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Sumário
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
No Tribunal Judicial de Peso da Régua A e outros, dizendo-se integrantes da Lista C que em 30/12/99 teria ganho as eleições para os corpos sociais da Associação da Região do Douro para Apoio de Deficientes, vieram pedir, ao abrigo do art. 1500º do CPC, a investidura nos cargos dos respectivos órgãos sociais.
Indicaram como requeridos B, C e D, membros cessantes da Mesa da Assembleia Geral, que contestaram; e, após audiência final, foi proferida sentença que deu procedência à acção, ordenando a investidura - o que, em apelação dos requeridos, foi confirmado pela Relação do Porto.
Daqui veio o presente recurso de revista em que os recorrentes, requeridos na acção, alegam a pedir a revogação desse acórdão a o proferimento de decisão que julgue improcedente a acção.
Nas respectivas conclusões defendem, em síntese nossa, o seguinte:
- Os estatutos da ARDAD exigem, para a aprovação de deliberações da assembleia geral, a maioria absoluta dos votos dos associados presentes;
- A eleição de corpos sociais é feita por deliberação da assembleia geral que tem de revestir a mesma característica.
Não houve resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Não se levantam quaisquer questões quanto à matéria de facto apurada, pelo que, nessa parte, se remete para o acórdão recorrido, ao abrigo do disposto nos arts. 713º, nº 6 e 726º do CPC.
Dela se destaca o seguinte:
1. Nas eleições realizadas em 30/12/99 em assembleia geral da ARDAD votaram 237 associados desta;
2. Houve dois votos em branco, três votos nulos, trinta e um votos a favor da Lista A, noventa e seis votos a favor da Lista B e cento e cinco votos a favor da Lista C;
3. A ARDAD é uma associação particular de solidariedade social que tem por objecto fundamental a promoção do trabalho de deficientes recuperáveis.
Dos estatutos da ARDAD consta, designadamente e com interesse para a causa, o seguinte:
- Art. 30º: "Compete à Assembleia Geral deliberar todas as matérias não compreendidas nas atribuições legais estatutárias dos outros órgãos e necessariamente: a) ...... ; b) Eleger e destituir por votação secreta os membros da respectiva Mesa e a totalidade dos membros dos órgãos executivos e de fiscalização; ......"
- Art. 34º: "1- Salvo o disposto no número seguinte, as deliberações da Assembleia Geral são tomadas por maioria absoluta dos votos dos associados presentes."
Uma vez que a lista de que faziam parte os recorridos não obteve a maioria absoluta, a discussão estabelecida centra-se em saber se esta maioria absoluta era necessária ou se, pelo contrário, era suficiente a maioria relativa por o acto de eleição não ser uma deliberação.
Não vamos buscar a solução na letra dos estatutos da ARDAD, que, aliás, no art. 30º nos daria indicações de certo modo contraditórias; na verdade, por um lado, começa por atribuir à assembleia geral, de uma forma genérica, a competência para deliberar e, ao concretizar essa competência, alude à eleição dos membros dos órgãos executivos - que, nos termos do seu art. 17º, são a Mesa da Assembleia Geral, a Direcção e o Conselho Fiscal -, o que apontaria para que se considerasse que tal eleição é objecto de deliberação; mas, por outro lado, não é menos certo que as diversas alíneas em que esse art. 30º enumera competências específicas se exprimem de modos diversos, falando nuns casos em "deliberar" - caso das al. d) a e), respeitantes à aquisição e alienação de bens, à alteração dos estatutos, à extinção, cisão ou fusão da ARDAD e à aceitação de integração de outra associação - e omitindo noutros casos essa expressão - como sucede, nomeadamente, com a citada al. b) e com aquelas onde se fala em definir linhas de actuação, em apreciação e votação de orçamento e relatório e contas de gerência, em autorização para demandar judicialmente membros de corpos gerentes e em aprovação de adesão a outras entidades -, o que poderia ser entendido como subtracção de tais actos do conceito de "deliberação".
O caminho a seguir é o de, constatando que os Estatutos não definem o que é uma deliberação - nem seriam o lugar próprio para isso ser feito, dada a falta de rigor que os caracteriza -, buscar o conceito respectivo nas noções que a doutrina propõe e a lei consagra.
Vejamos então, recorrendo, quanto à doutrina, aos ensinamentos colhidos em civilistas, comercialistas e até administrativistas, dada a semelhança que a problemática da personalidade colectiva reveste nestes diversos ramos do direito.
Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 1960, pg. 40, cita as noções defendidas por Von Tuhr e Enneccerus, das quais ressalta que, havendo simples maioria ou - de acordo com o segundo - mesmo em caso de unanimidade, a deliberação traduz a expressão da vontade de uma colectividade através das vontades individuais manifestadas por uma pluralidade de pessoas.
Galvão Telles, Dos Contratos em Geral, 2ª edição, 1962, pg. 19, designa por deliberação os actos unilaterais plurais - porque multivoluntários - heterogéneos, pois supõem a possibilidade de luta de vontades divergentes, decidida pelo princípio da maioria.
Para Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. II, 1968, pg. 343, deliberação social é a decisão tomada pelos sócios em assembleia geral, resultante do concurso das declarações de vontade daqueles que se exprimem sob a forma e através do voto.
Para Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10ª edição, pg. 210, a deliberação consiste na vontade normativa - pois deriva da lei - de uma pessoa colectiva resultante do apuramento de uma votação em que se manifestaram diferentes vontades individuais.
Para Luís Brito Correia, Direito Comercial. Vol. III, 1990, pg. 117, deliberação social é um acto jurídico que resulta da unificação jurídica de várias declarações de vontade de uma pluralidade de pessoas físicas, reunidas num colégio ou agindo conjuntamente, que corresponde à posição da maioria dos votos dessas pessoas e que é imputável à pessoa colectiva de cujo órgão tais pessoas são titulares, podendo em certos casos ser imputável simultaneamente aos próprios titulares do órgão.
Para Pinto Furtado, Deliberações dos Sócios, 1993, pg. 49, deliberação é a declaração juridicamente imputável a uma pessoa colectiva ou simplesmente a um órgão seu, ou ainda, globalmente, a um grupo não dotado de personalidade jurídica, formada mediante o concurso dos sujeitos de direito que os compõem e moldada pela fusão das declarações individuais receptícias por eles emitidas (votos) que, no mínimo, integrem o núcleo mais numeroso de declarações de sentido idêntico.
Para Meneses Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, 1999, pg. 256, há deliberação quando várias pessoas são titulares de posições jurídicas confluentes que podem, no entanto, ser actuadas em sentido divergente, prevalecendo então a posição da maioria, não só no domínio da formação orgânica da vontade depois imputada a pessoas colectivas, mas também independentemente desse tipo de personalização.
Coerentemente com estas noções, disse-se na sentença, integralmente acompanhada pelo acórdão recorrido, que a deliberação social é a expressão colegial da vontade dos sócios de uma sociedade ou de uma associação, formada na assembleia geral.
Mas disse-se também que uma coisa é a deliberação e outra a eleição - escolha de pessoas para desempenhar determinado cargo ou função através de uma votação, pela qual cada um dos sócios manifesta a sua vontade individual -, que é anterior a qualquer deliberação, na medida em que são os eleitos que posteriormente vão deliberar de acordo com a vontade colegial.
Argumentou-se, a defender esta invocada diferença, com o art. 170º do CC - diploma do qual serão as disposições que de seguida referirmos sem outra identificação -, do qual não decorreria que a eleição de membros de corpos sociais seja uma deliberação.
Que mérito tem esta construção?
Versando o regime das associações, o art. 170º diz, no seu nº 1, que cabe à assembleia geral, não sendo estabelecido pelos estatutos outro processo de escolha, eleger os titulares dos respectivos órgãos, sem prejuízo da revogação, prevista nos seus nº 2 e 3, das funções dos titulares eleitos ou designados.
E no art. 172º, nº 1 diz-se competirem à assembleia geral todas as deliberações não compreendidas nas atribuições legais ou estatutárias dos outros órgãos; mas logo no seu nº 2 se introduziram limitações à possibilidade de atribuição de competência a outros órgãos quanto a certas deliberações, designadamente a de destituição dos titulares dos órgãos da associação, que serão, necessariamente, objecto de deliberações da competência daquela assembleia.
É preciso atentar em que, de acordo com o projecto sobre pessoas colectivas elaborado por Ferrer Correia no âmbito dos trabalhos preparatórios do Código Civil, o seu art. 23º continha os comandos do art. 172º, nº 1 e 2, e também aquele que veio a ficar constando do art. 170º, nº 1, ou seja, a eleição de administradores era atribuída à assembleia geral em total paralelismo com a sua destituição, uma e outra previstas em pé de igualdade.
Será que, com a alteração assim introduzida a nível de anteprojecto e projecto do Código Civil elaborados em sede de revisão ministerial, se pretendeu consagrar a ideia segundo a qual a eleição não é, ao contrário da destituição, o resultado de uma deliberação da assembleia geral?
Temos esta ideia como absurda, visto que, em qualquer dos casos, estamos perante uma vontade colectiva emergente de um colégio formado pelos associados. No caso de uma eleição, não pode dizer-se que os titulares dos órgãos são designados apenas pelos sócios que aprovaram uma das listas concorrentes - a que mais votos recebeu -, já que tal eleição é o resultado de uma assembleia geral e tem a sua validade condicionada pela regularidade da sua convocação, constituição e funcionamento.
E não cremos que se ponha em dúvida, a propósito da eleição de titulares de órgãos, a necessidade de verificação do "quorum" constitutivo a que se refere o art. 175º, nº 1, apesar de este ser exigido para "deliberar".
Aquele resultado da assembleia geral é apurado em função de uma votação, mas isso é o que sucede em qualquer outra deliberação.
Com a votação é expressa uma pluralidade de vontades individuais.
Com o apuramento do respectivo resultado apura-se o sentido da deliberação, seja ela, ou não, uma eleição.
É a assembleia geral que designa aqueles titulares, assim como é ela que os destitui.
Não se vêem razões de lógica ou de simples razoabilidade para tratar diferentemente a eleição e a destituição.
Isto mesmo veio a ser consagrado, mais tarde, no art. 386º, nº 2 do CSC, que se refere à deliberação da assembleia geral de sociedades anónimas que designa titulares de órgãos sociais, assim deixando claro que é por deliberação que esse órgão procede a uma eleição - e isto depois de no nº 1 do seu art. 376º não ter usado a esse propósito a expressão "deliberar", ao contrário do que fez quanto a outras atribuições, como se vê do confronto das suas al. a) e b), por um lado, e d), por outro.
Deixou-se, pois, claro que aquela designação é feita por deliberação.
Também na regulamentação das sociedades por quotas os arts. 246º, nº 2, al. a) e 257º, nº 1 do CSC falam em deliberação dos sócios, tanto a propósito da designação como da destituição de gerentes.
Por isso mesmo se lê em Luís Brito Correia, obra citada, pg. 118, que, entre outras, tanto a designação como a destituição de um administrador são exemplos de deliberações individuais - porque incidem sobre uma relação jurídica concreta -, numa classificação que as opõe às deliberações normativas - que respeitam a normas ou regras genéricas e duradouras aplicáveis na actividade social interna ou externa.
Impõe-se, pois, entender que é por meio de deliberação que a assembleia geral de uma associação, designadamente a da ARDAD, decide em matéria das suas atribuições, ainda que o faça com vista à eleição dos seus corpos gerentes.
Também aqui a eleição não é o resultado das vontades individuais de alguns sócios, mas do conjunto das vontades de todos os que nessa matéria se pronunciaram, cujo sentido deve ser apurado de acordo com as exigências estatutárias ou legais - ainda e sempre, portanto, e no dizer de Marcello Caetano, uma vontade normativa.
Há, também aqui, a formação e a manifestação de uma vontade colectiva.
Dir-se-á, como os canonistas: "electio est collegii, actus eligendi est singulorum".
E os próprios estatutos da ARDAD mostram que a diferença entre a terminologia usada nas diversas alíneas do seu art. 30º, ao empregar apenas em algumas delas a expressão "deliberar", não significa que com isso se esteve a consagrar um conceito restritivo do conceito de deliberação; na verdade, prosseguindo a sua leitura até ao seu art. 34º, logo se encontra no respectivo nº 2 a expressa qualificação como "deliberações" das decisões tomadas em matéria de autorização para demandas judiciais ou de aprovação de adesões, a respeito das quais se não empregara antes a expressão "deliberar".
Avançando-se, há que dizer o seguinte.
Os estatutos da ARDAD exigem, na linha do art. 175º, nº 2, que as deliberações sejam tomadas por maioria absoluta dos votos dos associados presentes.
A lista composta pelos recorridos não obteve essa maioria absoluta.
Dir-se-á que, havendo mais do que duas listas concorrentes, se torna, com essa exigência, especialmente difícil a obtenção, por qualquer delas, daquela maioria.
É verdade.
Mas não é impossível.
E, sobretudo, tal dificuldade não é razão para desprezar as expressivas indicações dadas pela lei, pelos estatutos e pela doutrina.
Bastará, para resolver o problema, que numa alteração dos estatutos se passe a prever, como é vulgar e corrente, uma solução para esse caso específico, como a da realização de uma segunda volta apenas entre as duas listas mais votadas.
Concedendo-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e a por ele confirmada sentença, negando-se aos requerentes, aqui recorridos, a pretendida investidura.
Custas pelos recorridos, aqui e nas instâncias.
Lisboa, 8 de Outubro de 2002
Ribeiro Coelho
Garcia Marques
Ferreira Ramos