VÍCIOS DA SENTENÇA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
REENVIO DO PROCESSO
Sumário

I - Não tendo o tribunal colectivo apurado o valor concreto dos danos instrumentais do crime de furto qualificado por que condenou o arguido, assim como o valor dos danos autónomos, prefigura-se a nulidade prevista na al. c), 1.ª parte, do n.º 1 do art. 379.º, do CPP.

II - Porém, aqueles aspectos lacunares, numa perspectiva de maior rigor, consubstanciam o vício da al. a) - insuficiência para a decisão da matéria de facto - do n.º 2 do art. 410.º, do CPP.

III - Tal vício obsta a que se ajuíze seguramente da causa e impõe o reenvio do processo para novo julgamento (art. 426.º, n.º 1, do CPP).

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Perante tribunal colectivo, no 1.º Juízo Criminal da Comarca de Santa Maria da Feira, respondeu, em processo comum, o identificado arguido AA, acusado, pelo Ministério Público, da prática, como co-autor material e em concurso real, de dois crimes de furto qualificado – um deles previsto e punido nos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea a) e, outro, previsto e punido no n.º 2, alínea e) deste preceito, do Código Penal – de um crime de dano previsto e punido no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal e de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido no artigo 25.º, alínea a), do Decreto – Lei n.º 15/93, de 22.1.
Realizado o julgamento, decidiu o tribunal:
Absolver o arguido, da prática, como autor material, de um crime de furto qualificado, previsto e punido no artigo 204.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, considerando o Ministério Público parte ilegítima para prosseguir a acusação, absolvendo-o, também, da prática do imputado crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
Condenar o mesmo arguido, pela prática, como co-autor material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido nos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena 2 anos e 6 meses de prisão e de um crime de dano, previsto e punido no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, o que, operado o cúmulo jurídico destas parcelares, consubstanciou a pena única de 3 ( três) anos e 3 (três) meses de prisão.
( cfr: Acórdão de fls. 121 e seguintes, designadamente, fls 131-132)

Inconformado, recorreu o arguido, o qual, após motivação ( cfr: Fls 150 e seguintes), veio a concluir, como segue ( cfr: Fls 156-157):
1.ª / Os factos dados como provados integram apenas um crime de furto qualificado, em concurso aparente com o respectivo crime de dano.
2.ª / Toda a actuação descrita na matéria fáctica é de molde a concluirmos que o arguido e os colegas agiram apenas com intenção de danificar, para entrarem na garagem colectiva, na despensa dentro desta, e nos respectivos veículos, - sendo pois condição vital para se poderem apropriar dos objectos de que realmente se apropriaram.
3.ª / Atendendo a que houve arrombamento do portão da garagem colectiva, poder-se-á fazer a qualificação do furto pela al) e) do n.º 2 do artigo 204 do C.Penal.
4.ª / Porém, no contexto fáctico dado como provado, estão totalmente preenchidos os requisitos do crime continuado, definidos no n.º 2 do artigo 30º do C.P. e punível, nos termos do artigo 79º.
5.ª / Assim sendo, a pena não deveria ser superior a dois anos de prisão, suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50º – n.º 1 do Código Penal, ainda que por um período de dois anos ou três anos, já que o arguido não sofreu qualquer condenação, para além do crime de deserção.
6.ª / Foram violados os artigos 204º – n.º 2, al. e), 212, n.º 1, 71º, e 50º – n.º 1 – todos do Código Penal.

Nestes termos procedendo o recurso e condenando-se o arguido em pena não superior a dois anos de prisão, suspensa na sua execução, será feita
JUSTIÇA.
Respondeu, doutamente, o digno magistrado do Ministério Público, no sentido do integral improvimento do recurso.
( cfr: Fls 165 e seguintes, designadamente, fls 169).

Subidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça ( cfr: Fls 175, 176 e 177), o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, nada encontrando a obstar ao conhecimento do recurso, promoveu que se designasse dia para julgamento.
( cfr: Fls. 180)

Recolhidos os vistos da lei, teve lugar audiência, em conformidade com o ritualismo exigido.

Cabe decidir e a tanto se passa.

Como é sabido, delimita-se o âmbito do recurso, em função das conclusões extraídas, pelo recorrente, da respectiva motivação.
Perante as que, no recurso interposto, se alinham, reconduzem-se as questões propostas à temática de eventual concurso aparente entre os crimes de furto ( qualificado) e de dano, à de uma ventilada continuação criminosa e, enfim, à da medida da pena única aplicada ( a qual, na óptica do recorrente, não deverá ser superior a dois anos de prisão, justificando-se, além disso, a suspensão da sua execução, ainda que por um período de dois ou três anos).
Tais temáticas, integram, em exclusivo, matéria de direito, o que torna o recurso intentado acolhível na alçada cognitiva do Supremo Tribunal de Justiça ( cfr: alínea d), parte final, do artigo 432.º, do Código de Processo Penal).

Posto isto, recordemos a factualidade certificada pelo douto colectivo.

Foi ela, a seguinte:
1.º) Na noite de 17 de Maio de 2000, o arguido dirigiu-se ao café “ ...”, sito na Madalena, Vila Nova de Gaia, onde se encontrou e esteve a conversar com outros indivíduos, pelo menos três, cuja identidade não foi possível determinar.
2.º) Entretanto deslocaram-se os quatro até junto das Bombas de Combustível da B.P., em Coimbrões.
3.º) Seguiram até junto da Capela do Senhor da Pedra, em Miramar, Vila Nova de Gaia, onde se encontrava estacionado um automóvel de marca Fiat Uno, pertencente a indivíduo não identificado, cujo valor não foi possível identificar, e aí decidiram apoderar-se dele e deslocar-se para a zona de Santa Maria de Lamas.
4.º) Para o efeito, abriram a porta do lado do condutor com uma chave de outro veículo, que um daqueles indivíduos trazia consigo, e entraram para o referido automóvel, pondo o respectivo motor em funcionamento com a referida chave.
5.º) Dirigiram-se então para Santa Maria de Lamas, sendo que uns seguiam nesse veículo, enquanto outro(s) seguia(m) num veículo Volkswagen Polo, com a matrícula OZ.
6.º) Chegados a Santa Maria de Lamas pelas três horas da madrugada do dia 18 de Maio de 2000, o arguido e aqueles outros indivíduos decidiram introduzir-se nas garagens do prédio n.º ..., da Rua do Outeiro, com vista a apoderarem-se de bens ou objectos de valor que aí encontrassem, designadamente dentro dos vários automóveis que ali estavam estacionados, quer no exterior, quer no interior.
7.º ) Para o efeito, depois de se certificarem de que àquela hora mais ninguém passava nesse local, alguém, de entre o arguido e dos outros três indivíduos, partiu o dispositivo metálico de abertura do portão de acesso às garagens colectivas do prédio, com um bloco de cimento, assim conseguindo abrir o respectivo portão, e por ele se introduziram nas garagens do prédio, ficando dois deles de vigia à entrada do referido portão.
8.º) Depois de verificarem que ali estavam vários automóveis estacionados, dirigiram-se ao veículo marca Suzuky, modelo Vitara, com a matrícula GP, pertencente a BB, e quebraram a porta do lado esquerdo e o pára- choques traseiro, arrancando ainda o tejadilho do mesmo, causando-lhe estragos no valor de Esc. 220.000$00.
9.º ) Daí apoderaram-se de uma faca de prancha, com 40 cm de lâmina, no valor de Esc. “ 1.500$00”, uma caixa com ferramenta diversa, no valor de Esc. “ 5.500$00” e Esc. “ 50.000$00” em notas do Banco de Portugal que estavam guardados debaixo dessa caixa.
10.) Dirigiram-se também ao automóvel de marca Seat, com a matrícula GL, pertencente a CC, onde causaram estragos ao nível do pára- choques traseiro, causando-lhe estragos no valor de Esc. 30.000$00.
11.º) Rebentaram ainda a porta de uma dispensa ali existente, pertencente à referida CC, apoderando-se no seu interior de um aquecedor a óleo, marca Honey Well, no valor de Esc. “ 5.000$00”, um aspirador, de marca Unilar, própria para aspiração de viaturas, no valor de Esc. “ 2.000$00”, uma fechadura no valor de Esc. “ 5.000$00”, um berbequim, de marca Cinhel SBC 400, no valor de Esc. “ 10.000$00”; 2 litros de óleo para motor, no valor de Esc. “ 1.330$00”, uma lata de tinta especial auto brilho, no valor de Esc. 1.000$00” e dois frascos de champô para viaturas, no valor de Esc. “ 2.000$00”.
12.º) No exterior da referida garagem encontrava-se o veículo de matrícula EG, marca Fiat, pertencente a DD, tendo aqueles partido o vidro da porta do lado esquerdo, estragando a mesma, causando-lhe amolgadelas e arrancaram o “eleron” traseiro desse veículo, causando-lhe prejuízos no valor global aproximado de Esc. 250.000$00.
13.º) No interior de tal veículo partiram o auto-rádio de marca “ Cobra”, cujo valor rondava os 50.000$00 e apoderaram-se de um martelo, uma mala de musculação e um carregador de telemóvel, estes no valor global de Esc. 25.500$00.
14.º) Enquanto o arguido e os seus acompanhantes praticavam os actos supra referidos foi alertada a Guarda Nacional Republicana de Santa Maria de Lamas, comparecendo no local uma patrulha que tentou surpreender e deter aqueles, os quais fugiram.
15.º) No seguimento da perseguição então estabelecida apenas conseguiram deter o arguido, enquanto os demais indivíduos lograram pôr-se em fuga, deixando no local o referido veículo Volkswagen Polo.
16.º) Efectuada revista ao arguido, a referida patrulha da GNR encontrou na sua posse a quantia de Esc. 9.000$00 em notas do Banco de Portugal e a quantidade de 2,340 gramas de um produto acastanhado que, após exame laboratorial se revelou ser resina de CANABIS, substância prevista na Tabela 1-C, anexa do Dec. - Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
17.º) O arguido não destinava tal produto para venda ou cedência a terceiros, podendo aplicar o mesmo para seu consumo.
18.º) O Volkswagen Polo, com matrícula OZ, era pertença de EE, residente em Gemunde, na Maia, o qual tinha apresentado queixa por furto no Posto da GNR dessa localidade.
19.º) O arguido quis apoderar-se, como ficou anteriormente descrito, daquele Fiat Uno e dos objectos ou dinheiro que se encontravam nos outros veículos, os quais estavam na mencionada garagem ou nas proximidades, sabendo que o faziam e que assim agia contra a vontade dos respectivos donos.
20.º) O arguido quis igualmente provocar estragos naqueles veículos que estavam no interior e exterior da mencionada garagem, sabendo o que fazia.
21.º) O arguido quis deter o referido haxixe, sabendo que o fazia e conhecendo as características estupefacientes de tal produto.
22.º) O arguido agiu sempre em conjugação de esforços com os demais indivíduos, fazendo-o de livre vontade e consciente de que praticava actos proibidos por lei.
23.º) Ao referido BB foi restituída a caixa com ferramenta diversa mencionada em 9.º), enquanto à CC foram devolvidos o aquecedor a óleo, o aspirador, uma fechadura, um berbequim, 2 litros de óleo para motor, uma lata de tinta especial auto brilho, dois frascos de champô para viaturas, mencionados em 11.º) e a DD o martelo mencionado em 13.º).
24.º) O arguido é solteiro, vivendo com a sua mãe, encontrando-se desempregado, tendo anteriormente trabalhado como operário da construção civil.
25.º) O arguido tem como habilitações literárias o 6.º ano de escolaridade.
26.º) O arguido foi condenado em 1996 /Out /03 pela prática em 1995/ Jul /04 de um crime de deserção numa pena de três meses de presídio militar.

Nãos se provou que:

Os indivíduos referidos em 1.º) eram amigos do arguido, chamando-se os mesmos FF, GG e HH;
Depois decidiram dar uma volta na zona à procura de roupas que vissem em estendais das casas que lhes interessassem e que pudessem subtrair;
O veículo mencionado em 3.º tinha um valor superior a Esc. 800.000$00;
Aquando do referido em 4.º o HH trazia consigo a chave aí mencionada, tendo aí entrado três deles;
A quando do referido em 10.º) forçaram a porta do lado direito, na tentativa de a abrir,

Nenhum vicio, de entre os previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, vem invocado no recurso, nem arguida está qualquer nulidade de que importasse conhecer.

Decidindo:

O que se retira dos autos justifica as considerações seguintes:
Sendo que a subtracção ocorrida em Gaia ( do veículo automóvel Fiat Uno) não foi passível de perseguição criminal por ilegitimidade do Ministério Público e que a subtracção acontecida na Maia ( do veículo automóvel VW Pólo) se reporta a processo autónomo, resta considerar – além do dano – o furto em automóveis e arrecadações – com arrombamento – na garagem de Santa Maria de Lamas ( faça, caixa de ferramentas recuperada e 50.000$00 em dinheiro no veículo GP, aquecedor, tinta e champô, recuperados mais tarde) e na arrecadação de CC, auto-rádio, martelo ( recuperado) mala de musculação e carregador no veículo EG).
E integrarão o furto - agravando-o – os danos instrumentais produzidos no dispositivo metálico de abertura do portão de acesso à garagem (valor não indicado), na porta da arrecadação ( valor não indicado), nas portas dos veículos GP ( valor não discriminado) e EG ( valor não discriminado); sobram, mas a valorar como crime de dano autónomo, os danos ( de mera vandalização no para-choques e no tejadilho do veículo GP ( valor não discriminado), no para-choques do veículo GL (30.000$00) e no “ eleron” do veículo EG ( valor não discriminado).

Ora, uma segura avaliação punitiva de um e outro ilícito (à luz, designadamente, do que se estipula na alínea a) do n.º 2 do artigo 71.º, do Código Penal – grau de ilicitude dos factos e gravidade das suas consequências) teria, necessariamente, de passar por uma avaliação – que o douto colectivo não efectuou, nem indicou – dos danos instrumentais de furto, por um lado e, por outro, dos danos autónomos (de pura destruição).
Tais aspectos lacunares – idóneos à prefiguração da nulidade prevista na alínea c), primeira parte, do n.º 1 do artigo 379.º, do Código de Processo Penal – consubstanciam, porém, numa perspectiva de maior rigor ou de mais ampla indagação, o vicio da alínea a) ( insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) do n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, o que, obstando a que se ajuize seguramente da causa, em sede de direito, impõe o reenvio do processo para novo julgamento ( cfr: artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), julgamento complementar esse, incidente os aspectos que não resultaram apurados e que importa concretizar para definir um ajustado juízo de censura.

Em síntese conclusiva:
Conhecendo-se oficiosamente do identificado vicio e disso derivando a indispensabilidade de um julgamento renovado que permita superá-lo, por via de uma renovada indagação, tem-se por óbvio que fica prejudicado o conhecimento do demais que se ventila no recurso.

Desta sorte e pelos expostos fundamentos:
Anulando-se o douto acórdão recorrido, parcialmente, e no julgamento realizado, na base da verificação do vicio previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, determina-se, face ao disposto no n.º 1 do artigo 426.º, do Código de Processo Penal, o reenvio dos presentes autos para novo julgamento complementar, a incidir sobre os aspectos consignados, com cumprimento oportuno do que se estipula no artigo 426.º- A, ainda do Código de Processo Penal.

Não é devida tributação.

Lisboa, 10 de Outubro de 2002
Oliveira Guimarães
Dinis Alves
Carmona da Mota
Pereira Madeira