RECURSO DE REVISÃO
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
Sumário

I - A revisão de sentença constitui um instituto processual que, em nome da verdade material, visa derrogar o princípio res judicata pro veritate habetur, sempre que ponderosas razões de justiça o impuserem.

II - Segundo Luís Osório - «Comentário ao CPP», Vol. VI, pág. 402 : "O princípio da res judicata pro veritate habetur é um princípio de utilidade e não de justiça e, assim, não pode impedir a revisão da sentença quando haja fortes elementos de convicção de que a decisão
proferida não corresponde em matéria de facto à verdade histórica que o processo penal quer e precisa em todos os casos alcançar».

III - Acerca da mesma problemática, realçam Emílio Robaneja e Vicente Quemada: "Entre o interesse de dotar de firmeza e segurança o acto jurisdicional e o interesse contraposto de que não prevaleçam as sentenças que contradigam ostensivamente a verdade, e, através dela, a justiça, o legislador tem que escolher. O grau em que sobrepõe um ao outro é questão de política criminal. Variam as soluções nas diferentes legislações. Mas o que pode afirmar-se resolutamente é que em nenhuma se adoptou o dogma absoluto do caso julgado frente à injustiça patente... Se aceitamos pois, como postulado, que a possibilidade de rever as sentenças penais deve limitar-se, a questão que doutrinalmente se nos coloca é onde colocar o limite" - cfr. «Derecho Procesal», Madrid, 1986, pág. 317).

IV - A nossa lei processual penal, para além dos fundamentos de índole marcadamente objectiva, fixados nas als. a) e b) do n.º 1 do art.º 449.º, do CPP, estabelece o referido limite em função de graves dúvidas que a oposição entre factos provados em diversas sentenças ou a descoberta de novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, possam suscitar sobre a justiça da condenação (cfr. o artigo citado, no seu n.° l, als. c) e d).

V - Os factos ou os meios de prova devem ser novos, no sentido de não terem sido apresentados no processo... embora não fossem ignorados pelo arguido na ocasião em que o julgamento teve lugar. A lei não faz qualquer restrição e seria inviável fazer-se, pois isso conduziria a uma flagrante injustiça (Maia Gonçalves - "Código de Processo Penal Anotado", 6.ª edição, 1994, págs. 629/630).

Texto Integral

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça

I - O arguido A, divorciado, residente na Rua da ..., porta ..., Bairro da Nazaré, freguesia de Nazaré, Funchal, melhor identificado nos autos, foi condenado em 18 de Novembro de 1999, pelo Tribunal Colectivo da Comarca de Porto Santo, na pena única de 6 anos de prisão, que actualmente cumpre, resultante do cúmulo jurídico de duas penas parcelares de dois anos de prisão e de uma pena parcelar de quatro anos de prisão, pela autoria material de dois crimes de abuso sexual de crianças, ps. ps. pelo art. 172º, nº. 1, do Código Penal, na redacção anterior a 1998 e de um crime de abuso sexual de crianças, p. p. pelo art. 172º, nº. 2, do mesmo diploma.
Da respectiva decisão condenatória recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 1 de Março de 2000, decidiu não conhecer do recurso.
Com base no fundamento previsto no art. 449º, n. 1, al. d), do CPP, e invocando ainda os arts. 450º, n. 1, al. c) e 451º, do referido Código, veio o arguido interpor o presente recurso extraordinário de revisão daquela decisão condenatória, apresentando, em conclusão, os seguintes fundamentos (transcrição):
«1ª - Há uma nova versão dos factos que contraria a versão do acórdão recorrido;
2ª - Essa nova versão diz respeito ao arguido A nunca ter frequentado o bar onde o crime foi praticado;
3ª - Assim não poderia ter abusado sexualmente da menor em causa;
4ª - Só por si este facto deita pela base a consistência do referido acórdão;
5ª - Estes factos novos suscitam graves dúvidas sobre a justiça da condenação e revelam erro notório na apreciação da prova.
Pelo que,
6ª - O artigo 340º do Código de Processo Penal consagra o princípio da verdade material, pelo recurso a todos os meios lícitos para a sua obtenção.
7ª - O artigo 340º deve ser interpretado à luz do artigo 32º, nº. 1 da Constituição da República.
8ª - Dessa interpretação resulta, como direito de defesa, o direito à utilização de todos os meios de prova lícitos disponíveis para se alcançar a verdade material como verdade processual.
9ª - As omissões reveladas prejudicam o obtenção dessa verdade.
10ª - As condenações impostas, quando injustas, devem ser revistas à luz do artigo 29º, nº. 6 da Constituição.
11ª - Aquela interpretação do artigo 340º é corroborada pela conjugação do artigo 29º, nº. 6 em sede de revisão.
Além de que
12ª - O direito a um julgamento justo decorre da imposição ao exame equitativo da causa prevista no artigo 6º, nº. 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
13ª - A justiça da causa implica o reexame do processo em sede de revisão.
Pelo que
14ª - O presente recurso extraordinário de revisão tem fundamento e motivação adequadas.
15ª - Termos em que deve o presente recurso ser admitido, processada a revisão por apenso aos presentes autos, feitas as diligências indispensáveis para a descoberta da verdade e remetido ao Supremo Tribunal de Justiça.
Requereu a produção da prova testemunhal indicada a fls. 29 da sua motivação, invocando desconhecer da sua existência ao tempo da decisão.

O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de 1ª instância e os assistentes não apresentaram resposta.

Foram inquiridas as testemunhas B, C, D, e E, cujas declarações estão escritas a fls. 111 a 113, 134 a 139 dos autos.
No que respeita à testemunha F, o arguido prescindiu do seu depoimento, como se alcança de fls. 133.

Dando cumprimento ao art. 454º, do CPP, a M.ma Juíza do Tribunal de 1ª instância lavrou informação sobre o mérito do pedido de revisão (fls. 140 e 141), manifestando-se no sentido do seu indeferimento.

Subidos os autos a este Supremo Tribunal, o Exº Sr. Procurador- Geral Adjunto, na vista que lhe coube, nos termos do art. 455º, nº. 1, do CPP, perfilha o entendimento de que a revisão deve ser negada, concluindo o seu parecer da seguinte forma:
«1. O art. 449º nº. 1 al. d) do Cód. Penal, como fundamento do recurso extraordinário de revisão, exige a descoberta de "... novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação".
2. Os meios de prova indicados, além de não serem novos, em nada alteraram ou prejudicam os fundamentos da condenação, não os infirmando de molde a suscitar-se qualquer dúvida (e muito menos grave) sobre a sua justiça».

O processo não enferma de nulidades ou outros vícios que obstem ao conhecimento do mérito.
Foi observado o restante formalismo, nomeadamente colhidos os vistos a que se refere o nº. 2 do art. 455º do CPP.
Não se mostra necessária a realização de outras diligências.

II - Cumpre agora apreciar e decidir:
A revisão de sentença constitui um instituto processual que em nome da verdade material visa derrogar o princípio res judicata pro veritate habetur, sempre que ponderosas razões de justiça o impuserem. Apresenta-se aquele instituto como uma forma de se estabelecer o necessário equilíbrio entre a imutabilidade da sentença transitada em julgado e o respeito que se impõe pela verdade material.
O mesmo encontra a sua justificação essencial nas garantias de defesa, surgindo e apresentando-se como um verdadeiro recurso por via do qual, com a sua procedência, ocorrerá, não um reexame ou apreciação do anterior julgado mas, antes, uma nova decisão baseada em novo julgamento do caso, com apoio em novos dados de facto.
Acerca de tal problemática, realçam Emílio Robaneja e Vicente Quemada:
«Entre o interesse de dotar de firmeza e segurança o acto jurisdicional e o interesse contraposto de que não prevaleçam as sentenças que contradigam ostensivamente a verdade, e através dela, a justiça, o legislador tem que escolher. O grau em que sobrepõe um ao outro é questão de política criminal.
Variam as soluções nas diferentes legislações. Mas o que pode afirmar-se resolutamente é que em nenhuma se adoptou o dogma absoluto do caso julgado frente à injustiça patente... Se aceitamos pois, como postulado, que a possibilidade de rever as sentenças penais deve limitar-se, a questão que doutrinalmente se nos coloca é onde colocar o limite» - cfr. "Derecho Procesal", Madrid, 1986, pág. 317).
A este mesmo propósito, escreveu Luís Osório - "Comentário ao Código do Processo Penal Português", vol. VI, pág. 402 - «O princípio da res judicata pro veritate habetur é um princípio de utilidade e não de justiça e assim não pode impedir a revisão da sentença quando haja fortes elementos de convicção de que a decisão proferida não corresponde em matéria de facto à verdade histórica que o processo penal quer e precisa em todos os casos alcançar», acrescentando, mais adiante (fls. 403) que «se não trata de uma revisão do julgado, mas de um julgado novo sobre novos elementos».
A nossa lei processual penal, para além dos fundamentos de índole marcadamente objectiva, fixados nas alíneas a) e b) do nº. 1 do art. 449º do CPP, estabelece o referido limite em função de graves dúvidas que a oposição entre factos provados em diversas sentenças, ou a descoberta de novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, possam suscitar sobre a justiça da condenação (cfr. o artigo citado, no seu nº. 1, als. c) e d).
É justamente o fundamento contido na referida al. d) que o requerente procura fazer valer com o recurso extraordinário de revisão que interpôs.

Tecidas estas considerações teóricas sobre a figura do recurso extraordinário de revisão de sentença, vejamos o caso que nos cabe apreciar.
O acórdão, objecto da revisão, proferido em 18 de Novembro de 1999, no proc. comum nº. 62/92, do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Santo condenou o arguido A, como autor material de três crimes de abuso sexual de crianças, ps. ps. pelos art. 172º, nº. 1 (dois dos crimes) e n. 2 (o outro crime), do CP (redacção anterior a 1998), na pena única de seis anos de prisão.
Prescreve a norma do art. 449º, nº. 1, al. d), do CPP, que "a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando... se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que forem apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação".
Fala o normativo de novos factos ou meios de prova, em alternativa: aqueles são os factos probandos, estes são as provas atinentes aos factos probandos, tendo uns e outros potencialidade para fundamentar a revisão.
A este respeito, escreveu Maia Gonçalves - "Código de Processo Penal Anotado", 6ª edição, 1994, págs. 629/630 - que «como se vinha entendendo nos últimos anos de vigência do CPP de 1929, deve também agora entender-se que os factos ou os meios de prova devem ser novos, no sentido de não terem sido apresentados no processo... embora não fossem ignorados pelo arguido na ocasião em que o julgamento teve lugar. A lei não faz qualquer restrição e seria inviável fazer-se, pois isso conduziria a uma flagrante injustiça e tudo se concita portanto para rejeitar essa interpretação sustentada por Luís Osório». Igual entendimento vem sendo defendido, de forma pacífica, pela doutrina e jurisprudência actuais (cfr. em igual sentido, Leal-Henriques e Simas Santos, "Recursos em processo Penal", 2ª edição, edit. Rei dos Livros, pág. 138).
Exige também a citada norma que os novos factos ou meios de prova, com a abrangência que se referiu, sejam de molde a, por si mesmos ou combinados com os demais que forem apreciados no processo, suscitarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. Portanto, a lei não impõe certezas quanto à injustiça da condenação, bastando-se com dúvidas, embora graves.
Numa vertente teleológica do preceito acima citado, o facto novo surge reportado à factualidade provada que determinou a condenação, de molde a que, sendo conhecido do julgador, o levasse a diferente perspectiva jurídico-criminal e a uma eventualidade de absolvição.
Aplicando tais princípios, cabe agora averiguar, em primeira linha, se no presente recurso foram alegados novos factos e/ou indicados novos meios de prova, que suportem a peticionada revisão.

1. Quanto aos novos factos:
Nas conclusões da respectiva motivação - e são estas que delimitam o objecto do recurso - o recorrente invoca como novo o facto de "nunca ter frequentado o bar onde o crime foi praticado".
Porém, como ressalta com evidência do acórdão condenatório de 1ª instância, os factos atinentes ao local do crime perpetrado na pessoa da menor G - bar conhecido por..., sito na Camacha, Porto Santo -, indicado na acusação deduzida pelo Ministério Público, foram objecto de prova em sede de audiência de discussão e julgamento.
Na apreciação da prova produzida em julgamento, o Tribunal Colectivo da Comarca de Porto Santo deu como provados os referidos factos (cfr. ns. 1 a 10 do acervo factológico constante do acórdão) e, na fundamentação da sua decisão, indicando e examinando criticamente as provas que serviram para formar a sua convicção, na observância da disposição normativa do art. 374º, nº. 2, do CPP, deixou consignados, entre outros, os seguintes aspectos:
- O arguido «admitiu que esteve em Porto Santo nos dias 27 e 28 de Abril de 1996...;
- «Quanto aos factos ilícitos que lhe são imputados, admitiu que tivesse ido ao bar "..." com uma das menores...»;
- «A menor G, ouvida em julgamento... confirmou na íntegra a versão da acusação quanto ao que consigo se passou, tendo exposto os factos com os pormenores constantes da mencionada peça processual».
Fica assim demonstrado, sem margem para qualquer tipo de dúvidas, que o facto que serve de fundamento ao pedido de revisão não é novo, pois que foi amplamente discutido em audiência e valorado pelo Tribunal Colectivo que realizou o julgamento.

2. Quanto aos novos meios de prova:
As testemunhas indicadas pelo arguido no âmbito deste recurso de revisão não foram ouvidas em julgamento.
Em face da previsão do nº. 2 do art. 453º do CPP, cabe verificar se está ou não justificado que o arguido ignorava a existência daquelas testemunhas ao tempo da decisão (quanto à outra exigência da norma - impossibilidade de depor - o arguido sobre ela nem sequer se pronunciou).
Antes de mais, esclarece-se que o citado normativo não se basta com a invocação pelo requerente, no requerimento de revisão, de que «ignorava a existência das... testemunhas ao tempo da decisão», como acaba por fazer o arguido no caso em apreciação.
A lei impõe de forma clara que se indiquem também os motivos base do desconhecimento, o que o arguido não fez.
Não obstante, o Tribunal de 1ª instância não rejeitou liminarmente a requerida audição de testemunhas e, ao invés, tomou o caminho, a nossos olhos acertado, de proceder à pedida inquirição.
Efectuada esta, dos depoimentos das testemunhas B, C e D (cft. fls. 111, 113 e 134 a 138 dos autos), decorre com clareza que as mesmas eram bem conhecidas do arguido, com este mantendo relações mais ou menos próximas. Atente-se até em certa parte do depoimento da testemunha C, quando diz que «não foi ouvida na altura do julgamento crime, mas que estava a par do que se passava e o Sr. A sempre disse que era inocente, que se ia safar e por isso não precisava que eles fossem depor».
De tudo se infere, pois, que não está justificado, bem pelo contrário, que o arguido ignorava a existência da dita prova testemunhal, o que, no rigor dos princípios, e num plano formal, levaria à não consideração dos depoimentos a que acaba de se aludir.

De todo o modo, e numa análise substantiva, a avaliação global dos depoimentos de todas as testemunhas não infirma minimamente a justiça da sentença condenatória.
A testemunha B teceu considerações abonatórias sobre a personalidade do arguido e referiu-se ao clima de desentendimento existente entre aquele e a então mulher, ouvindo esta dizer, em certa altura, «que um dia haveria de meter» (o requerente da revisão) «atrás das grades».
No essencial, revela desconhecimento sobre os factos que fundamentam o pedido de revisão. «Desconhece se o arguido frequentava habitualmente o bar "...", supondo que lá tenha ido... algumas vezes».
A testemunha C considera o arguido um «homem exemplar», sabendo que a «ex-mulher do Sr. A... sempre disse que o ia por na cadeia».
A testemunha D, no fundo, limitou-se a apresentar referências positivas sobre o carácter do arguido e negativas sobre a personalidade da ex-mulher daquele.
Por fim, a testemunha E mostrou inteiro desconhecimento sobre os factos relevantes.

Em suma: do exposto se conclui que os pressupostos da revisão não se mostram preenchidos, já que não se revelaram novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem qualquer dúvida (e muito menos grave) sobre a justiça da condenação.

III - Nestes termos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar a pretendida revisão.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) UC's.

Lisboa, 17 de Outubro de 2002.
Dinis Alves
Carmona da Mota
Pereira Madeira
Simas Santos.