CONTRATO DE EMPREITADA
DEFEITO DA OBRA
INDEMNIZAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Sumário

1) É de empreitada o contrato pelo qual o proprietário de um veículo encarrega uma oficina de proceder à sua reparação ou revisão.
2) Tendo o dono do veículo optado por vender o veículo em virtude dos defeitos introduzidos por aquela oficina, sem ter previamente recorrido às vias judiciais (artº 1218º e seg. do CC), não pode depois pedir a condenação do inadimplente no montante do prejuízo sofrido com a desvalorização do carro.
3) Tendo o dono da oficina aplicado no veículo peças defeituosas, não pode por seu lado vir exigir o pagamento do preço da obra feita (abuso do direito - "tu quoque" e artº 428º-1 do CC).

Texto Integral

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I
Na presente acção, com processo ordinário, intentada em 20-2-97 por "A" (sociedade italiana), a A. invocando que forneceu e prestou serviços a B, no exercício da sua actividade de comércio e indústria de automóveis desportivos, os quais foram liquidados em regime de conta corrente, que ascenderam a ITL (liras italianas) 208.361.500 e de que já foi pago ITL 164.726.000, restando pagar ITL 46.635.500, que corresponde a Esc. 4.497.947$00, a que acrescem juros de mora desde o encerramento de tal conta, pede a condenação do mesmo a:
- pagar-lhe a quantia de Esc. 4.772.753$00, referente a capital e juros vencidos, acrescidos de juros vincendos à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
O R. contestou (fl. 14) aceitando que efectivamente tinha contratado com a A., designadamente a aquisição de um automóvel e a revisão do motor, mas que na sequência da última revisão que solicitou, apenas tem que liquidar a quantia de 2.500.000 ITL, que equivale a Esc. 250.000$00.
Mais sustentou, em reconvenção, que após essa última revisão, a qual foi realizada de modo negligente e com peças usadas em mau estado de conservação, tal veículo apenas percorreu 30 km., tendo tido por isso um prejuízo de Esc. 2.500.000$00, pedindo a condenação da A. a:
- pagar-lhe a quantia de Esc. 2.500.000$00, referente a capital e juros vencidos, acrescidos de juros vincendos à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, fazendo-se a compensação com aquela quantia de Esc. 250.000$00, restando à A. pagar-lhe a quantia de Esc. 2.250.000$00, acrescidos de juros de mora, calculados à taxa legal, a partir da citação e até efectivo pagamento.
Na réplica (fl. 37) manteve a A. a sua posição, pedindo se julgue improcedente a reconvenção.
Por sentença de fl. 241 e seg., foi julgada improcedente a reconvenção e parcialmente procedente a acção, tendo sido condenado o R. a pagar à A. 618 840$80, com juros de mora à taxa legal sobre esta quantia desde 12-6-96 até pagamento.
Apelou o R., tendo a Relação do Porto, por acórdão de fl. 274 e seg., confirmado a sentença.

Interpôs o R. recurso de revista, tendo concluído como segue a sua ALEGAÇÃO:
1- O Acórdão recorrido considerou e decidiu que não tendo o ora recorrente denunciado os defeitos da revisão do veículo, e, exigido a sua reparação, não podia reclamar indemnização pelos prejuízos sofridos.
2- Quer o recorrente quer a recorrida nunca suscitaram, e consequentemente discutiram nos articulados, a questão de o recorrente ter ou não denunciado os defeitos da revisão, e a de ter ou não exigido a sua reparação.
3- Quer dos "factos assentes", quer da "base instrutória", não consta uma única referência a tais questões.
4- Trata-se assim de questões novas, que nem sequer se encontram provadas, ou não provadas, por jamais suscitadas pelas partes.
5- O Acórdão recorrido, para fundamentar a sua decisão, ocupou-se, e conheceu de questão que nenhuma das partes submeteu à apreciação do Tribunal de 1ª Instância.
6- Enferma o mesmo, nos termos da alínea d), 2ª parte, do n° 1 do art° 668 do Cód. Proc. Civil, de nulidade por excesso de pronúncia.
7- Tendo violado, além do mais, o disposto nos n°s. 1 e 2 do art° 264, e a segunda parte do n° 2 do art° 660 ambos do Cód. Proc. Civil.
8- Os danos causados no motor do veículo propriedade do recorrente situam-se fora do contrato de empreitada.
9- Face à natureza dos factos ilícitos e culposos praticados pela Autora (aplicação de peças usadas e em mau estado de funcionamento) que provocaram tais danos, estes situam-se fora da relação contratual estabelecida entre Autora e Réu, ou seja, da empreitada.
10- A responsabilidade da Autora pelos prejuízos causados ao Réu - motor partido em consequência da aplicação de peças usadas, e em mau estado de funcionamento - advém do disposto no art° 483 do Cód. Civil.
11- Encontram-se reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extra contratual.
12- Decidindo, como decidiu, o Acórdão recorrido, violou, além do mais, o disposto no art° 483 do Cód. Civil.
13- A manter-se o decidido pelo Acórdão recorrido, deve entender-se ser ilegítimo o direito exercido pela Autora.
14- É inadmissível, mesmo chocante, que tendo alguém enganado outro de forma ostensiva, quase criminosa, aplicando peças usadas e em mau estado de funcionamento, venha, apesar da sua inqualificável atitude, a receber o preço de reparação, e, não pague os danos provocados ao proprietário do veículo, exactamente em consequência da "vigarice" praticada.
15- Como sucederia no presente caso.
16- Há assim manifesto abuso de direito, dado exceder-se manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes.
17- O abuso de direito é de conhecimento oficioso.
18-Além do mais, o Acórdão recorrido violou o disposto no art° 334 do Cód. Civil.
19- Deve revogar-se o Acórdão recorrido, julgando-se procedente o pedido reconvencional, ou seja, condenando-se a recorrida a pagar ao recorrente, a título de indemnização pelos danos causados, a quantia de 2.500.000$00 (dois milhões e quinhentos mil escudos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, até efectivo pagamento.
A A. não alegou.
II
MATÉRIA DE FACTO fixada no acórdão recorrido:
1) A A., no exercício da sua actividade de comércio e indústria de automóveis para competições desportivas, seus componentes e assistência técnica, forneceu e prestou serviços ao R., a solicitação deste, desde 1995.
2) Por conta daqueles fornecimentos e prestação de serviços, foram entregues à A. desde a abertura da conta corrente até 12-6-96, data do seu encerramento, 164 726 000 liras italianas.
3) O saldo devedor a favor da A. deveria ser pago na data do encerramento da conta corrente.
4) As 19 375 000 liras da factura nº 2/R de 22-2-96 são relativas à revisão completa do veículo Lancia Delta do R. (12 750 000) e à revisão do motor do mesmo veículo (6 625 000).
5) A A. efectuou uma revisão ao veículo do R. em 22-2-96.
6) A A. forneceu material e prestou serviços ao R., solicitados por este, que pelo menos consistiu no seguinte:
10-1-95 Fatt nº2 del 10-1-95 vendita autovettura 115 000 000
7-2-95 Fatt nº10 del 7-2-95 vendita materiale 2 392 000
9-2-95 Fatt nº12 del 9-2-95 vendita materiale 84 000
4-3-95 Fatt nº1/31 del 4-3-95 vendita cerchi 1 750 000
29-6-95 Fatt nº54 del 29-6-95 vendita materiale 13 039 500
29-6-95 Fatt nº8/R del 29-6-95 revisione autovettura 26 064 000
22-02-96 Fatt nº2/R del 22-02-96 revisione motore 8 000 000
27-2-96 Fatt 1/22 del 27-02-96 vendita turbo 4 400 000
num total de 170 729 500 ITL
7) Dos serviços referidos em 4) o R. apenas solicitou a revisão do motor do veículo.
8) Tendo acordado o seu custo com a A. em 8 000 000 de liras.
9) A A. propôs-se vender ao R. um turbo pelo preço de 4 400 000 liras.
10) Na revisão referida em 5) foram aplicadas pela A. peças usadas.
11) E em mau estado de funcionamento.
12) Por causa do referido em 10) e 11) o motor do veículo do R. partiu após ter percorrido apenas 30km.
13) A reparação do motor teria um custo superior a 2 500 000$00.
14) Motivo pelo qual o R. vendeu o veículo avariado- de motor aberto-pelo preço de 6 500 000$00.
15) Se o motor do veículo não tivesse partido, tal veículo valeria 9 000 000$00.
III
CUMPRE DECIDIR
As instâncias classificaram o contrato celebrado pelas partes como de empreitada, sujeitando-o por isso ao preceituado no artº 1207º e seg. do CC.
As partes não questionam essa classificação.
O contrato pelo qual o proprietário de um veículo encarrega uma oficina de proceder à sua reparação, ou revisão, tem sido considerado de facto contrato de empreitada (1).
Aceita-se aqui essa classificação.
Ponderaram de seguida as instâncias que o R. não cumpriu o "iter" prescrito no artº 1218º e seg. do CC, face ao comportamento da A., ao aplicar no carro peças usadas e em mau estado, causando-lhe vultuosos prejuízos.
Daí concluírem pela procedência (parcial) da acção e improcedência da reconvenção.
Não tem razão o R. ao dizer que o tribunal não podia invocar o artº 1218º e seg., já que as partes não suscitaram essa questão.
Esquece o artº 664º do CPC - o juiz conhece oficiosamente do direito.
A A. viu-se assim paga do preço convencionado, na medida do que se provou, e não foi sancionado o seu censurável comportamento.
Vejamos se é este o entendimento que deve extrair-se da lei.
Relativamente ao regime estabelecido no CC para a hipótese de a obra apresentar defeitos, vamos transcrever de acórdão recente deste Tribunal, relatado pelo aqui relator (2):
"Os artº 1218º e seg. do CC estabelecem o regime para a hipótese de a obra apresentar defeitos.
O artº 1220º fixa o prazo de 30 dias para a respectiva denúncia.
...
O dono da obra pode exigir a eliminação dos defeitos, o que lhe é permitido pelo artº 1221º.
Pode ainda exigir redução do preço ou a resolução do contrato - artº 1222º, pressupondo-se previamente o recurso ao artº 1221º (3).
Lê-se depois no artº 1223º:
"Indemnização
O exercício dos direitos conferidos nos artigos antecedentes não exclui o direito a ser indemnizado nos termos gerais."
O artº 1224º estabelece o prazo de caducidade de um ano.
...
Pedro Romano Martinez (4), que seguiremos de perto, distingue três grupos de meios ao dispor do dono da obra, no caso de esta apresentar defeitos:
a) resolução do contrato e redução do preço;
b) pretensões de eliminação dos defeitos e de substituição da coisa ou de nova realização da obra;
c) direito de indemnização.
Na relação entre os meios jurídicos previstos em a) e b) prevalecem os da alín. b).
Isto é, ao comprador ou dono da obra só cabe a escolha entre resolver o contrato e reduzir o preço caso a contraparte tenha recusado qualquer das prestações de cumprimento ou depois de decorrido um prazo suplementar fixado, nos termos do artº 808º do CC, para a sua efectivação.
Esta regra resulta do artº 1222º-1: há que obrigar o devedor a reparar ou substituir (construir de novo).
Caso se frustre essa pretensão, surge então o direito à resolução do contrato ou redução do preço.
Quanto ao direito a indemnização (supra alín. c), este meio não pode ser exercido em alternativa aos restantes, mas antes cumulativamente.
Reporta-se a danos não cobertos pelos meios previstos em a) e b).
Admitem-se duas excepções:
na hipótese de terem falhado as pretensões de reparação ou substituição, sendo estas possíveis, pode o comprador/dono da obra exigir o montante necessário para que a reparação/substituição sejam efectuados por terceiro - artº 828º do CC-ou para se obter bem idêntico ao preço de mercado;
se não for possível efectuar qualquer das pretensões de cumprimento e o defeito não implicar uma redução de valor, caso o credor não possa ou não queira recorrer à resolução do contrato, poderá então exigir indemnização.
O direito à eliminação dos defeitos poderá ainda cumular-se com o direito a redução do preço no caso de a reparação ser em parte impraticável.
A denúncia dos defeitos deve ser específica em relação a cada um que aparece e não em termos vagos ou genéricos (5).
Diferente da denúncia é a interpelação para um dos fins explicados supra.
Nada impede que o comprador/dono da obra efectue uma e outra no mesmo acto.
O devedor, depois de interpelado para cumprir, só entra em mora decorrido o prazo estabelecido (prazo razoável).
Não se justifica o estabelecimento desse prazo se o devedor recusou terminantemente cumprir ou se o credor perder entretanto o interesse na prestação (interesse avaliado objectivamente).
"Tendo o credor encarregado um terceiro de proceder à eliminação dos defeitos, sem ter previamente recorrido às vias judiciais, não pode depois pedir a condenação do inadimplente no valor das despesas efectuadas".
"Mesmo após a condenação em tribunal, o comprador/dono da obra não pode ele próprio proceder à reparação, tem de encarregar outrem dessa incumbência, salvo casos de urgência".
Este é o regime legal, segundo a doutrina que se tem debruçado sobre o tema e segundo a jurisprudência (6).
As instâncias seguiram a doutrina exposta.
Como se salientou, a A. vê-se assim paga do seu trabalho, realizado aliás com graves defeitos.
Em lugar de entrar em litígio com a A., com sede em Itália, cumprindo o "iter" descrito, o R. optou por vender o carro (destinado a ralis), suportando o prejuízo por aquela causado.
Para cúmulo, vê-se agora condenado no pagamento de uma reparação que só lhe trouxe dano.
A decisão das instâncias não é a que a ordem jurídica impõe.
A A. actuou de modo censurável.
Aplicou no carro peças usadas e em mau estado de funcionamento - supra II-10 e 11.
Trata-se de comportamento inadmissível em empresas do ramo.
Causou ao R. avultado prejuízo - II - 12 a 15.
O que não obstou a que viesse tentar cobrar o preço combinado.
Mal andou a A.
O seu comportamento enquadra-se na figura conhecida por "tu quoque".
Trata-se da regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderá, sem abuso (pensa-se entre nós no artº 334º do CC), exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído (7).
Cita-se o brocardo "turpitudinem suam allegans non auditur" ou "equity must come with clean hands".
A propósito, dizem alguns autores que quem conscientemente actua contra a lei não tem a protecção desta, ou ainda que as partes não podem recorrer ao tribunal para resolver problemas postos pelos seus negócios obscuros.
Outros ainda invocam a proporcionalidade contratual como estando na base do "tu quoque".
Deve pensar-se no sinalagma contratual e na harmonia pressuposta, destruída pelo atentado cometido por uma das partes, assim atingindo a outra prestação.
"A justificação e a medida do "tu quoque" estão nas alterações que a violação primeiro perpetrada tenha provocado no sinalagma".
Neste caso, há que considerar não ter a A. pelo seu lado cumprido o contrato.
Comprometeu-se a fazer a revisão do carro, respeitando as regras da sua arte, e não o fez.
Desrespeitou grosseiramente essas regras.
Não tendo cumprido pelo seu lado o contrato, não pode a A. exigir que o R. cumpra pelo seu lado.
Impede-o desde logo o artº 428º - 1 do CC.
Isto significa que a acção tem de improceder.
Quanto à reconvenção:
Como se viu, o R. deixou passar os prazos em que podia reclamar pela mau serviço prestado pela A.
Está em causa responsabilidade contratual, não extra-contratual, como ele pretende.
Essa responsabilidade tem de ser enquadrada nas regras citadas supra.
O incumprimento da A. é tido em consideração para efeitos de improceder a pretensão da A.
Não releva enquanto fundamento do pedido reconvencional do R., precisamente porque este não respeitou o "iter" previsto no CC.
O R., ter-se-á desinteressado de fazer valer o seu direito a uma indemnização, esperando porventura que também a A. pusesse uma pedra no infausto relacionamento contratual.
Concluindo:
Concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que julgou procedente a acção, improcedendo esta, bem como a reconvenção.
Custas na proporção de decaimento.

Lisboa, 10 de Outubro de 2002
Nascimento Costa
Dionísio Correia
Quirino Soares
_________________
(1) Pedro Romano Martinez, in Direito das Obrigações, 3º vol, obra dirigida por Menezes Cordeiro, pg. 411, e acórdão deste Tribunal de 24-10-95, in BMJ 450, 469.
(2) ac. de 10-1-2002, rec. 3944/01-7.
(3) nota ao artº 1222º no CC Anot. de Pires de Lima e A. Varela.
(4) Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, pg. 437 e seg.
(5) ob. cit., 373.
(6) ver acórdãos deste Tribunal de 13-10-98, rec. 768/98 e de 12-1-99, rec. 900/98.
(7) Segue-se o exposto por A. Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil, II, pg. 837 e seg.