Sumário

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

No Tribunal da comarca de Santarém, A e marido B intentaram acção declarativa com processo sumário contra o C e contra os Credores da mesma sociedade, pedindo a restituição aos herdeiros de D e mulher de um prédio apreendido no âmbito dos autos de falência daquela sociedade bem como dos bens móveis que se encontram dentro das benfeitorias existentes nesse prédio, alegando em síntese que tais bens não pertencem à falida, foram indevidamente apreendidos e são estranhos à falência.
O C, nessa qualidade, apresentou contestação, alegando a caducidade do direito de acção, a ilegitimidade dos autores, a ilegitimidade passiva do administrador, bem como a ineptidão da petição inicial e impugnou os factos alegados pelos autores.
Deduziu, ainda, reconvenção reivindicando a aquisição do prédio pela falida, tanto por usucapião como por acessão industrial imobiliária.
Os autores responderam mantendo a posição inicial e alterando o pedido no sentido da entrega do prédio aos herdeiros de D ser cumulada com o pedido da entrega dos bens móveis aos próprios autores.
Em novo articulado o réu opôs-se à alteração, defendendo não se tratar de alteração do pedido mas sim de beneficiação do pedido.
Proferido despacho saneador, que considerou inadmissível a alteração do pedido, e no qual a ré foi absolvida da instância quanto ao pedido de restituição dos bens móveis, com fundamento na ineptidão da petição inicial, e considerada procedente a excepção de ilegitimidade activa do autor marido, mas improcedente a invocada ilegitimidade passiva, relegou-se para final o conhecimento da caducidade do direito de acção.
Inconformados, agravaram os autores do despacho saneador, admitido com subida diferida e efeito devolutivo.
Prosseguindo a acção, teve lugar a audiência de julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, vindo, depois, a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo do pedido a Massa Falida da sociedade E.
Desta decisão apelaram os autores, tendo o C, nas alegações, ampliado o objecto do recurso no sentido de ver apreciada a caducidade do direito da acção.
O Tribunal da Relação de Évora, em acórdão de 4 de Outubro de 2001, conhecendo do recurso de agravo, concedeu-lhe parcial provimento, revogando o despacho saneador na parte em que absolveu a ré da instância quanto ao pedido de restituição dos bens móveis e na parte em que considerou procedente a excepção de ilegitimidade activa do autor B para pedir a entrega dos mesmos móveis. Em consequência, anulou ainda todo o processado subsequente e considerou prejudicado o conhecimento da apelação.
Interpuseram, então, os autores recurso de agravo, pretendendo a revogação do acórdão recorrido e sua substituição por outro que mande conhecer da apelação interposta pelos agravados ou, quando assim se não entenda, pelo menos a revogação da decisão de anular o julgamento e a sentença respeitante à relação material controvertida que tem como demandante A em representação da herança de D e mulher, já que a mesma, nos termos configurados pelo acórdão, nada tem a ver com a relação jurídica respeitante aos móveis que têm como demandante B em nome próprio.
Contra-alegando defendem os autores a bondade do acórdão impugnado, pugnando pela sua manutenção.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
Nas suas alegações formulou a agravante as seguintes conclusões (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):
1. Existe ineptidão da petição inicial relativamente à lide respeitante aos móveis, dado que no art. 25º da petição se afirma que tais bens pertencem a B e a seu filho F e no pedido se peticionam tais bens para os herdeiros de D, sendo certo que existem outros herdeiros de D para além dos autores (aliás, o autor B não o é).
2. O autor B é parte ilegítima relativamente à relação material controvertida respeitante ao imóvel.
3. Relativamente à relação material controvertida respeitante aos móveis ainda que não houvesse ineptidão da petição inicial por se fazer interpretação correctiva do pedido para obstar à mesma ineptidão, o resultado seria idêntico, dado que nesse caso haveria coligação ilegal face ao art. 30º do C.P.C. com as mesmas consequências da ineptidão da petição inicial (art. 494º do C.P.C.).
4. Não é lícito ao Tribunal da Relação anular a audiência de discussão e julgamento e a sentença respeitante ao imóvel por força dum recurso duma questão que em nada afectou a discussão dessa relação material controvertida.
5. Pela lógica da decisão da Relação, esquematicamente, passaria a haver no processo coligação de autores com duas relações jurídicas controvertidas, o mesmo é dizer duas causas:
A) - uma respeitante ao bem imóvel, tendo como demandante apenas a autora A, na qualidade de herdeira de D e mulher;
B) - outra a respeitante aos bens móveis, alegadamente pertença do autor B e de seu filho (art. 25º da petição inicial) e que aquele se apresentaria em juízo a peticionar.
Sendo que a sentença respeitante à relação material controvertida A) seria anulada por recurso interposto de sentença respeitante à relação material controvertida B) sendo certo que o recorrente não é parte nem tem legitimidade para a relação material controvertida A).
6. O acórdão recorrido conduziria assim a um resultado ilógico, inaceitável e gravemente atentatório dos princípios e a decisão recorrida, ao implicar sem qualquer justificação lógico-racional uma segunda audiência de discussão e julgamento e uma segunda sentença de 1ª instância, viola o princípio da proibição de repetição de julgamentos sem motivo justificado.
7. Uma interpretação das normas dos arts. 201º, nº 2 e 710º, nº 2 do C.P.C, que permitisse a anulação dum julgamento e da correspondente sentença por causa da anulação dum acto respeitante a uma relação material controvertida que nada tem a ver com aquela e se baseia numa coligação processual ilegal face ao art. 30º do C.P.C., seria inconstitucional, por violação do disposto nos art. 20º, nºs 1 e 3 (direito de acesso à justiça e direito de decisão em prazo razoável), bem como por violação do princípio do Estado de Direito.
8. A decisão recorrida violou, designadamente, os arts. 26º, 30º, 201º, nº 2, 710º, nº 2, e o art. 20º da Constituição da República Portuguesa.
Os factos tidos como assentes pelas instâncias são os seguintes:
a) - no dia 14/10/93 foram apreendidos como pertencentes à falida os seguintes bens: 1º prédio urbano, sito no lugar e freguesia de Azoia de Baixo, concelho de Santarém, descrito na Cons. Reg. Predial sob o nº 59.457; 2º prédio urbano, sito no mesmo lugar, freguesia e concelho descrito na mesma Cons. Reg. Predial sob o nº 43.060; e 3º o prédio urbano composto por dois pavilhões destinados a armazém, báscula com cabine e logradouro, tendo a área coberta de 1.507 m2 e descoberta de 3.603 m2, sito no mesmo lugar e freguesia, confinando do norte com herdeiros de D, do sul com estrada, nascente e poente com herdeiros acima referidos, omisso na Cons. Reg. Predial;
b) - porque os prédios descritos em 1 e 2 da alínea a) estavam inscritos a favor de pessoa diversa da falida deu-se cumprimento ao disposto no artigo 119º do C. Reg. Predial, tendo sido a autora citada nessa qualidade em 13/07/94 conforme certidão de fls. 335 dos autos de falência e cuja apreensão foi registada definitivamente;
c) - como o prédio descrito em 3 da alínea a) foi dado como omisso na Cons. Reg. Predial foi a apreensão descrita na Cons. Reg. Predial em 06/12/93 conforme certidão de fls. 330 dos autos de falência;
d) - os bens imóveis descritos em 1 e 2 da alínea a) da especificação foram levados para a falida pelo sócio D a título de preenchimento da sua quota social;
e) - no inventário instaurado por óbito de D e mulher G que corre seus termos no 3º Juízo Cível com o nº 58/89 consta como verba nº 12 o seguinte imóvel "prédio rústico com benfeitorias, denominado Pedreiras, sito na freguesia de Azoia de Baixo, concelho de Santarém, sob o nº 64 457 e inscrito na respectiva matriz sob o nº 25 da secção C, exercendo as funções de cabeça de casal a autora;
f) - da relação de bens do processo de imposto sucessório por óbito de D e mulher consta uma verba com o nº 38 cujo teor é o seguinte: "1/4 de um prédio rústico composto de terra de semeadura, oliveiras e pastagem, sito na freguesia de Azoia de Baixo, que confronta do norte com H e outros, sul com estrada, nascente com serventia e do poente com I, inscrito na matriz sob o artigo 72º";
g) - o prédio rústico denominado Pedreiras encontra-se desde 06/07/73 inscrito na Cons. Reg. Predial desta cidade sob o nº 0073/140690;
h) - o prédio rústico foi dividido em quatro partes iguais;
i) - a autora tomou conhecimento através de uma pessoa amiga da existência da venda de bens pela massa falida;
j) - o prédio aludido em 3 da alínea a) da especificação foi mandado construir pela falida para o exercício da sua actividade empresarial;
k) - e foi ela quem promoveu as obras e as pagou;
l) - e, quando o prédio foi construído, a falida começou a utilizá-lo;
m) - à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém;
n) - sempre com o conhecimento e acordo dos falecidos D e mulher;
o) - as despesas com a construção dos pavilhões foram contabilizadas como imobilizações em curso em nome da falida;
p) - depois da cessão da sua actividade em consequência da declaração de falência os armazéns têm estado fechados;
q) - e a báscula tem estado inutilizada;
r) - o prédio descrito na alínea a) da especificação sob o nº 3 também foi utilizado para a actividade agrícola de D.
Constata-se, antes de mais, que a decisão proferida pelo acórdão recorrido labora em evidente equívoco no que respeita ao pedido formulado na petição inicial, de separação da massa falida e de restituição (não importa, de momento, saber a quem) dos bens móveis descritos no art. 25º da referida petição: "feno, um barco, um pulverizador, madeiras, um veículo ligeiro usado de marca Peugeot e diversas peças de máquinas agrícolas".
Na verdade, os autores, não obstante o não terem feito na petição inicial (sem embargo de permitirem admiti-lo pela forma como descrevem a apreensão dos bens - arts. 26º a 34º), vêm no articulado da resposta, em que pretendem ver alterado (ou rectificado) o pedido deduzido quanto à restituição dos bens móveis existentes dentro das construções que constituem as benfeitorias realizadas por D no prédio rústico inscrito na matriz sob o art. 25º da Secção C (afinal o imóvel nº 3), afirmar expressamente que tais bens se não encontram apreendidos na falência (cfr. arts. 28º a 32º).
Tal situação de inapreensão dos referidos bens para a massa falida foi confirmada - aliás já se deduzia da forma como foram elaborados a especificação e o questionário - pela agravante, notificada para o efeito (fls. 458).
Ora, e posto isto, é indubitável que o mencionado pedido de restituição daqueles móveis se apresenta em manifesta contradição com a causa de pedir em que assenta.
Vício que, nos termos da al. b) do nº 2 do art. 193º do C.Proc.Civil (1), acarreta a ineptidão da petição inicial.
Com efeito, "é da essência do silogismo (judiciário) que a conclusão se contenha nas premissas, no sentido de ser o corolário natural e a emanação lógica delas. Se a conclusão, em vez de ser a consequência lógica das premissas, estiver em oposição com elas, teremos, não um silogismo rigorosamente lógico, mas um raciocínio viciado, e portanto uma conclusão errada. Compreende-se, por isso, que a lei declare inepta a petição cuja conclusão ou pedido briga com a causa de pedir. Se o autor formula um pedido que, longe de ter a sua justificação na causa de pedir, está em flagrante oposição com ela, a inépcia é manifesta". (2)
In casu, fundamentos lógicos do pedido de restituição de bens da massa pelos terceiros prejudicados com a apreensão (alegadamente proprietários) seriam simultaneamente a sua qualidade de donos dos bens e a apreensão ilegítima destes para a massa falimentar.
Só que, não tendo ocorrido a apreensão desses bens, existe evidente contradição entre os fundamentos em que assenta o pedido (causa de pedir invocada), nos quais se parte do pressuposto - que é real - de que tais bens não estão apreendidos e aquele pedido tal como foi formulado, o que justifica a ilação de que a petição inicial é, nesta parte, inepta.
Ineptidão que constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso, e que impede, nessa parte, o conhecimento de mérito da causa (arts. 193º, nº 1, 288º, nº 1, al. b), 494º, nº 1, al. a) e 495º).
Assim é inaceitável a decisão constante do acórdão recorrido, na parte em que revogou o despacho saneador da 1ª instância que absolvera a ré da instância quanto ao pedido de restituição dos bens móveis.
É que a decisão de absolvição da instância proferida nesse despacho saneador está evidentemente justificada face à ineptidão parcial da petição inicial, exactamente na parte em que se formula o pedido de restituição dos bens móveis que, afinal, não se encontram apreendidos no processo de falência.
Mas também a decisão constante do acórdão recorrido, quanto à questão da legitimidade do autor para formular o pedido à massa falida de restituição dos bens móveis - na medida em que revogou o despacho saneador que declarara o autor parte ilegítima, não pode manter-se, já que assenta também no equívoco acima denunciado.
Por um lado, a legitimidade das partes constitui um pressuposto processual de que, como tal, deve conhecer-se pela ordem designada no art. 288º (al. a) do art. 510º). Sendo evidente que, na ordem estabelecida por aquele art. 288º, nº 1, a ilegitimidade das partes - al. d) - surge depois da anulação de todo o processado advinda da ineptidão da petição inicial - al. b).
Consequentemente, e pelo facto de se haver julgado inepta a petição, não pode conhecer-se da excepção de ilegitimidade do autor (3) (sendo certo, até, que quanto ao pedido de restituição de bens móveis, dessa questão se não conheceu expressamente no despacho saneador).
Logo, e pelas mesmas razões, não podia o acórdão recorrido pronunciar-se sobre tal questão, porquanto o seu conhecimento se encontrava prejudicado pela solução a que se chegou de julgar inepta a petição inicial quanto ao pedido de restituição dos bens móveis.
Resta a questão da ilegitimidade do autor B para peticionar a restituição do imóvel (prédio urbano composto por dois pavilhões destinados a armazém, báscula com cabine e logradouro, tendo a área coberta de 1.507 m2 e descoberta de 3.603 m2, sito no mesmo lugar e freguesia, confinando do norte com herdeiros de D, do sul com estrada, nascente e poente com herdeiros acima referidos, omisso na Cons. Reg. Predial) apreendido na falência.
Quanto a esta questão, instaurada que foi a acção por A e marido B, decidiu-se, no despacho saneador, pela ilegitimidade deste, com fundamento em que só a autora, como cabeça de casal, embora desacompanhada dos restantes herdeiros, tem legitimidade para reivindicar os bens da herança que representa.
Sendo que no acórdão recorrido tacitamente se acolheu este entendimento, quando se refere que "é bem verdade que não sendo o requerente B herdeiro do casal falecido, não tem qualquer legitimidade, por falta de interesse em agir (art. 26º, nº 1, do Cód. P. Civil) para pedir a entrega de bens da herança a quem for herdeiro" (fls. 405 vº). Continuando: "claro que esta legitimidade apenas se reporta ao pedido de entrega daqueles bens móveis e já não ao imóvel em que o autor B se apresenta a agir em juízo unicamente na inexistente qualidade de herdeiro" (fls. 406).
E este mesmo entendimento, longe de ser contrariado pela recorrente, é expressamente por ela sufragado nas suas alegações de recurso (conclusão 2ª).
Donde, terá de manter-se a decisão de absolvição da ré da instância por ilegitimidade activa do autor B, prosseguindo os autos para apreciação do pedido, embora considerado apenas deduzido pela autora A (decisão aquela, aliás, implicitamente confirmada pelo acórdão em crise).
Daí que, em consequência, haja o Tribunal da Relação de Évora que conhecer do recurso de apelação interposto por aquela autora A da sentença da 1ª instância, já que nada obsta a esse conhecimento.
Pelo exposto, decide-se:
a) - conceder provimento ao recurso de agravo interposto pela "Massa Falida de D, L.da";
b) - revogar o acórdão recorrido, repondo a decisão proferida no despacho saneador que, quanto ao pedido de restituição dos bens móveis, considerou inepta a petição inicial e, no respeitante ao pedido de restituição do imóvel, declarou o autor parte ilegítima, absolvendo a ré da instância apenas na medida do julgado;
c) - determinar que os autos baixem ao Tribunal da Relação de Évora para que esta conheça da apelação interposta pela autora A da sentença proferida na 1ª instância;
d) - condenar a recorrida nas custas do agravo.

Lisboa, 13 de Novembro de 2002
Araújo Barros
Oliveira Barros
Diogo Fernandes
_________________
(1) Na redacção anterior à Reforma de 1995, aqui aplicável, e a que pertencem todas as disposições adiante mencionadas sem outra referência.
(2) Alberto dos Reis, in "Comentário ao Código de Processo Civil", vol. 2º, Coimbra, 1945, págs. 381 e 382.
(3) Cfr. Alberto dos Reis, in "Código de Processo Civil Anotado", vol. III, 4ª edição, reimpressão, Coimbra, 1985, pág. 184.