Sumário

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Em 97.05.30, A, B, C, D, E e F requereram inventário facultativo para partilha das heranças abertas por óbito de G e mulher H, falecidos, respectivamente, em 83.10.12 e 85.04.14, tendo sido nomeado cabeça-de-casal G.
Num inventário recheado de vicissitudes várias e em que desde cedo se demarcaram 2 blocos antagónicos (mantidos inclusive, para as licitações) - um formado pelos requerentes (exceptuado o interessado E, que onerosamente cedeu ao cabeça-de-casal o seu quinhão hereditário), outro pelo cabeça-de-casal e I, todos eles filhos dos falecidos -, chegados à conferência de interessados (fls. 244 e ss), reclamaram estes últimos contra o valor de certos bens, outros, bem mais altos e que reputaram ser os exactos, indicando.
Dada a palavra aos restantes interessados, não concordaram com os valores indicados e nenhum manifestou intenção de aceitar ou licitar com base nos novos valores, posição esta última em que foram acompanhados pelos reclamantes.
Face a tal, requereram estes a avaliação desses bens, a efectuar por um único perito a nomear pelo tribunal, nos termos do art. 1.369 CPC.
Após oposição à pretensão, foi proferido despacho a indeferir a solicitada avaliação, do que em imediato agravaram os reclamantes.
Prosseguindo na conferência, procedeu-se a licitações nelas tendo estes participado, licitando todos os bens reclamados por valor inferior ao por si indicado na reclamação, sendo que o valor da licitação foi muito superior ao valor matricial de cada um, que era o constante da relação de bens (o mesmo aconteceu relativamente aos bens licitados pelos ora agravantes).
Após novos incidentes, veio a ser proferida sentença homologatória da partilha de que apelaram os agravantes a fim de fazerem subir o seu anterior recurso.
Após a prolacção da sentença, os requerentes do inventário, com excepção do cedente, requereram pela segunda vez a entrega imediata de todos os imóveis por si licitados, o que foi indeferido por despacho de que agravaram.
A Relação deu provimento ao primeiro agravo, devendo o despacho ser substituído por um a ordenar a avaliação dos bens reclamados, e não conheceu dos restantes recursos por os haver como prejudicados.
Do acórdão interpuseram recurso, admitido como agravo, os requerentes do inventário, com excepção do cedente, defendendo que a falta de interesse processual dos ora agravados e, por outro lado, que a Relação não devia ter tomado conhecimento do recurso, concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações -
- segundo o acórdão, a omissão da avaliação inquinou irremediavelmente a base da licitação influenciando directamente na decisão da causa;
- ao não mandar proceder à avaliação cometeu-se uma irregularidade que só é nulidade quando possa influir na decisão da causa ou, hipótese que aqui se não verifica, quando a lei o declare;
- licitando os reclamantes saíram beneficiados - por um lado ficaram com os bens, que pretendiam fossem avaliados, por valores inferiores ao por si indicados e, por outro, conseguiram com a licitação que o valor de cada quinhão dos interessados fosse superior ao que resultaria dos valores que eles mesmos consideravam bons;
- o nº 4 do art. 1.364 CPC destina-se a proteger os co-herdeiros menos abonados;
- quem mais bens licitou foram os agravados, ficando com mais bens do que tinham direito pelo que tiveram de pagar tornas, e tendo, inclusive, um deles adquirido o quinhão hereditário de um dos herdeiros menos abonados por um preço irrisório;
- o acórdão considera que é a base da licitação que está em causa e que nunca por esta poderá ser corrigida;
- só é assim se o valor que serve de base à licitação for superior ao valor do mercado do bem;
- o interesse pessoal de um co-herdeiro na adjudicação de um determinado bem, fora os casos das atribuições preferenciais constantes do art. 1-203-A CC, as relativas aos legados, e o disposto no art. 1.364 CPC, é indiferente para o direito pois a lei não tutela o interesse dos herdeiros relativamente à adjudicação de determinados bens;
- licitado um bem por um valor inferior ao seu valor de marcado, o licitante enriqueceu e foi isso que sucedeu com os ora agravados, sendo que os ora agravantes com isso não se importam;
- o facto de os ora agravados terem insistido no recurso não significa que nele têm interesse, havendo antes que averiguar se esse interesse é tutelado pela lei, o que não ocorre;
- a irregularidade cometida foi sanada com as licitações e em nada influencia a decisão da causa;
- não devia a Relação ter conhecido do recurso, pelo que, fazendo-o, violou o disposto nos arts. 710-2 e 201-1 CPC e fez errada interpretação do art. 1.364-4 CPC.
Contraalegando, o interessado I defendeu a confirmação do julgado.
Agravantes e agravados juntaram doutos pareceres.
Colhidos os vistos.

Matéria de facto, além da descrita no relatório supra, que as instâncias deram como provada -
a)- na conferência de interessados de 00.05.15 (fls. 244 e ss), pelo cabeça-de-casal e pelo interessado I foi dito que reclamavam do valor dos imóveis a seguir indicados, propondo os seguintes valores -
- lote 1 (verbas 2, 11, 12 e 13) - 70.000.000$00;
- lote 4 (verbas 20 e 21) - 30.000.000$00;
- verba 6 - 12.000.000$00;
- verba 16 - 8.000.000$00;
- verba 18 - 8.000.000$00;
- verba 24 - 8.000.000$00;
b)- nas licitações, tais interessados licitaram todas essas verbas pelos valores seguintes
- lote 1 - 45.000.000$00;
- lote 4 - 28.000.000$00;
- verba 6 - 8.500.000$00;
- verba 16 - 2.500.000$00;
- verba 18 - 4.500.000$00;
- verba 24 - 3.00.000$00.

Decidindo: -
1.- Os agravantes, abandonando a tese da defesa da correcção do despacho a indeferir o pedido de avaliação que para queriam ver reconhecida pela Relação, criticam agora o acórdão por ter conhecido do recurso, revogando aquele, já que apenas fora cometida uma nulidade e essa estava sanada.
A nulidade consistia, nesse entendimento, na omissão da avaliação prescrita por lei.
Não se tratou de uma omissão pura e simples de um acto prescrito por lei, o que seria uma nulidade e da qual os interessados prejudicados poderiam reclamar.
Antes, houve uma alteração da ritologia processual determinada por um despacho que incidiu sobre o pedido de realização do acto (avaliação) e o indeferiu.
Houve, não uma nulidade, mas um erro de julgamento por deficiente interpretação de uma norma contida no art. 1.362-4 CPC, na redacção dada pelo dec-lei 227/94, de 08.09, aqui a aplicável. Erro de direito, pelo que a crítica dirigida não tem, quanto a este ponto, apoio.
2.- A Relação conheceu do agravo, deu-lhe provimento, e não conheceu dos outros, por prejudicados.
Um dos dispositivos que os ora agravantes têm por violados é o art. 710-2 CPC.
Como se viu, na base da sanação de nulidade a sua tese improcede.
Analisemos, todavia, os factos na conjugação desse normativo com o que dispõem os arts. 680-1, 681-2 e 287 e).
Os ora agravados encontravam apoio no direito para a sua pretensão e o indeferimento do requerimento de avaliação foi mal decretado. Porque vencidos, tinham legitimidade para agravar desse despacho, como o fizeram.
Toda a problemática se desloca desse momento para o comportamento superveniente, saber se mantiveram interesse (não o subjectivo, mas o objectivo) na prossecução do agravo, isto é, se o seu comportamento posterior não o retirou.
Ao tribunal pede-se que administre justiça, não se pede que substitua as faculdades de Direito nem a doutrina quer na teorização quer na especulação jurídica. Com isso em nada se menospreza o ensino nem o pensamento dos doutrinadores, os quais são de uma utilidade inegável quer na formação dos julgadores quer na estruturação do seu pensamento quer no debate que tem de estabelecer consigo mesmo quando decide.
A necessidade de recorrer aos tribunais ou de, tendo-o feito, fazer prosseguir a acção carece de ser justificada e deve ser razoável. Este interesse em agir deve acompanhar toda a evolução do processo.
O problema não é já de legitimidade processual nem de legitimidade para recorrer mas antes de legitimatio ad processum, aqui de legitimatio ad recursum.
3.- Factos que interessam fundamentalmente -
- os bens para os quais a avaliação foi requerida, foram, como competia, relacionados pelo seu valor matricial;
- o valor por que foram licitados é muito superior ao valor matricial de cada um e
- inferior ao valor indicado no requerimento de avaliação;
- quem requereu a avaliação foram os interessados que neles vieram a licitar;
- nenhum outro interessado concordou com os valores indicados e nenhum, incluindo os reclamantes, manifestou intenção de aceitar ou licitar com base nos novos valores;
- a licitação dos ora agravados recaiu sobre todos os bens para que pediam a avaliação;
- agravantes para a Relação os reclamantes/licitantes.
Do despacho que não atendeu (mal, diga-se em abono da verdade) o requerimento para avaliação de certos bens, recorreram os reclamantes. Tinham legitimidade para o fazer.
Ao agravo foi fixado o regime de subida diferida e efeito devolutivo, o correcto.
Perante este despacho, houve lugar de imediato à licitação, pelo que os reclamantes, independentemente de terem interposto recurso mas na salvaguarda dos seus interesses, licitaram. Era um direito que tinham e exerceram-no.
A questão é subsequente - saber se a forma como o exerceram prejudicou, retirando-a, a legitimatio ad recursum.
Os concretos bens, cuja avaliação se pedia, não foram licitados por outros interessados que não os reclamantes mas por estes e por valor inferior ao por si indicado e superior ao matricial.
Na análise a proceder há duas vertentes complementares a considerar - do provimento do agravo pela Relação resultaria utilidade para os ora agravados? e a sua negação comportaria prejuízo para os mesmos?
Para esta análise interessa um outro facto -
- os outros bens licitados foram-no pelos restantes interessados, em bloco, por valor bem superior ao matricial.
A Relação afastou a exigência contida no art. 710-2 CPC por a base da licitação ser de todo desconforme com a vontade manifestada, podendo ‘os reclamantes ter entrado na licitação até que os demais tenham desistido, mesmo sem qualquer interesse nesses bens. Perante os valores reais, podem nem sequer ter interesse em licitar, ou preferir chegar a sorteio dos mesmos. E a prova de que os reclamantes só aparentemente se encontram beneficiados, é a de que continuam a expressamente pedir o provimento do agravo’ (fls. 505).
Todavia, como prévia a esta abordagem temos que deveria ter-se enfocado a questão pelo prisma da renúncia ao direito de recorrer (CPC- 681,2).
Licitar é um direito e a motivação por que se licita é de ordem subjectiva (seja por se querer ficar com aquele bem seja para valorizar o seu quinhão aumentando o valor da herança, seja outro qualquer motivo).
Licitar é um acto de vontade e quem o exerce é na base de um interesse que é seu, não dos outros interessados.
Licitando é o interesse do próprio que está em jogo, não é o interesse do conjunto dos interessados que é contemplado (se bem que daí reflexamente para eles possa resultar benefício, v.g., o aumento de valor para o seu quinhão hereditário) e, menos ainda, um interesse público.
A repartição equilibrada e equitativa, igualando materialmente os quinhões, objectivo da partilha, não deixa de ser alcançada se houver licitações. A lei define os actos que, num inventário, se irão, de seguida, praticar para atingir esse desiderato.
Nada impede que quem licita queira correr um risco - «impor» lances sucessivos cada vez mais altos, sem que, porém, esteja interessado em adquirir aquele concreto bem ou, tendo-o querido para si, intimamente desistisse face ao valor que os lances estavam a atingir, embora continuando a licitar para se aproveitar mais, como que «num esticar da corda»; é um risco que corre se, porventura, o seu lance não vier a ser coberto. Mas um tal calculismo em nada é protegido pela lei.
Nem o eventual arrependimento por terem licitado nem a maior ou menor dificuldade no pagamento das tornas deixaria de traduzir um interesse de natureza subjectiva dos ora agravados.
Ainda quando há autenticidade no exercício da vontade de licitar é o interesse de quem licita que preside ao acto e não o dos demais interessados.
Os ora agravados desde logo manifestaram que não aceitavam licitar com base nos valores que indicavam como sendo os reais. Era-lhes lícito tomar essa posição, e tomaram-na.
Após isso, licitaram esses concretos bens, todos os que indicaram para a avaliação, por valores inferiores ao que tinham como reais.
Terem mantido o agravo, apelando da sentença homologatória, não permite confundir interesse subjectivo com interesse em agir, este sim o que expressava a legitimatio ad recursum, havendo que dele ter conhecido a Relação.
Para o agravo poder subir, necessária era recorrer da sentença. A simples circunstância de o fazer não era suficiente para se concluir da necessidade justificada, razoável e fundada em prosseguir na acção, agora via recurso. Seria um princípio da prova dessa necessidade, nada mais.
Porque o problema se põe em função do acto seguinte, o conhecimento do recurso, não se poderia questionar se os factos que iam ser considerados eram ‘novos’ e, como tal, não cognoscíveis via recurso. Na realidade, o problema não se põe na relação facto/articulação onde, aí sim, a ‘novidade’ se coloca.
Não se trata de factos a constituírem fundamento do recurso, portanto.
Trata-se de se saber se, após a interposição e admissão do recurso, foram praticados actos que traduzam perda do direito de recorrer - tinha-se-o, exerceu-se-o, mas veio a se o perder após ter sido requerido. Os factos a conhecer respeitam ao interesse em agir.
Ora, é uma tal conduta, necessariamente subsequente, que a lei manda ter presente e apreciar para conhecer do seu significado, traduzir ou não perda do direito de recorrer. A concluir-se pela afirmativa é a legitimatio ad recursum que deixou de existir e impede o prosseguimento do recurso.
Não se impõe que a parte alegue esses factos porquanto em questão está a existência ou não de um pressuposto processual que, se ausente, faz extinguir a instância de recurso por inutilidade superveniente mais que traduzir perda do direito de recorrer (vontade de recorrer e interesse em agir são realidades diferentes) - CPC- 287 e).
A argumentação da Relação não procede, portanto.
4.- Os ora agravados, que tinham requerido a avaliação, licitaram todos os bens para os quais a requereram, por valor, por um lado, inferior ao por si indicado e, por outro, superior ao matricial.
Se esses bens tivessem sido licitados por um qualquer dos outros interessados, maxime por valor inferior ao indicado como real, ou se tivessem sido licitados pelos ora agravados por um valor superior ao que eles tinham indicado como valor do mercado não restaria dúvida quanto à necessidade em prosseguir o recurso porquanto do seu provimento poderiam estes retirar utilidade.
Se subjacente à pretensão dos ora agravados quando reclamaram tiver sido o interesse em que os bens não fossem licitados pelos outros interessados ou por algum deles por valor inferior ao que tinham como valor real desses bens, a circunstância de terem sido os próprios quem licitou e por valor inferior, esse interesse ficou totalmente satisfeito.
Da falta de avaliação não veio a resultar prejuízo para os ora agravados.
A sua realização neste momento não traz benefício quer para os mesmos quer para o próprio inventário, nada modificaria a não ser provocar uma maior morosidade processual sem qualquer justificação e sem daí advir real vantagem, real utilidade para quem quer que seja.
5.- Muito embora o despacho que indeferiu o pedido de avaliação tenha contrariado a lei, e os ora agravados tenham legitimamente dele recorrido e exercido o direito de licitar, a instância de recurso extinguira-se por inutilidade superveniente na medida em que estes deixaram de ter legitimatio ad recursum.
Não devia nem podia a Relação ter conhecido do agravo daquele despacho.
Tendo-lhe dado provimento e com isso não conhecido dos outros recursos, terão os autos que regressar à Relação.
Termos em que se revoga o acórdão por extinção superveniente da instância de recurso do agravo pela Relação conhecido, aí baixando o processo para, se possível, pelos mesmos Exº Srs. Juízes Desembargadores se conhecer dos restantes recursos.
Custas, no STJ, pelo agravado I e, na Relação, por este e pelo agravado G.

Lisboa, 29 de Outubro de 2002
Lopes Pinto
Ribeiro Coelho
Ferreira Ramos (dispensei o visto)