I - O n.º 1 do artigo 132º do C. penal, que contém uma cláusula geral, resulta que o homicídio é qualificado, ou agravado, sempre que a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade; é essa a matriz da agravação, por forma a que sem especial censurabilidade ou perversidade, ela não ocorre.
II - Depois, ao lado desse critério aferidos da qualificação assente na culpa e que recorta efectivamente o tipo incriminador, o legislador produz uma enumeração aberta, meramente exemplificativa pois, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei "é susceptível" (1.ª parte do corpo do n.º 2).
III - Mas os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: "entre outras" no segmento final do corpo do n.º 2.
IV - De concluir, pois, que nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do n.º 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, que esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1; mas que na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não se verifique qualquer daqueles indicadores.
V - Pode ainda dizer-se que se estará perante um crime de homicídio qualificado quando a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, estando presentes vários indicadores das alíneas do n.º 2 do artigo 132º, que no seu conjunto o permitem afirmar, embora, individualmente, cada uma delas não reúna a qualidade/quantidade que justificou a sua inclusão como indicador.
VI - Para impugnar a qualificação da conduta como constituindo homicídio qualificado, devia o recorrente afirmar e demonstrar que a morte não foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, designadamente o índice contido na alínea do n.º 2 do artigo 132º do C. Penal invocada.
VII - Independentemente da verificação de qualquer circunstância prevista naquele n.º 2 do artigo 132º, sempre se deveria considerar incluso na previsão do n.º 1 do mesmo artigo, o caso em que se verifica:
- a futilidade do motivo que presidiu ao comportamento do arguido uma troca de palavras em que o arguido já respondera à expressão que ouvira ao assistente e a si referente;
- a traição e deslealdade com que desferiu o ataque (disparando totalmente de surpresa, sem qualquer aviso com uma caçadeira contra o assistente que se encontra indefeso e vulnerável no cimo de um telhado);
- o tipo e número de armas usadas e a forma como o foram (a armas de fogo diversas usadas de forma a não deixar qualquer hipótese ao assistente e a não fazer qualquer risco ao arguido);
- a frieza com que a conduta foi desencadeada e nela se persistiu (com o uso das 2 armas estando sempre o assistente especialmente vulnerável e indefeso: no cimo do telhado, primeiro, e agachado e de cócoras atrás duma porta, depois), apesar da atitude de medo e impotência do assistente, conduzem à qualificação do crime de homicídio por revelarem especial perversidade e censurabilidade.
VIII - Mas deve também entender-se que este presente o meio insidioso, tal como previsto na alínea f) do n.º 2 do falado artigo 132º, de acordo com a jurisprudência quase pacífica de que a expressão "meio insidioso", usada na alínea f) do citado artigo 132º, contém um conceito amplo ou elástico por forma a abranger as hipóteses de uso de meio que, nas circunstâncias concretas, revele a especial censurabilidade ou perversidade do agente que estão na base da qualificação do crime. Por conseguinte, só o apelo a essas circunstâncias pode conduzir ao juízo, positivo ou negativo, sobre a verificação do requisito da agravação especial.
- na pena de 5 anos de prisão, como autor material de 1 crime de homicídio qualificado tentado dos art.ºs 22.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23.º, 73.º, n.ºs 1 als. a) e b), 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. h) do C. Penal;
- na pena de 8 meses de prisão, como autor material de 1 crime de detenção e uso de arma proibida do art. 275.º; e
- na pena única de 5 anos e 4 meses de prisão que engloba, nos termos do art. 77.º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal).
1.2. Partiu para tal da seguinte factualidade.
Factos provados:
1) No dia 04/10/2000, o arguido, caseiro da Quinta de Sequeirós, sita em Loureiro, nesta comarca, encontrava-se a almoçar com vários trabalhadores que efectuavam trabalhos de construção civil (reparação de uma casa) naquela Quinta, entre os quais estava o assistente JPRO.
2) Durante o almoço, o arguido e o assistente envolveram-se em discussão verbal por causa da direcção do pessoal que efectuava as referidas obras de construção e reparação, bem como sobre o facto de no dia seguinte tais trabalhadores se disponibilizarem, ou não, a trabalhar, dado que seria feriado, acabando o arguido por dizer ao assistente, várias vezes, para se por fora da cozinha.
3) Já fora da cozinha, em conversa com os seus colegas de trabalho, as testemunhas CACR e MMM, e sem se aperceber da presença do arguido, o assistente proferiu a seguinte expressão: "que se foda, não me torna a ver os dentes", querendo com isto dizer que não voltava a falar com o arguido.
4) Em resposta, o arguido que ouviu aquela expressão, voltou-se para o assistente e disse-lhe: "vai-te foder tu, ou pensas que sou teu pai!?".
5) De seguida, o assistente deslocou-se para o local das obras, mencionado em 1), e o arguido subiu as escadas que davam acesso à casa que habitava, enquanto caseiro da referida Quinta.
6) No interior dessa casa, o arguido muniu-se de uma arma caçadeira, da marca "Amadeo Rossi", com o n.º RGT67962, de dois canos laterais, calibre 12 mm e com as demais características descritas no auto de exame de fls. 31 e de uma pistola da marca "Astra", adaptada para disparar munições de calibre 6,35 mm, sem número e com as restantes características apontadas no mesmo auto de exame de fls. 31.
7) Logo após, munido de tais arma caçadeira e pistola, que transportava em cada uma das mãos, o arguido saiu da dita residência e deparou com o assistente que se encontrava a cerca de 20 (vinte) metros de distância e em cima do telhado da casa que andava em reparação, reparando um cume.
8) De imediato, do cimo das escadas da referida residência, que se situava num plano superior ao do cume do telhado onde estava o assistente, o arguido, sem qualquer aviso, orientou a caçadeira indicada em 6) para baixo e efectuou com ela um disparo na direcção daquele, atingindo-o com chumbos na mão esquerda, mais propriamente em dois dedos dessa mão.
9) O assistente logo que foi atingido, desceu do dito telhado e refugiou-se atrás da porta de um armazém da casa onde efectuava as reparações
10) Não satisfeito com o resultado da sua acção, o arguido desceu as escadas da casa que habitava e, munido, ainda, as identificadas caçadeira e pistola, dirigiu-se ao local onde o assistente se havia escondido.
11) Chegado junto da porta - que se encontrava entreaberta - atrás da qual o assistente se encontrava agachado, o arguido deu um empurrão na mesma e, de seguida, com aquele ao seu alcance e a não mais de metro e meio de distância, orientou a descrita pistola adaptada para baixo, apontando-a à zona da cabeça do assistente e com ela efectuou dois disparos que o atingiram na face esquerda e na região do pescoço, do mesmo lado.
12) O arguido foi depois retirado do local pela testemunha TBB que (acorreu ali acorreu na sequência dos referidos disparos e que o levou para a casa que o arguido habitava, mencionada em 5), parte final.
13) A mesma testemunha transportou, de seguida, o assistente ao Hospital de Peso da Régua, o qual foi depois transferido para o Hospital de Vila Real e deste para o de Santo António, no Porto.
14) Em consequência da descrita actuação do arguido, o assistente sofreu perfurações nas referidas zonas corporais atingidas pelos chumbos da calçadeira e pelos dois projécteis da pistola, com alojamento destes dois últimos, respectivamente, na face e no pescoço, bem como traumatismo do pescoço, lesões estas que demandaram doença por um período de 80 dias, com incapacidade para o trabalho.
15) O arguido ao actuar pela forma que ficou descrita fê-lo com intenção de atingir e tirar a vida ao assistente, só não o tendo conseguido por razões estranhas à sua vontade, designadamente por não terem sido atingidos órgãos vitais, não obstante as zonas corporais atingidas alojarem alguns, e por o assistente ter sido socorrido e assistido de imediato.
16) Agiu motivado pela prévia discussão que tinha mantido com o assistente e efectuou o primeiro disparo, com a aludida caçadeira, de forma a apanhar este último de surpresa.
17) O arguido conhecia as características da identificada pistola, sabia que não tinha qualquer documentação da mesma, que ela era adaptada e, por isso, não legalizável e tinha-a adquirido para seu uso pessoal.
18) Actuou de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que a sua actuação era proibida e punida pela lei penal.
19) O arguido confessou a quase totalidade dos factos que ficaram descritos, à excepção da intenção de tirar a vida ao assistente e de que o tenha visado directamente (ou alguma parte específica do seu corpo) em qualquer dos disparos que efectuou.
20) Não tem condenações pela prática de qualquer crime.
21) É caseiro agrícola, aufere salário cujo montante não foi possível apurar com precisão, mas que ronda os 90.000$00 a 100.000$00, vive com a mulher e duas filhas menores, sendo aquele seu salário a única fonte de subsistência do agregado familiar.
22) Está bem integrado e é bem aceite no meio social em que vive e é tido como pessoa habitualmente pacata e ordeira.
23) Nos Hospitais de Peso da Régua e de Santo António, no Porto, o assistente pagou, por três consultas, 1.400$00 de taxas moderadoras.
24) Para tratamento das lesões sofridas, o assistente despendeu a quantia de 2.266$00 em medicamentos.
25) Em transportes ferroviários, para si e para a sua esposa que o acompanhava, para lhe ser ministrado tratamento no Hospital de Santo António, no Porto, despendeu a importância de 11.340$00.
26) Em refeições, para si e para a sua esposa, nas referidas deslocações ao Hospital de Santo António, gastou a quantia de 6.000$.00.
27) Em viagens de táxi entre a sua residência e os Hospitais de Peso da Régua e de S. Pedro, em Vila Real, para tratamentos, despendeu a importância de 9. 184$00.
28) Em consequência das lesões que sofreu na mão esquerda, o assistente andou com essa mão imobilizada, com tala, durante três semanas.
29) À data dos factos, o assistente exercia a profissão de trolha, trabalhando cinco dias por semana e auferia o salário mensal de 150.000$00.
30) Durante o período de tempo em que esteve incapacitado de trabalhar, o assistente deixou de auferir, de salários, a quantia de 400.000$00.
31) Em consequência das descritas agressões e lesões delas resultantes, o assistente passou a ter frequentes dores na mão e nas demais zonas corporais atingidas, as quais ainda se mantêm e se acentuam nas mudanças climatéricas.
32) Por vezes, na realização de tarefas inerentes ao exercício da sua actividade profissional, o assistente sente dificuldade em executá-las, por ter ficado com ligeira limitação da mobilidade da mão esquerda.
33) E ficou afectado de uma incapacidade permanente profissional de 5 %.
34) O assistente sujeitou-se a assistência e internamento nos Hospitais de Peso da Régua, Vila Real e Sto. António, no Porto, no período de 4 a 9 de Outubro de 2000.
35) Fez 19 sessões de fisioterapia no Hospital de Peso da Régua e fez tratamentos, curativos e radiografias.
36) À data dos factos, o assistente era saudável e trabalhador, sentindo-se actualmente desgostoso por não ser capaz de realizar as tarefas da sua actividade profissional com a destreza e desenvoltura com que as efectuava antes.
37) No momento das descritas agressões, o assistente temeu pela sua vida e sentiu-se angustiado.
38) O custo da assistência e internamento que o Hospital Geral de Santo António prestou ao assistente, em consequência das descritas agressões do arguido, importou em 270.300$00 que ainda não foram pagos.
39) O custo da assistência, Rx e transporte de ambulância que o Hospital Distrital de Peso da Régua prestou ao assistente, em consequência das mencionadas agressões do arguido, importou em 17.101$00 que ainda não foram pagos.
40) O custo da assistência e exames complementares de diagnóstico e terapêutica que o Hospital de S. Pedro - Vila Real prestou ao assistente, em consequência das ditas agressões, importou em 40.468$00.
41) A título de subsídio de doença, o CDSSS de Vila Real pagou ao assistente - beneficiário do SNS n.º 191766320 - a importância de 6 251,93.
III. Com relevância, nada mais se provou do que vinha alegada na pronúncia, nos pedidos de indemnização civis e na contestação, designadamente que:
a) A calçadeira mencionada em II.6), 1 parte, fosse, à data pertença do patrão do arguido, de nome JGR e que o arguido a detivesse sem autorização deste.
b) No momento em que o arguido efectuou o disparo com a caçadeira, o assistente se encontrasse de costas para o arguido.
c) No momento e trajecto indicados em II. 10), o arguido levasse a caçadeira apontada a meia altura.
d) Depois de atingido com os dois disparos da pistola adaptada, o assistente ainda tenha tentado fugir, correndo pelo lado de dentro do armazém, e tenha sido a testemunha MMM a impedir o arguido de continuar a perseguição àquele.
e) O arguido tivesse falta de pontaria, nomeadamente quando efectuou o disparo com a caçadeira.
f) O assistente apresente a mão e dedos lesados com inchaço e padeça de fortes picadas e adormecimento das zonas corporais atingidas.
g) Haja necessidade do assistente extrair os projécteis que se encontram alojados nas zonas corporais atingidas.
h) O assistente sofra de graves crises de angústia, ansiedade, irritabilidade e revolta.
1- O uso pelo arguido duma pistola 6,35 mm, a menos de 2 metros de distância do assistente que se encontra agachado em consequência de disparos anteriores, com a qual atinge o assistente na face esquerda e na região do pescoço do mesmo lado não constitui um meio insidioso;
2- Por meio insidioso deve entender-se aquele "meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno do ponto de vista do seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto.";
3- Face ao exposto, cometeu o arguido, ao abrigo do disposto no art.º 131º do Cód. Penal um crime de homicídio simples na forma tentada;
4- Ao assim não entender violou o Tribunal Recorrido as normas constantes dos art.ºs 131º e 132º n.º 2 al. h) do Cód. Penal.
2.2. Respondeu o Ministério Público a sustentar a decisão recorrida, que entende dever ser confirmada, pois «efectivamente, o arguido actuou de surpresa e traiçoeiramente, não dando ao assistente qualquer possibilidade de se defender da agressão de que foi vítima».
Foram colhidos vistos legais, teve lugar a audiência, no decurso da qual em alegações orais o Ministério Público sustentou que os factos provados não são susceptíveis de corporizar a cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade do n.º 1 o art. 132.º do C. Penal, nem o exemplo padrão do n.º 2 desse preceito que foi invocado. A defesa aderiu à posição do Ministério Público.
Cumpre, pois, conhecer e decidir.
4.1. O recorrente só questiona a qualificação jurídica da sua conduta, sustentando, como se viu, que cometeu um crime de homicídio simples do art.º 131º do Cód. Penal, na forma tentada, (conclusão 3.ª), pois que por meio insidioso deve entender-se aquele "meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno do ponto de vista do seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto." (conclusão 2.ª), e o uso que fez de uma pistola 6,35 mm, a menos de 2 metros de distância do assistente que se encontra agachado em consequência de disparos anteriores, com a qual o atinge na face esquerda e na região do pescoço do mesmo lado não constitui um meio insidioso (conclusão 1.ª).
4.2. Escreveu-se a propósito na decisão recorrida:
«Quanto à primeira circunstância qualificativa - utilização de meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum -, é certo que o arguido utilizou como armas de agressão uma espingarda caçadeira de calibre 12 mm e uma pistola adaptada ao calibre de defesa (6,35 mm). Mas isso não basta para que se considere verificada alguma destas situações. No primeiro caso, porque o que se exige é que o meio seja "particularmente perigoso" e não apenas perigoso, ou seja, que o meio revele uma perigosidade e potencialidade letal muito superior à normal dos meios habitualmente usados para tirar a vida a outrem, o que certamente não acontece com qualquer daquelas armas que são característicos e normais meios de agressão neste tipo de crimes (na definição do Prof. Figueiredo Dias, in obra e tomo citados, pág., 37, utilizar meio particularmente perigoso e servir-se o agente de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vitima e que criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes; com interesse também Ac. do STJ de 27/09/2000, CJ ano VIII, 3, 179). A segunda situação não pode verificar-se no caso em apreço, uma vez que, como se dirá adiante, o arguido será punido autonomamente pelo crime de perigo comum da previsão do art. 275.º n.º 3, relativamente à utilização da pistola adaptada (quanto à utilização da arma de caça, não tem aplicação nos presentes autos o que ora dispõe o art. 6.º da Lei n.º 22/97, de 27/06, na redacção dada pela Lei n.º 98/2001, de 25/08, que passou a incluir na sua previsão também a "arma de fogo de caça", uma vez que os factos em referência foram praticados em 04/10/2000 e a alteração introduzida naquele normativo pela Lei n.º 98/2001 apenas entrou em vigor a 30/08/2001, não podendo ter aplicação retroactiva por ser lei nova e não conter regime mais favorável ao arguido - art. 2º n.ºs 1 e 4, este "a contrario"; à data dos factos, a falta de documentação legal da arma de caça não constituía crime).
No que diz respeito à apontada circunstância qualificativa da al. h) do n.º 2 do citado tipo de culpa, a sua verificação no caso presente é manifesta, atenta a relatada actuação do arguido, particularmente a que ficou explanada nos n.ºs 10) e 11) do ponto II deste acórdão - o arguido, não contente com o resultado do primeiro disparo que fez com a espingarda caçadeira, foi ao encontro do assistente que se havia entretanto refugiado atrás da porta de um armazém, munido das duas referidas armas e ao encontrá-lo, numa posição particularmente debilitada e sem possibilidade de esboçar defesa (o assistente estava agachado e, por isso, numa posição de inferioridade e reveladora até de algum medo), apontou a pistola adaptada à zona da cabeça daquele e com ela efectuou dois disparos que o atingiram na face esquerda e na região do pescoço do mesmo lado (o que também revela que os disparos foram efectuados de cima para baixo, ou seja, quando o assistente ainda se encontrava na indicada posição) -, sendo a sua conduta reveladora de acentuada carga de perfídia e de insídia (para Figueiredo Dias, in "Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial", tomo I, pgs. 38 e 39, no conceito "insidioso" compreende-se todo o meio cuja forma de actuação sobre a vitima assuma características análogas à do veneno - referido na 1 parte da mesma alínea - do ponto de vista do seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto; o Ac. do STJ de 07/12/99, BMJ 492/168, entendeu que no conceito de "meio insidioso" cabem todos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos, ou em que exista estratagema, disfarce ou artimanha daquele que o usa).
Quer isto dizer que o arguido cometeu, em autoria material (e em concurso real com o crime que adiante se indicará), um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, da previsão conjugada dos arts. 22º n.ºs 1 e 2 al. b), 23º n.ºs 1 e 2, 73º n.º 1 ais. a) e b), 131º e 132º n.ºs 1 e 2 al. h).»
4.3. Dispõe o Código Penal:
«Artigo 132º - Homicídio qualificado
1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.
2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez;
c) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
e) Ser determinado por ódio racial, religiosos ou político;
f) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;
g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;
j) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Ministro da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das Regiões Autónomas ou do território de Macau, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente ou examinador, ou ministro de culto religioso, no exercício das suas funções ou por causa delas;
l) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso da autoridade.»
Este Supremo Tribunal de Justiça já teve ocasião de se pronunciar inúmeras vezes, quer sobre este dispositivo em geral, quer sobre o conceito de meio insidioso.
Em geral, tem afirmado constantemente que:
- As circunstâncias contempladas no n.º 2 do art.º 132 não são taxativas nem implicam só por si a qualificação do crime. Tais circunstâncias não são elementos do tipo e antes elementos da culpa não sendo o seu funcionamento automático (Ac. do STJ de 13.2.97, proc. n.º 986/96)
- A enumeração do n.º 2 do art. 132º do C. Penal não é taxativa.
A qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do art. 132º do C. Penal. Essencial, é que, as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade destina-tas (pela sua anormal gravidade ) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples. (Ac. do STJ de 21.5.97, proc. n.º 188/97)
- (2) O tipo do art.º 132, do C. Penal, (homicídio qualificado) consiste em ser a morte causada em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente (art.º 132, n.º 1), enumerando o n.º 2 do mesmo artigo um conjunto de circunstâncias, não taxativas, susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade. (3) Por isso, pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas diversas alíneas do n.º 2, do art.º 132, do C. Penal, e não existir especial censurabilidade ou perversidade justificativa da qualificação do homicídio e podem outras circunstâncias, diversas daquelas descritas, revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas como qualificativas.. (Ac. do STJ de 10.12.97, proc. n.º 1207/97)
- O legislador utilizou no art.º 132, do CP, a chamada técnica dos exemplos-padrão, sendo as circunstâncias elencadas nas diversas alíneas do n.º 2 meros indícios não taxativos e meramente enunciativos da existência ou inexistência da especial censurabilidade ou perversidade do agente aludida no n.º 1. É a especial censurabilidade ou perversidade do agente o fundamento da aplicação da moldura penal agravada do homicídio qualificado; e não as circunstâncias indicadas nos exemplos-padrão, que não são de funcionamento automático. (Ac. do STJ de 18.2.98, proc. n.º 1086/97)
- As circunstâncias enunciadas, a título exemplificativo, no art.º 132, n.º 2, do CP, são meros elementos da culpa, pelo que não funcionam automaticamente, mas apenas se no caso concreto revelarem especial censurabilidade ou perversidade do agente. (Ac. do STJ de 3.6.98, proc. n.º 301/98)
- As circunstâncias a que o art.º 132.º, do CP, se refere não são elementos do tipo, mas da culpa, devendo existir no momento do crime, ou preceder a sua execução. (Ac. do STJ de 8.7.98, proc. n.º 646/98)
- A verificação dos exemplos-padrão do n.º 2 do art.º 132.º, do CP, não funciona automaticamente, em termos de logo se dar por demonstrada a especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como elementos da culpa, implicam ainda um exame global dos factos de modo a chegar, ou não, àquela conclusão. (Ac. do STJ de 7.12.99, Acs STJ ano VII t 3 pag 234)
E, na verdade, do n.º 1 do art. 132.º do C. Penal, que contem uma cláusula geral, resulta que o homicídio é qualificado, ou agravado, sempre que a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. É essa a matriz da agravação, por forma a que sem especial censurabilidade ou perversidade, ela não ocorre.
Depois, ao lado desse critério aferidor da qualificação assente na culpa e que recorta efectivamente o tipo incriminador, o legislador produz uma enumeração aberta, meramente exemplificativa pois, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei "é susceptível" (1.ª parte do corpo do n.º 2).
Mas os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: "entre outras" no segmento final do corpo do n.º 2).
De concluir, pois, que nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do n.º 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, que esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1; mas que na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não se verifique qualquer daqueles indicadores (neste sentido o Ac. do STJ de 19.6.96, proc. n.º 203/96):
Finalmente, pode dizer-se que se estará perante um crime de homicídio qualificado quando a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, estando presentes vários indicadores das alíneas do n.º 2 do art. 132.º, que no seu conjunto o permitem afirmar, embora, individualmente, cada uma delas não reúna a qualidade/quantidade que justificou a sua inclusão como indicador.
4.4. O recorrente na sua motivação não impugna o acórdão recorrido quando decidiu que, no caso se verifica especial censurabilidade ou perversidade, que se verifica a cláusula geral traduzida na formulação genérica do tipo (especial censurabilidade ou perversidade) (n.º 1), ou seja, o crime de homicídio qualificado.
O que impugna é que a matéria de facto apurada permita o preenchimento do conceito de meio insidioso, o índice da al. h) do n.º 2.
Mas, para impugnar a qualificação da conduta como constituindo homicídio qualificado, devia o recorrente afirmar e demonstrar que a morte não foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, designadamente mediante «meio insidioso».
Sucede, porém, que independentemente de se ter verificado qualquer dos índices das alíneas do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal, designadamente o "meio insidioso", as circunstâncias em que a morte do ofendido foi tentada, revelam especialmente censurabilidade ou perversidade.
Com efeito, vem assente, em síntese, que o arguido e o assistente durante um almoço com outras pessoas envolveram-se em discussão, acabando o arguido por dizer ao assistente para se por fora da cozinha. Já fora desta, em conversa com os colegas de trabalho, e sem se aperceber da presença do arguido, o assistente proferiu a seguinte expressão: "que se foda, não me torna a ver os dentes", e em resposta, o arguido que ouvira aquela expressão, voltou-se para o assistente e disse-lhe: "vai-te foder tu, ou pensas que sou teu pai!?". O assistente deslocou-se para as obras, e o arguido foi a casa e muniu-se de uma caçadeira, e de uma pistola adaptada para disparar munições de calibre 6,35 mm.
Logo após, munido de tais arma caçadeira e pistola, o arguido saiu de casa e deparou com o assistente que se encontrava a cerca de 20 metros de distância reparando um cume em cima do telhado de uma casa. De imediato, do cimo das escadas da sua residência, num plano superior ao do cume do telhado onde estava o assistente, o arguido, sem qualquer aviso, orientou a caçadeira para baixo e disparou na direcção daquele, atingindo-o com chumbos em dois dedos da mão esquerda.
O assistente logo que foi atingido, desceu do telhado e refugiou-se atrás da porta de um armazém da mesma casa, mas o arguido, não satisfeito com o resultado da sua acção, desceu as escadas da sua casa e, munido, ainda, das identificadas armas, dirigiu-se ao local onde o assistente se havia escondido.
Chegado junto da porta entreaberta atrás da qual o assistente se encontrava agachado, o arguido deu um empurrão na mesma e, de seguida, com aquele ao seu alcance e a não mais de metro e meio de distância, orientou a descrita pistola adaptada para baixo, apontando-a à zona da cabeça do assistente e com ela efectuou dois disparos que o atingiram na face esquerda e na região do pescoço, do mesmo lado.
O arguido agiu motivado pela prévia discussão que tinha mantido com o assistente e efectuou o primeiro disparo, com a aludida caçadeira, de forma a apanhar este último de surpresa.
Sem pretender afirmar, neste momento, a presença de uma ou várias circunstâncias, tais como previstas nas alíneas do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal, sempre se imporia concluir que:
- a futilidade do motivo que presidiu ao comportamento do arguido (uma troca de palavras em que o arguido já respondera à expressão que ouvira ao assistente e a si referente);
- a traição e deslealdade com que desferiu o ataque (disparando totalmente de surpresa, sem qualquer aviso, com uma caçadeira contra o assistente que se encontra indefeso e vulnerável no cimo de um telhado);
- o tipo e número de armas usadas e a forma como o foram (a armas de fogo diversas usadas de forma a não deixar qualquer hipótese ao assistente e a não fazer qualquer risco ao arguido);
- a frieza com que a conduta foi desencadeada e nela se persistiu (com o uso das 2 armas estando sempre o assistente especialmente vulnerável e indefeso: no cimo do telhado, primeiro, e agachado e de cócoras atrás duma porta, depois), apesar da a atitude de medo e impotência do assistente, conduzem à qualificação do crime de homicídio por revelarem especial perversidade e censurabilidade.
Mas deve também entender-se que esteve presente o meio insidioso, tal como previsto na al. f) do n.º 2 do falado art. 132.º.
Entendimento que cabe dentro da forma pela qual este Supremo Tribunal de Justiça tem entendido a Lei. Na verdade, da sua jurisprudência claramente maioritária, pode concluir-se que o Supremo Tribunal considera que a expressão "meio insidioso", usada na al. f) do citado art. 132º, contem um conceito amplo ou elástico por forma a abranger as hipóteses de uso de meio que, nas circunstancias concretas, revele a especial censurabilidade ou perversidade do agente que estão na base da qualificação do crime. Por conseguinte, só o apelo a essas circunstâncias pode conduzir ao juízo, positivo ou negativo, sobre a verificação do requisito da agravação especial. (Ac. do STJ de 25.6.87, BMJ 368-340).
Que «(1) Quando, na al. f) do n.º 2 do art. 132º do C Penal de 1982, se falta em «meio insidioso», a lei quer aludir não só às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, mas também aos que são particularmente perigosas e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossível. (2) O conceito de «meio insidioso» abrange os meios aleivosos, traiçoeiros ou desleais, abarcando, atentas a sua latitude e elasticidade, os crimes cometidos com emboscada, traição, aleivosia ou estratagema. (3) A insídia resulta bem evidenciada no contexto de matéria de facto em que o arguido esperou a vítima, encoberto por vegetação que bordejava o caminho, num plano ligeiramente superior, munido de espingarda caçadeira, utilizando nos dois disparos feitos cartuchos carregados de gagos de chumbo designados por «zagalote», tendo-lhe causado a morte com dolo directo no momento em que a vítima distava de si oito metros.» (Ac. do STJ de 19.12.89, AJ n.º 4 e BMJ 392-243)
«É detectável na jurisprudência do STJ sobre o assunto, uma concepção segundo a qual, não é o instrumento em si que constitui o "meio insidioso", mas antes o seu uso em determinadas circunstâncias, que revelam uma carga de perfídia e tornam difícil ou impossível a defesa da vitima. E são precisamente essas circunstâncias, as decisivas para conduzir a um juízo sobre a verificação do requisito de agravação especial contemplado no tipo de homicídio agravado. »(Ac. do STJ de 19.6.96, proc. n.º 203/96)
Ou ainda que, «quando a lei [art. 132., n. 2, al. f), do C. Penal] fala em meio insidioso não quer necessariamente abarcar os instrumentos usuais de agressão (o pau, o ferro, a faca, a pistola, etc.), ainda que manejados de surpresa, mas sim aludir tanto as hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, como aos que são particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossível a defesa da vitima.» (Acs. do STJ de 11.6.87, BMJ 368-312 e de 11.1.95, proc. n.º 46631).
E que «(2) A al. f) do n.º 2 do art.º 132, do CP, ao falar em meio insidioso quer aludir não só às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, mas também aos que são particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossível a defesa da vítima. (Ac. do STJ de 14.11.98, proc. n.º 732/98)».
«O conceito de meio insidioso é amplo, abrangendo os meios traiçoeiros e desleais e a forma de actuação. (Ac. do STJ de 24.2.99, proc. n.º 1365/98)». «Sob o conceito de insídia visa-se abranger todo aquele conjunto de situações em que, no fundo, a traição e a surpresa estão subjacentes - agravação prevista na al. f) do n.º 2 do art.º 132.º, do CP.» (Acs. do STJ de 20-05-1999, proc. n.º 1455/98 e de 17.1.01, proc. n.º 2843/00-3)
«A expressão "meio insidioso", usada na al. f) do citado art. 132º, contem um conceito amplo ou elástico por forma a abranger as hipóteses de uso de meio que, nas circunstancias concretas, revele a especial censurabilidade ou perversidade do agente que estão na base da qualificação do crime. Por conseguinte, só o apelo a essas circunstâncias pode conduzir ao juízo, positivo ou negativo, sobre a verificação do requisito da agravação especial.» (Ac. do STJ de 25.6.87, BMJ 368-340)
Na apreciação dos casos concretos que lhe tem sido submetidos, tem o Supremo Tribunal de Justiça decidido em conformidade com este critérios, como se pode ver da seguinte síntese.
- O meio usado foi insidioso, pois o arguido disparou a arma traiçoeiramente, dentro do seu automóvel (no qual se pôs em fuga) não dando assim à vítima possibilidade de defesa - al. f) do mesmo artigo. (Ac. do STJ de 19.11.92, proc. n.º 43042)
- Constitui crime de ofensas corporais voluntárias do n.º 2 do art. 144 º do C. Penal de 1982 aquele que é cometido com emboscada, já que esta não é acto preparatório do crime, é um sintoma e afirmação de acrescida ilicitude e de maior culpa e o termo "meio insidioso" está utilizado no texto não apenas com o sentido de instrumento. (Ac. do STJ de 15.9.93, proc. n.º 44481)
- Insídia é um termo sinónimo de cilada, emboscada, estratagema. Os meios insidiosos passam por comportamentos claramente estudados e preparados. (Ac. do STJ de 28.10.93, proc. n.º 44698)
- Comete o crime de homicídio qualificado tentado, o arguido que, sem qualquer troca de palavras golpeou o ofendido com uma faca de que estava munido, com o propósito de lhe tirar a vida, visto se ter socorrido de meio insidioso, que é sinónimo de traiçoeiro. (Ac. do STJ de 14.4.94, Acs STJ ano II t. 1, 263)
- A título exemplificativo e enquanto extravasam o que se prevê no âmbito dos crimes de perigo comum, podem considerar-se meios insidiosos, conceito que abarca os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais, entre outros, a utilização de certas armadilhas, as instalações eléctrica sem casas de banho adrede preparadas para matar logo que se ligue o chuveiro, a introdução de ar ou de vírus mortais no sistema venoso, sob o pretexto de se injectar um medicamento, a narcotização do paciente para depois o matar, o acto de conduzir enganosamente a futura vítima a local isolado para aí ser abatida. (Ac. do STJ de 27.4.94, proc. n.º 45757)
- (1) O conceito de meio insidioso para qualificar o homicídio é amplo, e pode abranger a traição, a emboscada e a simulação, ou seja, os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais. (2) Ele não resulta do mero uso de espingarda caçadeira, mas de todo o conjunto de circunstâncias em que ela foi utilizada, designadamente disparos à traição e quase à queima-roupa e surpresa pelos disparos, tudo tornando quase impossível qualquer defesa. (3) Assim, é desta forma qualificado o homicídio praticado pelo arguido, que à porta do quarto de dormir da vítima apontou uma arma carregada, a cerca de 2 metros de distância desta e disparou 4 vezes, sendo a vítima amigo da família, cuja residência o arguido costumava frequentar. (Ac. do STJ de 2.5.96, proc. n.º 148/96)
- (1) Pode julgar-se o crime de homicídio como qualificado, ainda que não provados quaisquer dos "exemplos padrão" enunciados no art. 132º do C. Penal, desde que os restantes factos apurados, revelem especial censurabilidade ou perversidade. (3) É detectável na jurisprudência do STJ sobre o assunto, uma concepção segundo a qual, não é o instrumento em si que constitui o "meio insidioso", mas antes o seu uso em determinadas circunstâncias, que revelam uma carga de perfídia e tornam difícil ou impossível a defesa da vitima. E são precisamente essas circunstâncias, as decisivas para conduzir a um juízo sobre a verificação do requisito de agravação especial contemplado no tipo de homicídio agravado. (Ac. do STJ de 19.6.96, proc. n.º 203/96)
- A utilização pelo arguido de uma arma de fogo, tirando a vida à vítima com ela, sem lhe dar qualquer possibilidade de defesa, integra a agravante da alínea f) do art. 132.º, do CP. (Ac. do STJ de 26.6.96, proc. n.º 533/96)
- A expressão meio insidioso, embora tenha uma grande amplitude, não abarca necessariamente o homicídio com uma pistola ou outra arma (só merecem qualificar o meio como insidioso, os "instrumentos incomuns de agressão, como por exemplo faca de ponta e mola, gadanha, machado, etc. que praticamente não deixam margem de defesa para a vítima). (Ac. do STJ de 13.2.97, proc. n.º 986/96)
- A utilização de uma pistola de defesa pode ser considerada instrumento insidioso, se o agente a usou de maneira insidiosa. (6) Age à traição e sem piedade, o arguido que puxa de uma pistola, reduz a distância que o separa da vítima e com ela dispara quando esta se encontrava de costas, tendo a vitima se baixado após o primeiro disparo e sido atingido na cabeça com um segundo que lhe causou a morte. (Ac. do STJ de 21.5.97, proc. n.º 188/97)
- A traição constitui um meio insidioso e pode ser definida como um ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso. (6) A faca de cozinha deve ser entendida como um meio de agressão gravemente perigoso e insidioso. (7) Revela grande traição, a circunstância de o arguido ter dado o golpe fatal na vítima depois de a ter imobilizado barbaramente. (Ac. do STJ de 22.5.97, proc. n.º 152/97)
- Tratando-se de um meio incomum de agressão, que deixa à vítima uma margem de defesas reduzida, o uso de um martelo como arma deve considerar-se meio insidioso, qualificando o crime de homicídio [art. 132.º, n.º 2, al. f), do CP]. (Ac. do STJ de 25.9.97, BMJ 469-359)
- (4) O «meio insidioso» referido na al. f), do n.º 2, do art. 132.º, do CP, compreende os meios aleivosos e traiçoeiros. (5) As armas brancas (facas, punhais, navalhas) devem considerar-se, em atenção à experiência comum, como instrumentos de agressão gravemente perigosos e insidiosos. (Ac. do STJ de 15.10.97, proc. n.º 999/97)
- (1) Meio insidioso é o que utiliza a insídia. Esta é aleivosia, traição, o mesmo é dizer, ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada, antes de perceber o gesto criminoso. (2) Revela especial censurabilidade ou perversidade, na medida em que utiliza meio insidioso, a conduta do arguido que, transportando uma arma de fogo (espingarda caçadeira) embrulhada num saco de papel, sem a exibir à vítima nem trocar com esta qualquer palavra, apanhando-a desprevenida, disparou com aquela arma sobre esta, causando-lhe a morte. (Ac. do STJ de 29.10.97, proc. n.º 647/97)
- Constitui meio insidioso, revelando uma especial censurabilidade e perversidade, o seguinte quadro de circunstâncias: (-) se o arguido, munido de uma arma de fogo, se aninhou entre giestas, junto a uma estrada, esperando que outra pessoa ali passasse, como o fazia habitualmente; (-) se, quando a pessoa se aproximou, conduzindo a sua motorizada, na qual transportava a sua mulher, o arguido se levantou, fez pontaria na direcção e à altura da cabeça daquela e, à distância de cerca de dois metros, disparou voluntariamente um tiro com a referida arma de fogo, com a intenção de atingir e tirar a vida da mesma; (-) se o arguido disparou a arma de fogo sem qualquer troca de palavras com a vítima, que se encontrava desarmada, desprevenida e indefesa, pretendendo vingar-se da imputação por esta feita acerca dos ferimentos ocasionados num cão. (Ac. do STJ de 29.10.97, proc. n.º 1081/97)
- Constitui meio insidioso de provocar a morte, revelando uma especial censurabilidade e perversidade, o seguinte quadro de circunstâncias: (-) se onze homens, cinco dos quais calçando botas com biqueira em aço, pontapeiam e dão murros a um único homem; (-) se, ainda por cima, um dos onze homens pega na base de cimento de um sinal de trânsito e dá com ela duas vezes na cabeça da vítima; (-) se, para além daquilo, três dos onze homens voltam depois atrás para darem ainda mais pontapés na vítima já agonizante, tudo numa rua que parece deserta e cerca da 1H 30M. (Ac. do STJ de 12.11.97, proc. n.º 1203/97).
- No conceito de meio insidioso - cuja amplitude visa especialmente flexibilizar o conceito ou evitar que se lhe retire elasticidade - cabem todos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros e desleais ou perigosos e, gravemente perigosos, enquanto instrumentos de agressão, nele se devem considerar em atenção à experiência comum as armas brancas (facas, punhais, navalhas, etc.) que mais difícil (ou mesmo impossível) tornam a defesa da vítima e de consequências mais graves (ou irreparáveis) a agressão. (Ac. do STJ de 11.12.97, proc. n.º 1050/97)
- "Meio insidioso", no crime de homicídio qualificado, é o que se emprega de forma astuciosa, com engano, ou cujo poder mortífero se encontra oculto, tornando à vitima impossível ou difícil a defesa. (Ac. do STJ de 11.3.98, proc. n.º 18/98)
- (2) Os meios insidiosos (art.º 132, n.º 2, al. f), do CP) são os particularmente perigosos e que não pondo em risco o agente tornam difícil ou impossível a defesa da vítima. (3) O arguido que, na impossibilidade de matar a vítima com um raspador (instrumento utilizado para riscar ou raspar tinta), se serviu, para o efeito, do seu veículo automóvel, tornando impossível a defesa daquela, utilizou um meio insidioso. (Ac. do STJ de 8.7.98, proc. n.º 646/98)
- (1) Meio insidioso é aquele que torna especialmente difícil a defesa da vítima, por traiçoeiro, desleal, enganador, dissimulado, sub-reptício, em si mesmo ou na forma da sua concreta utilização. (2) Um machado, composto de cabo de madeira, com 74 cm de comprimento, tendo a lâmina, de ferro, 10 cm de comprimento, não é em si mesmo um meio insidioso, no sentido de traiçoeiro ou desleal, sendo normalmente bem visível e de previsível efeito agressivo grave. (Ac. do STJ de 29.9.99, proc. n.º 184/98)
- O arguido, ao disparar uma caçadeira, alta noite, contra uma pessoa que assoma a uma janela, a cerca de 10 metros de distância, utiliza, para ferir, um meio particularmente perigoso e insidioso. (Ac. do STJ de 28-10-1999, proc. n.º 843/99)
- (2) - O arguido fez uso de um "meio insidioso" ao procurar a vítima, com a qual altercara por duas vezes, munido de uma espingarda de pressão de ar, transformada, não saindo de dentro da sua viatura, com a arma ocultada deitada sobre os joelhos e com o cano virado para a direita, tendo chamado a vítima para logo de seguida disparar à queima-roupa, de tal forma inesperada que o tiro já estava consumado quando o visado esboçava o gesto de afastar de si o cano da arma. (3) Tratou-se de um agir traiçoeiro, desleal, sem que esteja demonstrada qualquer provocação da vítima, a qual por certo não se teria aproximado da viatura se tivesse visto a arma ou, partindo do princípio de que se tratava de uma vulgar pressão de ar, tê-lo-ia feito sem medir posteriores consequências, estando suficientemente revelada a "especial censurabilidade do agente". (Ac. do STJ de 7.12.99, Acs STJ ano VII t 3 pag 234)
- Se é certo que o meio insidioso abrange não só os meios materiais perigosos, mas também um processo enganador, dissimulado, elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida, implícita está também no exemplo-padrão em causa uma componente subjectiva ao nível da representação e da vontade, por forma a que possa fundamentar uma atitude do agente susceptível de um juízo de maior censurabilidade. (Ac. do STJ de 23.2.00, proc. n.º 1187/99)
- (1) Uma pistola de calibre 6,35 mm não constitui, em si mesmo, meio particularmente perigoso, para os efeitos da al. g) do n.º 2 do art.º 132.º, do CP. Todavia, a utilização daquela mesma arma pode, em certas circunstâncias, constituir meio insidioso. É que, por vezes, a insídia não se situa no tipo de arma que é utilizada na acção, mas no conjunto de circunstâncias que envolvem tal utilização, residindo aí a especial censurabilidade e perversidade do agente. (2) - Resultando da matéria de facto provada que: (-) na sequência de acalorada discussão entre a vítima e um irmão do arguido, na presença de outros familiares de ambos, aquela, cada vez mais exaltada, dirigiu aos seus antagonistas, entre os quais o arguido, as expressões: "Já vos mato! Já vos dou um tiro nos cornos!" (-) Após o que agarrou um irmão do arguido pela camisola, que se rasgou, envolvendo-se ambos em confronto físico e agressões mútuas; (-) No decurso desse confronto físico, num momento em que a vítima havia logrado derrubar o seu opositor e se encontrava de costas à frente do arguido, a cerca de 1,5 metros, este aproximou-se daquela e com o seu braço esquerdo rodeou o pescoço e apertou-o contra o seu próprio corpo, efectuando o que vulgarmente se designa por "gravata", ao mesmo tempo que lhe encostou à nuca uma pistola marca Browning, calibre 6,35 mm, semi-automática, que antes retirara do bolso, cuja patilha de segurança destravara e empunhava na mão direita, dizendo para a vítima: "está quieto, senão estoiro-te"; (-) A vítima ao ver-se assim agarrada e ao sentir a pistola encostada à nuca, reagiu, tentando voltar-se para o arguido, com o propósito de se libertar; (-) Então, o arguido, que mantinha a pistola por si empunhada encostada à nuca do visado, premiu o gatilho, assim efectuando um disparo cujo projéctil atingiu a cabeça daquele, causando-lhe a morte, a conduta do arguido, no contexto assinalado, revestiu-se de especial censurabilidade, por envolver meio insidioso, integrando a agravante da al. h), do n.º 2 do art.º 132.º, do CP. (Ac. do STJ de 13.12.00, proc. n.º 2753/00-3)
- Na prática do crime de homicídio, na forma tentada, o uso de uma faca que se encontrava oculta no veículo onde o recorrente e a ofendida iam entrar, configura uma actuação traiçoeira e constitui, sem dúvida, a utilização de um meio insidioso, enquadrando, pois, a circunstância agravante prevista no art. 132.º, n.º 2, al. h), do CP. (Ac. do STJ de 7.2.02, proc. n.º 219/02-5)
- (1) Quando, na al. f) do n.º 2 do art. 132º do C Penal de 1982, se falta em «meio insidioso», a lei quer aludir não só às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, mas também aos que são particularmente perigosas e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossível. (2) O conceito de «meio insidioso» abrange os meios aleivosos, traiçoeiros ou desleais, abarcando, atentas a sua latitude e elasticidade, os crimes cometidos com emboscada, traição, aleivosia ou estratagema. (3) A insídia resulta bem evidenciada no contexto de matéria de facto em que o arguido esperou a vítima, encoberto por vegetação que bordejava o caminho, num plano ligeiramente superior, munido de espingarda caçadeira, utilizando nos dois disparos feitos cartuchos carregados de gagos de chumbo designados por «zagalote», tendo-lhe causado a morte com dolo directo no momento em que a vítima distava de si oito metros. (Ac. do STJ de 19.12.89, AJ n.º 4 e BMJ 392-243)
- O meio usado foi insidioso, pois o arguido disparou a arma traiçoeiramente, dentro do seu automóvel (no qual se pôs em fuga) não dando assim à vítima possibilidade de defesa - al. f) do mesmo artigo. (Ac. do STJ de 19.11.92, proc. n.º 43042)
- Constitui crime de ofensas corporais voluntárias do n.º 2 do art. 144 º do C. Penal de 1982 aquele que é cometido com emboscada, já que esta não é acto preparatório do crime, é um sintoma e afirmação de acrescida ilicitude e de maior culpa e o termo "meio insidioso" está utilizado no texto não apenas com o sentido de instrumento. (Ac. do STJ de 15.9.93, proc. n.º 44481)
- Insídia é um termo sinónimo de cilada, emboscada, estratagema. Os meios insidiosos passam por comportamentos claramente estudados e preparados. (Ac. do STJ de 28.10.93, proc. n.º 44698)
- Comete o crime de homicídio qualificado tentado, o arguido que, sem qualquer troca de palavras golpeou o ofendido com uma faca de que estava munido, com o propósito de lhe tirar a vida, visto se ter socorrido de meio insidioso, que é sinónimo de traiçoeiro. (Ac. do STJ de 14.4.94, Acs STJ ano II t. 1, 263)
- Constitui meio insidioso a circunstância de os arguidos terem atraído a vítima, alcoolizada, a um lugar ermo, fora do território português, a altas horas da madrugada, indo a arguida escondida no veículo, para a atacar quando este parou. (Ac. do STJ de 7.7.94, proc. n.º 45873)
Só se afastam desta posição, que acompanhamos pelas razões referidas, os acórdãos de 13.12.95, proc. n.º 48590 (uma pistola não constitui meio insidioso para qualificar o homicídio), de 17.10.96, proc. n.º 634/96 (uma pistola de 6,35 mm é um meio usualmente empregue no cometimento de homicídios e um instrumento usual de agressão, pelo que não constitui um meio insidioso para efeitos do art.º 132 do CP, ainda que manejado de surpresa; de 18.2.98, proc. n.º 1086/97 [(5) - Uma pistola de calibre 6,35 não é, em si mesma, um meio insidioso. (6) Não se configura aleivoso, traiçoeiro ou desleal, não constituindo, portanto, meio insidioso, o comportamento do arguido que, aproximando-se do ofendido, descendo umas escadas, levando na mão direita uma pistola de calibre 6,35, bateu com a referida arma na cabeça do segundo e, como este se tivesse apoiado à parede do prédio, em vez de ter-se ido embora como o primeiro lhe mandara, apontou-lhe a pistola à base do pescoço e disparou] e de 21.11.01, proc. n.º 2447/01-3 (uma arma de fogo de calibre 6,35mm, cujas características não foi possível apurar, empregue pelo arguido para dar a morte à vítima, encostando-lha à cabeça no momento em que disparou o tiro que lhe produziu as lesões letais, não pode, de forma alguma, integrar-se no conceito jurídico-penal de "meio insidioso").
Ora, como se viu, o arguido, sem que nada o fizesse prever, sem qualquer aviso, quando o assistente se encontrava em cima de um telhado a trabalhar, especialmente exposto, vulnerável e indefeso, disparou contra ele um tiro de caçadeira e como este amedrontado se tivesse refugiado agachado atrás de uma porta, o arguido perseguiu-o com a caçadeira e uma pistola e com esta desferiu-lhe dois tiros de cima para baixo na cara e pescoço.
Verifica-se , assim, e no seguimento da jurisprudência maioritária deste Tribunal que o arguido se socorreu de meio insidioso, a que se reporta a al. h) do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal.
Custas pelo arguido com a taxa de justiça de 5 Ucs.
Honorários legais à Defensora Oficiosa nomeada em audiência.
Lisboa, 10 de Outubro de 2002
Simas Santos (Relator)
Abranches Martins
Oliveira Guimarães
Dinis Alves