CONTRATO DE DESCONTO BANCÁRIO
Sumário

I - O contrato de desconto bancário é fundamentalmente um empréstimo feito pelo Banco (descontador) à outra parte (descontário) da quantia correspondente ao valor nominal do título levado a desconto e endossado pelo último ao primeiro.

II - Este endosso tem o significado de uma dação pro solvendo (art.º 840 do CC), isto é, destinada a atribuir ao Banco descontador um meio que lhe facilite a satisfação do crédito.

III - O descontador fica a dispor de dois créditos contra o descontário: o crédito causal derivado do mútuo (art.º1142 do CC) e o crédito cambiário destinado a assegurar a satisfação do credor (art.º 840 do mesmo diploma), podendo assim reclamar este último dos respectivos obrigados cambiários, incluindo o descontário-endossante, nos termos do art.º 15 da LULL.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Na execução hipotecária que A instaurou, em 29.10.1997, contra B e mulher C para pagamento da quantia certa de 12.762.062$00, citados para a execução os credores com garantia real sobre o bem penhorado, a "D", além de dois outros credores, reclamou o pagamento da quantia de 3.000.000$00, proveniente de desconto de letra daquele montante efectuado em 25.02.1997, e respectivos juros vencidos de três anos no montante de 1.080.000$00, crédito cujo pagamento estava garantido por hipoteca sobre o bem penhorado.
Os executados, com apoio judiciário, impugnaram o crédito, invocando a excepção de caso julgado formado nos embargos de executado que deduziram em anterior execução que lhes fora movida pela ora reclamante com base na mesma letra, actuando ela ainda com manifesto abuso do direito e de má fé, devendo ser condenada em indemnização condigna e multa não inferior a 300.000$00.
A oposição foi julgada improcedente e o crédito graduado, por sentença de 13.07.2001.
Os executados recorreram, mas a Relação, por acórdão de 12.03.2002, julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença.
Pedem agora revista, pretendendo que, revogado o acórdão se julgue procedente a impugnação do crédito reclamado, com fundamento no caso julgado formado nos ditos embargos e abuso do direito.
O recorrido alega pela confirmação do julgado.
2. Nos termos dos art.º s 726º e 713º, nº 6, não tendo sido impugnada, nem havendo lugar à alteração da matéria de facto, remete-se para os termos em que vem fixada.
Para a decisão do recurso, cumpre salientar a seguinte:
A reclamante concedeu ao executado marido, a pedido deste, em 25.02.1997, um crédito proveniente de um desconto de uma letra entregando-lhe a quantia de 3.000.000$00, conforme documento comprovativo de fls. 27.
Este valor deveria ser pago pelo executado marido à reclamante no dia 24 de Maio de 1997.
A reclamante não recebeu qualquer quantia relativamente a esta operação de desconto e intentou contra o ora reclamado e "E" uma execução com processo ordinário para pagamento da quantia de 3.204.657$00 de capital e juros, com base em letra de 3.000.000$00, emitida em 24.02.1997, com vencimento em 24.05.1997, sacada pelo o ora reclamado, aceite pela "E" e endossada pelo sacador à reclamante.
O ora reclamado deduziu embargos de executado, em cujo processo, em 15.10.1999, foi proferida sentença que decidiu: "nos termos das disposições conjugadas dos artigos 9º, 43º, 44º e 53º da LULL, 496º, 510º, nº 1, al. b), 815º, nº 2 e 817º do CPC, julgo procedente a excepção peremptória da perda do direito de regresso, pelo que absolvo o embargante do pedido. Pelo exposto, julgo extinta a execução de que os presentes autos são apenso".
Tal sentença transitou em julgado.
A reclamação respeita à mesma letra de 3.000.000$00 dada à execução no anterior processo de execução.
Os executados constituíram a favor da "D" hipoteca registada do seu prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Vale de Cambra sob o nº 00274 da freguesia de Maceira de Cambra, para garantia de "quaisquer aberturas de crédito, letras, livranças, aceites, escritos particulares ou quaisquer outros documento congéneres, representativas de propostas de crédito, empréstimos que a mesma caixa tenha ou venha a conceder, em que sejam devedores".
3. A primeira questão a decidir é a de saber se a sentença proferida nos embargos deduzidos pelo executado B, julgando extinta a execução para pagamento da quantia certa de 3.000.000$00 e juros, que lhe movera a "D" com base na letra emitida em 24.02.1997, vencida em 24.05.1997, sacada por aquele, aceite por "E" e endossada à portadora, constitui a excepção dilatória de caso julgado "art.º 494º, al. i) do CPC", obstando à apreciação, na nova execução, do mérito da reclamação da "D" do seu crédito causal, derivado do mútuo, contra o mesmo executado e mulher.
Como se sabe a excepção de caso julgado, que pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença transitada em julgado, tem a finalidade de evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir a decisão anterior - art.º 497º, nº s 1 a 3 do CPC.
A repetição da causa afere-se pela identidade das acções, cumulativamente, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade de pedido quando numa e noutra se pretende obter o mesmo efeito jurídico; há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico- art.º498º do mesmo diploma.
O contrato de desconto bancário é fundamentalmente um empréstimo feito pelo banco (descontador) à outra parte (descontário) da quantia correspondente ao valor nominal do título levado a desconto e endossado pelo último ao primeiro. Este endosso tem o significado de uma dação pro solvendo (art.º 840º do CC), isto é, destinada a atribuir ao banco descontador um meio que lhe facilite a satisfação do crédito.
O descontador fica a dispor de dois créditos contra o descontário: o crédito causal, derivado do mútuo (art.º 1142º do CC) e o crédito cambiário destinado a assegurar a satisfação do credor (art.º 840º do mesmo diploma), podendo assim reclamar este último dos respectivos obrigados cambiários, incluindo o descontário - endossante, nos termos do art.º 15º da LULL.
Pressupondo a excepção de caso julgado a repetição de causas, aferida pela tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, falha a primeira delas quanto à executada C que não foi parte na execução contra a qual foi deduzida oposição por embargos.
E falha a terceira identidade, a da causa de pedir quanto a ambos: a execução proposta pela "D" baseava-se na obrigação cambiária do ora reclamado, como sacador-endossante, incorporada na letra endossada; o crédito reclamado na presente execução, tem por fonte a obrigação causal derivada do mútuo concedido ao reclamado, endossante do título descontado.
Improcede, pois, a excepção invocada
A segunda questão invocada é a actuação da reclamante com manifesto abuso do direito por ter caducado e haver sido cancelada a penhora relativa ao crédito exequendo na anterior execução.
Não tem razão. A reclamante não invocou, na presente execução por dívida com garantia real, a garantia da penhora efectuda na execução extinta, mas antes a da hipoteca que onerava o bem dos executados e também garantia o seu crédito proveniente do desconto.
De qualquer modo a reclamação do crédito garantido por penhora com registo caducado e cancelado, não constituiria abuso do direito, nos termos previstos no art.º 334º do CC, mas antes a ausência do direito de reclamação por falta de garantia real "art.º 865º, nº 1 do CPC que conduziria à sua rejeição liminar.
Improcede igualmente esta questão.
Decisão:
- Nega-se a revista.
- Custas pelos recorrentes sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Lisboa, 10 de Outubro de 2002.

Dionísio Correia (Relator)

Quirino Soares

Neves Ribeiro