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VÍCIOS DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário
I - Tendo o tribunal colectivo decidido em sede de acórdão final convolar para crime de furto de uso de veículo o crime de furto qualificado de que o arguido vinha acusado e tendo o proprietário do dito veículo declarado durante o inquérito que não desejava procedimento criminal, importava repristinar aquela declaração e accionar o procedimento preconizado no n.º 3 do art. 51.º, do CPP.
II - Não tendo levado em conta o apontado condicionalismo tem-se por evidente que o colectivo omitiu, no seu decisório de condenação, pronúncia sobre uma realidade que deveria ter apreciado e conhecido.
III - Prefigura-se, assim, a nulidade prevista na al. c), 1.ª parte, do n.º 1 do art. 379.º, do CPP, impondo-se a anulação do acórdão recorrido.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Perante Tribunal Colectivo, na comarca de Matosinhos, responderam, em processo comum, os identificados arguidos AA, e BB, acusados, pelo Ministério Público, da prática, em co-autoria material, de um crime de furto qualificado, previsto e punido nos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea c), do Código Penal.
Realizado o julgamento, ficou absolvido do crime imputado o arguido BB, tendo sido condenado o arguido AA - mas pela prática de um crime de furto de uso de veículo, previsto e punido no artigo 208º, nº 1, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão.
Desta decisão, recorreu a Exmª Procuradora Adjunta, a qual, após douta motivação (cfr: fls. 223-224), concluiu nos moldes que seguem (cfr: fls. 224-225):
Conclusões:
1 - O arguido AA foi acusado nos presentes autos pela prática de factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de furto p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.s 203º nº 1 e 204º nº 2 al. e), ambos do Código Penal;
2 - Da discussão da causa resultou como provada a prática pelo arguido de um crime de furto de uso de veículo p. e p. pelo art. 208º do Código Penal;
3 - Nos termos do preceituado no nº 3 do citado preceito, tal ilícito criminal assume natureza semi-pública, dependendo o respectivo procedimento criminal da apresentação de queixa por parte do ofendido - cfr. art.s 113º nº 1 do Código Penal e 49º do Código de Processo Penal;
4 - Conforme resulta do teor das declarações do ofendido constantes de fls. 40 dos autos, este declarou não pretender a continuação do procedimento criminal instaurado, desistindo assim da queixa apresentada;
5 - Tal desistência assume contornos de validade e relevância atento o preceituado nos art.s 113º nº 1 e 116º nº 2, ambos do Código Penal;
6 - Ora, efectuada a convolação do crime pelo qual o arguido vinha acusado (que assumia natureza pública) para o ilícito p. e p. pelo art. 208º do Código Penal nada mais restava ao Tribunal senão notificar o arguido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 51º nº 3 do Código de Processo Penal, para dizer se se opunha à desistência de queixa;
7 - Não sendo manifestada oposição, teria necessariamente de ser homologada a desistência de queixa por ser válida e relevante e, em consequência, ser o procedimento criminal declarado extinto;
8 - Ao proferir o acórdão condenatório dos autos, o Tribunal violou o preceituado nos art.s 113º, 116º, 208º nº 3 do Código Penal e no art. 51º nº 3 do Código de Processo Penal.
Termos em que deve ser anulado o acórdão recorrido e, em consequência, ordenada a notificação do arguido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 51º nº 3 do Código de Processo Penal, assim se fazendo, Justiça.
Não foi oferecida resposta.
Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Exmª Procuradora Geral Adjunta limitou-se a apor o seu "visto" (cfr: Fls. 249).
Na base das razões aduzidas no despacho de exame preliminar, tramitaram-se os autos para julgamento, recolhidos os vistos da lei (1).
E cumprida a audiência, em conformidade com o exigido ritualismo, cabe decidir.
A tanto se passa.
Vinha o condenado arguido AA acusado, como atrás se disse, da comissão (conjuntamente com o arguido absolvido) de um crime de furto qualificado (artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea c), do Código Penal); entendeu, porém, o douto tribunal "a quo", convolar a incriminação para a de furto de uso de veículo, albergável no artigo 208º, do Código Penal.
Ora, dispõe-se no nº 3 deste preceito que o procedimento criminal relativamente a este ilícito (único que, no aresto impugnado, se entendeu praticado) "depende da queixa."
E verdade é, tal como se recolhe dos autos, que o proprietário do veículo objecto da subtracção, o identificado CC deixou oportunamente explicitado que "não deseja procedimento criminal contra o autor ou autores da proeza, por não terem praticado danos na viatura..." (cfr. Fls. 40, Sublinhado nosso).
Se esta declaração, produzida que foi na fase de inquérito, se revelava inócua para obstar à legitimidade do Ministério Público, logo à validade da acusação por este deduzida, certo que esta o foi sob a égide de crime público (furto qualificado - artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal), dúvida não há que importava atendê-la e repristiná-la nos seus efeitos, uma vez que se decidiu, a final, pela convolação para um crime de natureza semi-pública (furto de uso de veículo - artigo 208º, nºs. 1, 2 e 3, do Código Penal), o que, forçosamente, demandaria trazer à colação, à luz do artigo 113º, do Código Penal, o disposto no nº 2 do artigo 116º, do mesmo Código e, decorrentemente, o accionamento processual do procedimento preconizado no nº 3 do artigo 51º, do Código de Processo Penal.
Aliás, convém que se anote que se é certo que o ofendido não identificou (até porque o ignorava) o destinatário (ou destinatários) do seu afirmado desejo de não procedimento criminal (a objectivar desistência da queixa inicialmente apresentada) envolveu nesta declaração todo e qualquer agente que viesse a ser tido por responsável dos factos ilícitos cometidos, o que é o bastante para consubstanciar tal desistência de queixa.
Não tendo levado em conta e atenção o apontado condicionalismo - de indiscutível e importante repercutibilidade para a posição e interesses processuais do arguido, afinal condenado por um crime a cuja perseguição faltava a indispensável condição de procedibilidade - tem-se por evidente que o douto Colectivo omitiu, no seu decisório de condenação, pronúncia sobre uma realidade que deveria ter apreciado e conhecido, tanto mais que a própria circunstância de ter procedido a uma convolação qualificativa (transmudando um crime público num crime semi-público) logo implicaria (ou deveria ter implicado), por si e em termos de uma contemplação integral da matéria e das questões a decidir, a indispensabilidade da apreciação e do conhecimento que faltaram.
Prefigurada está, assim, a nulidade prevista na alínea c), primeira parte, do nº 1 do artigo 379º, do Código de Processo Penal.
Em síntese conclusiva:
Razão assiste ao Ministério Público recorrente, impondo-se, para já, a anulação do acórdão recorrido, com o consequente regresso a um estádio processual em que se deve dar cumprimento no disposto no nº 3 do artigo 51º, do Código de Processo Penal, para, depois, se caso disso, se homologar a desistência da queixa (cfr: artigo 51º, nº 1, do Código de Processo Penal) com as legais consequências e sem prejuízo obviamente também se desse o caso, de vir a ser repetida a decisão que agora se anula.
Desta sorte e pelos expostos fundamentos:
Concede-se provimento ao recurso do Ministério Público, anulando-se o douto acórdão recorrido e devendo, em consequência, face a esta anulação, proceder-se, previamente a qualquer outra eventual decisão, à actividade processual que se deixou consignada.
Não é devida tributação.
Pela representação oficiosa, os honorários da lei.
Lisboa, 10 de Outubro de 2002
Oliveira Guimarães
Dinis Alves
Carmona da Mota
Pereira Madeira.
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(1) - Cfr: Fls. 250-250 v.