, não merece o acórdão revidendo qualquer censura.

16. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 3 de Outubro de 2002
Ferreira de Almeida ( Relator )
Abílio Vasconcelos
Simões Freire