HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE
AGRAVANTE QUALIFICATIVA
FRIEZA DE ÂNIMO
IN DUBIO PRO REO
QUALIFICAÇÃO
PODERES DE COGNIÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MEDIDA DA PENA
Sumário

1 - Do n.º 1 do art. 132.º do C. Penal, que contem uma cláusula geral, resulta que o homicídio é qualificado, ou agravado, sempre que a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. É essa a matriz da agravação, por forma a que sem especial censurabilidade ou perversidade, ela não ocorre.
2 - Ao lado desse critério aferidor da qualificação assente na culpa e que recorta efectivamente o tipo incriminador, o legislador produz uma enumeração aberta, meramente exemplificativa pois, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei "é susceptível" (1.ª parte do corpo do n.º 2), mas esses indicadores não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: "entre outras" no segmento final do corpo do n.º 2.
3 - Assim, nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do n.º 2 se verifica o crime qualificado, mas pode dizer-se que se estará perante um crime de homicídio qualificado quando a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, estando presentes vários indicadores das alíneas do n.º 2 do art. 132.º, que no seu conjunto o permitem afirmar, embora, individualmente, cada uma delas não reúna a qualidade/quantidade que justificou a sua inclusão como indicador.
4 - Há frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana e reflecte-se sobre os meios empregados quando a escolha, o estudo ponderado dos meios de actuação que facilitam a execução do crime ou pelo menos diminuam acentuadamente as possibilidades de defesa da vítima mercê do modo frio, indiferente, calmo e imperturbadamente reflectido com foi planeada a morte.
5 - Age com frieza de ânimo o arguido que:
- pressionado pela promessa da vítima de que apresentaria a pagamento um cheque por si sacado correspondente a uma burla que efectuara, combina um encontro para daí a 2 dias afirmando-lhe que lhe pagaria;
- formula então o propósito de matar a vitima e assim se livrar da dívida que tinha para com esta;
- no dia e hora combinados, compromete-se a pagar à tarde e deslocar-se ao banco para o efeito.
- à hora aprazada, o arguido entra no carro da vitima, munido de uma pistola que ninguém lhe conhece, igualmente não lhe conhecendo o hábito de andar armado.
- em local de pouco movimento, desfere 2 tiros contra a cabeça da vitima, que foi completamente apanhado de surpresa
- deixa no local elementos para despistar a investigação e saí daí num trajecto perfeitamente apto a dissimular a sua presença no local e se mantém a trabalhar durante cerca de 3 horas e meia, como se nada tivesse acontecido.
6 - O princípio in dúbio pro reo, constitui um princípio probatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto, tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido, traduzindo o correspectivo do princípio da culpa em direito penal, a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena.
7 - Este princípio não tem quaisquer reflexos ao nível, da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, urna vez que este tem reflexos exclusivamente ao nível da apreciação da matéria de facto - sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
8 - Estando em causa a qualificação jurídica de uma determinada conduta, questão de direito que envolve a interpretação das normas que tipificam a conduta em causa, não é licito recorrer ao princípio in dubio pro reo, ou a eventual decorrência substantiva do mesmo, tanto mais quando nenhuma dúvida expressaram as instâncias, nem resulta da matéria de facto provada.
9 - No recurso de revista pode-se sindicar a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite ou da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.
10 - Não merece censura a pena de 20 anos de prisão infligida pelo crime de homicídio qualificado referido.

Texto Integral

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:

I

O Tribunal Colectivo do Montijo (proc. comum colectivo n.º 75/01.5GCMTJ - 2º Juízo), por acórdão de 12.7.2002, decidiu, além do mais:

1. julgar a acusação, com a alteração não substancial dos factos ocorrida em audiência, procedente, por provada, e consequentemente condenar o arguido FC, com os sinais dos autos, como autor material de:

a) 1 crime de homicídio qualificado dos artºs 131º e 132º nºs 1 e 2 al. i), na pena de 20 anos de prisão;

b) 1 crime de burla qualificada dos art.ºs 217º nº 1 e 218º nº 1, na pena de 2 anos de prisão;

c) 1 crime de detenção e uso ilegal de arma de defesa dos artºs 1º e 6º da Lei 22/97, na pena de 1 ano de prisão;

2. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido FC na pena única de vinte e um anos e seis meses de prisão;

3. Julgar o pedido cível parcialmente procedente, por apenas parcialmente provado, e consequentemente condenar o arguido/demandado a pagar:

a) aos demandantes MGM, MCM e MM a quantia de € 12469,95, acrescida de juros de mora à taxa de 7% ao ano desde 05.12.00 e até integral pagamento;

b) aos demandantes MGM, MCM e MM a quantia de € 25.000 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora à taxa de 7% ao ano desde 13.05.2002 e até integral pagamento;

c) à demandante MGM a quantia de € 21.147,24 (vinte e um mil cento e quarenta e sete euros e vinte e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de 7% ao ano desde 13.05.2002 e até integral pagamento;

d) à demandante MGM a quantia que se liquidar em execução de sentença, a título de lucros cessantes, pelo contributo da vitima para o sustento da viúva;

e) à demandante MCM a quantia de € 10.000, acrescida de juros de mora à taxa de 7% ao ano desde 13.05.2002 e até integral pagamento;

f) ao demandante MM a quantia de € 10.000, acrescida de juros de mora à taxa de 7% ao ano desde 13.05.2002 e até integral pagamento;

absolvendo-o do restante peticionado;


II

Inconformado, o arguido recorreu para este Tribunal, e pede que seja decretada reduzida a medida da pena por crime de homicídio para um limite não superior a doze anos, e encontrado entre os 8 e os 12 anos; decretada a substituição das medidas de prisão efectiva para os crimes de burla e de detenção e uso ilegal de arma de defesa, por outras não privativas da liberdade.

Para tanto concluiu na sua motivação (transcrição):

l. O acórdão recorrido qualificou erradamente o crime de homicídio, como crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos do artigo 132.º do Código Penal, avaliando mal a conduta global do arguido e as circunstâncias do crime, não considerando, como se impunha, todos os factores que, sendo favoráveis ao arguido, determinariam a aplicação de uma pena menos gravosa.

2. O conceito de conduta especialmente censurável não encontra base factual, no âmbito dos factos dados como provados, que permita o enquadramento do crime praticado, no previsto no artigo 132.º n.º 2 al. i), o que consiste num manifesto erro de direito, porquanto a disposição legal aplicável é a do artigo 131.º do referido diploma.

3. A aplicação de uma pena de 20 anos de prisão efectiva pela pratica do crime de Homicídio qualificado, violou expressamente, o disposto no artigo 71.º n.º 1 e 2, ao não ter em devida consideração os factos provados (Facto 52 ao Facto 57 do douto acórdão)

A pena aplicável ao caso deverá ser encontrada entre os 8 anos e os 12 anos, considerando-se todos os elementos globalmente considerados, favoráveis ao arguido e já salientados na presente motivação (factos 52 ao 57 do douto acórdão), se considerarmos o facto de o arguido ser primário, a sua situação familiar e a possibilidade evidente de o mesmo poder voltar a integrar-se na sociedade, obtendo-se com sucesso a sua ressocialização.

5. O douto acórdão viola expressamente o disposto no artigo 70º e 71º nºs 1 e 2 do Código Penal ao determinar a prisão efectiva para o crime de burla qualificada, qualificação que adiante se coloca em causa, tendo em conta que o fim de prevenção geral, tendo em conta o concurso de crimes, é assegurado no que se refere ao crime de burla se de posse ilegal de arma de defesa, pela medida aplicada ao crime de homicídio.

A fundamentação expressa no douto acórdão é contrária ao direito e ao espírito da lei, no caso a aplicação de uma pena não privativa da liberdade, apresenta-se adequada pelos fundamentos anteriormente expressos.

6. Só uma análise meramente automática e matemática poderá determinar a qualificação do crime de burla como sendo de burla qualificada, tendo em conta o valor correspondente a 2.500.000$00, ainda assim nos termos do disposto no artigo 218º nº 1 do Código Penal, a aplicação de uma pena não privativa da Liberdade é ali prevista, o que deveria ter resultado se o acórdão aplicasse com justiça o disposto no artigo 70º do Código Penal.

7. No que ao crime de detenção ilegal de arma de defesa, a aplicação de um ano de prisão efectiva, viola o disposto no artigo 70º e 71º nºs 1 e 2 do Código Penal, mesmo considerando-se a arma em questão uma arma proibida para efeitos do disposto na lei, a pena de prisão efectiva apresenta-se injusta e violadora do disposto nos artigos supra referidos.

8. O douto acórdão baseia-se em considerações sem suporte técnico ou científico para determinar a medida das penas, quando refere que o arguido tem "Personalidade mal formada", baseando-se para esta análise na negação do arguido de parte dos factos, penalizando o arguido por um acto que resulta do seu direito de defesa, violando assim as normas penais anteriormente referidas (artigos 70º e 71º) do Código Penal, bem como o direito à sua defesa.

9. Ao arguido não deverá ser aplicada uma pena superior a 12 anos devendo a mesma ser encontrada entre os 8 e os 12 anos, bem como aos crimes de Burla e de detenção ilegal de arma de defesa não deverão ser aplicadas penas privativas da liberdade, pois não contribuem para os fins de prevenção

10º No que ao pedido cível diz respeito o montante da indemnização no caso em apreço apresenta-se violento, tendo em conta que o arguido não possui condições financeiras no presente e no futuro para pagar.

O acórdão não teve em consideração a situação financeira do arguido e do seu agregado familiar que dele depende na totalidade, nem teve em atenção o facto de os lesados serem pessoas que possuem uma situação financeira estável.

do Código Civil, e consequentemente os artigos 562º, 566º, 564º do Código Civil por má aplicação do direito.

Deverá o montante da indemnizações determinadas no pedido cível ser equitativamente reduzido para valores humanamente comportáveis.

2.2. Respondeu à motivação o Ministério Público junto do Tribunal a quo, que sustentou a decisão recorrida e concluiu pelo improvimento do recurso.


III

Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ministério Público promoveu o julgamento, no visto a que alude o art. 416.º do CPP.

Colhidos vistos simultâneos, teve lugar a audiência. Em alegações orais, o Ministério Público

- referiu que este Supremo Tribunal de Justiça, por via de regra, não considera a especial censurabilidade no domínio da matéria de facto, como o deveria acontecer, só o fazendo em sede de matéria de direito, mas que considera que será suficiente a referência tácita que acaba por resultar desse procedimento;

- defendeu que no caso se verifica especial censurabilidade, para a qual poderiam ser convocadas várias alíneas do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal, sendo certo que se reuniram todas as diversas circunstâncias previstas na alínea escolhida em que foram produzidas alegações orais, pelo que cumpre conhecer e decidir;

- considerou adequada a pena concreta infligida ao crime de homicídio;

- embora tenha o entendimento em geral de que a pena de multa é a adequada nos crimes de burla, aceitou que no caso concreto, considerado globalmente, se justifica a pena de prisão;

- no que se refere à punição pela detenção e uso da arma aceitou a solução, embora tenha colocado a questão de saber se a alteração da qualificação não exigiria o uso da notificação a que se refere o n.º 1 do art. 358.º do CPP.

A acusação particular acompanhou a alegação do Ministério Público e a defesa manteve a posição assumida em sede de motivação.


IV

E conhecendo.

4.1. O Ministério Público, em audiência, suscitou a questão da alteração não substancial dos factos e do cumprimento das respectivas regras e o recorrente suscita, na sua motivação, as seguintes questões:

- qualificação jurídica da sua conduta;

- medida concreta das penas parcelares:

- valor das indemnizações cíveis.

Apreciemos tais questões, começando por reter a factualidade de que partiu o acórdão recorrido.

4.2. E foi ela a seguinte:

Factos provados (da acusação, do pedido cível, das contestações e da discussão da causa):

1. O arguido conhecia a vitima HBM há cerca de 20 anos e com o qual mantinha uma relação de negócios;

2. Com efeito, HBM procedia à reparação e manutenção dos seus veículos, na oficina do arguido, em Vale Figueira, Alcochete e estabeleceu-se uma relação de confiança entre ambos;

3. Em Junho de 2000 o arguido contraiu um empréstimo com LC, um seu cliente, no valor de 800.000$00, para fazer face a dividas que tinha;

4. Em Novembro de 2000, o LC voltou a emprestar-lhe 1.200.000$00, com a condição do arguido lhe pagar até 5 de Dezembro de 2000;

5. O arguido garantiu que pagaria a dívida em tal data;

6. Face às dificuldades financeiras que atravessava, o arguido, nesta altura, formulou e pôs em prática um plano de forma a obter dinheiro de HBM;

7. Assim, preencheu, com dados por si inventados, uma declaração de compra e venda de veículo e um termo de responsabilidade, relativamente ao veiculo marca Mercedes Benz de matrícula HM, no qual constava como vendedor JAFV;

8. Exibiu tais documentos a HBM para o convencer a participar de um negócio, que consistia na compra daquele Mercedes, e posterior venda por um preço superior ao da aquisição, em que o lucro seria dividido entre ambos;

9. Convencido das vantagens de tal negócio, a vitima entregou ao arguido, em Novembro de 2000 na oficina deste, o cheque n.º 6219773389 sobre o Banco Mello, no valor de 2.500.000$00;

10. Tal cheque destinou-o o arguido, não à compra do referido veiculo, que nunca existiu, mas ao pagamento da divida a LC, o qual, veio a levantar o cheque em 5 de Dezembro de 2000, no Banco Atlântico do Montijo, tendo restituído ao arguido o excedente da quantia em divida, no valor de 50.000$00;

11. Entretanto, HBM começou a questionar o arguido em relação ao negócio, uma vez que não se concretizava a venda do veiculo, tendo-lhe o arguido dito que o comprador do veiculo estava com dificuldades na obtenção dum empréstimo;

12. Em data não concretamente apurada, o arguido entregou a HBM o cheque nº 6650572265 da sua conta nº 5076530 da Caixa Geral de Depósitos, no valor de 3.100.000$00, datado de 26.03.2001, que sabia não ter provisão, sendo aquele valor respeitante ao empréstimo de 2.500.000$00 e pelo menos a 300.000$00 de lucro para o HBM, do negócio da venda do Mercedes;

13. Como o negócio não se concretizasse, HBM disse ao arguido que iria descontar o cheque no Banco e continuou a insistir pelo pagamento da divida;

14. Dois dias antes da sua morte o HBM ainda tentou ir a uma entidade bancária, para obter a cobrança do cheque, mas não o terá apresentado a pagamento, face a um telefonema do arguido para não fazer tal apresentação, uma vez que não tinha lá dinheiro;

15. Combinou então encontrar-se com o arguido na oficina deste, no dia 30 de Março de 2001, pelas 10.00 horas, com a promessa da entrega do dinheiro e resolução da questão;

16. Na sequência deste telefonema e perante a pressão da vitima para cobrar o cheque, o arguido formulou o propósito de pôr termo à vida de HBM;

17. No dia e hora supra referidos este último dirigiu-se à oficina, tendo aí sido visto por AMR e LMC, os quais também estiveram na oficina, acabando por sair cerca das 12.00 horas sem que tivesse obtido o dinheiro, mas, combinaram encontrar-se nesse mesmo dia pelas 14.00 horas, para se deslocarem ao banco;

18. À hora combinada, HBM veio a conduzir o seu veiculo VW Golf, preto, de matrícula HE, pela estrada em frente à oficina do arguido, no sentido de marcha Alcochete-Montijo;

19. O arguido foi ao seu encontro, levando consigo uma pistola transformada de 8 mm, de gás ou alarme, para uma pistola semi-automática de calibre 6,35 mm, Browning, munida do respectivo carregador com seis munições e entrou para o interior do veiculo, sentando-se no banco dianteiro direito ao lado da vitima;

20. Circularam alguns metros pela referida estrada, no mesmo sentido de marcha, até um cruzamento onde viraram à esquerda, em direcção à Atalaia;

21. Circularam trezentos e cinquenta metros numa estrada de pouco movimento, e, a cerca de setenta metros do entroncamento que liga Alcochete-Atalaia, na estrada municipal n.º1003, em Vale Figueira, Alcochete, por razões não concretamente apuradas, a viatura foi imobilizada;

22. Aí, o arguido, em concretização do plano que havia delineado, apontou à cabeça da vitima a pistola que para o efeito levava, a curta distância, e disparou duas vezes, de cima para baixo e da direita para a esquerda;

23. O HBM foi atingido pelos projecteis de dois disparos, respectivamente, na região fronto-parietal direita e na região infra-auricular direita;

24. Desses disparos resultaram lesões traumáticas crânio-encefálicas graves, integralmente descritas no relatório de autópsia de fls 165 a 167, que aqui se dá por integralmente reproduzido, as quais foram causa directa e necessária da sua morte;

25. O arguido, antes de fugir do local, e com o intuito de despistar as autoridades, deixou propositadamente junto ao veiculo, do lado direito, um escrito por si redigido, no qual se dizia: "Já não me vendes mais vacas loucas Acabouce Já morreu muita gente por tua causa";

26. Acto continuo, fugiu a pé através dos campos que ladeiam a estrada em direcção a casa, por forma a não ser visto;

27. Afastou-se o mais possível da estrada, percorreu um matagal, um canavial ali existente, e já a cerca de cem metros de distância da viatura e da vitima, atravessou a referida estrada para o lado contrário, voltando a embrenhar-se num canavial e numa vala de água escondida por entre as canas;

28. Percorreu cerca de trezentos e cinquenta metros, saiu dessa vala, e, um pouco mais à frente, em vez de virar à esquerda em direcção a casa, seguiu em frente em direcção a Alcochete;

29. Percorreu cerca de mil e cem metros, passou por um pequeno matagal em direcção à estrada que dá acesso à sua casa, atravessou a estrada, passou por uma vedação de arame farpado, e escondeu a pistola nuns arbustos, junto de um tronco de uma oliveira;

30. Em seguida, a cerca de trezentos e cinquenta metros de sua casa, seguiu nessa direcção pela berma do lado direito, junto à estrada;

31. Chegou à oficina por volta das 15.00 horas e trabalhou até as 18.30 horas;

32. O arguido prevaleceu-se da relação de confiança que tinha com a vitima, do expediente que utilizou com a exibição dos documentos do veiculo Mercedes, e da promessa da realização de um negócio lucrativo para ambos, por forma a convencê-lo a entregar-lhe o cheque de 2.500.000$00, o que veio a acontecer;

33. Sabia que não existia qualquer veiculo, comprador, ou negócio, sendo seu propósito obter dinheiro à custa de HBM, para pagar as suas dividas, não sendo seu propósito restituir aquele montante de 2.500.000$00;

34. O arguido, ao sentir-se pressionado pela vitima para efectuar o pagamento da quantia em divida, formulou o propósito de o matar, tendo combinado um encontro com HBM, e levando para esse efeito uma pistola devidamente carregada com munições, cujas características conhecia e sabia que a não podia deter e usar;

35. Redigiu um escrito, que propositadamente deixou no local do crime com vista a confundir as autoridades, escolheu um local pouco frequentado, e um percurso longo e escondido, por forma a regressar a casa sem ser visto próximo do local do crime, e finalmente, apontou e visou a zona da cabeça do HBM, pessoa que conhecia há muitos anos e com quem mantinha uma relação de confiança, sabendo que tal constituía o meio adequado à obtenção das suas pretensões, isto é o propósito inequívoco de lhe pôr termo à vida;

36. Pela forma descrita quis o arguido enganar a vitima e determiná-lo à entrega de dinheiro em seu beneficio, o qual não pretendia pagar, e bem assim, pôr termo à vida do HBM, decisão que previu e executou com total indiferença e insensibilidade, utilizando para o efeito os meios adequados à satisfação do seu desiderato;

37. Agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuráveis e proibidas e punidas por lei;

38. A vitima, homem de 70 anos de idade, era no entanto saudável, trabalhador e muito apegado à vida;

39. Era uma pessoa realizada e feliz, com boa integração familiar e social, constituindo com os AA uma família muito unida;

40. Marido e pai exemplar, dedicava à esposa grande amor e carinho, mantendo com os filhos um convívio afectuoso e permanente, residindo aliás no mesmo prédio com a filha;

41. A A viúva vivia na total dependência económica do marido;

42. A vitima, para além da reforma que auferia, exercia a actividade de criação de gado, como empresário em nome individual, actividade esta que lhe proporcionava um rendimento anual não concretamente apurado;

43. A A viúva, não obstante receber agora uma parte da reforma então atribuída ao marido, deixou de contar com o contributo financeiro que aquele auferia como criador de gado, e que punha ao dispor do seu agregado familiar;

44. Desse rendimento a A beneficiava de 50%;

45. A vitima estaria em condições de prosseguir a sua actividade criador de gado durante mais cinco anos;

46. A A viuva, para além de receber apenas parte da reforma do seu falecido marido, não possui qualquer outra fonte de rendimentos;

47. Com a inesperada e brutal morte de seu marido e pai os AA sofreram um grande desgosto e um forte abalo, que os acompanhará para o resto das suas vidas;

48. O casal constituído pela A viúva e pela vitima vivia em perfeita harmonia, devotando-se reciprocamente grande amor e compreensão;

49. Também com os filhos e respectivos agregados familiares a vitima nutria uma enorme afeição, com quem mantinha uma ligação estreita e permanente;

50. A A viúva despendeu com o funeral do seu marido a quantia de 230.000$00 (6 1 147,24);

51. A vitima era de constituição física forte e obesa;

52. O arguido confessou parcialmente os factos, admitindo: que preencheu a declaração de compra e venda do veículo Mercedes Benz e o termo de responsabilidade, com dados por si inventados, enganando nesse aspecto o HBM e para obter dele o empréstimo dos 2.500.000$00; que terá disparado um tiro; que era detentor da arma apreendida e a usou naquele dia, apesar de saber que não podia deter e usar aquela arma;

53. O arguido colaborou, parcialmente, com os agentes policiais na recolha de provas, autorizando a realização de busca domiciliária, bem como a recolha de elementos para análise de ADN e indicando o trajecto percorrido após sair do carro da vítima até à sua oficina, bem como o local onde escondeu a arma;

54. O arguido tem família constituída, tendo a seu cargo mulher e três filhos menores, com as idades de 15, 13 e 3 anos;

55. O arguido até à data dos factos sempre pautou a sua conduta social, profissional e familiar por comportamentos normais;

56. O arguido à data dos factos era: primário; cidadão normalmente integrado na sociedade; estimado pela generalidade da vizinhança; cidadão normalmente respeitador e respeitado; suporte económico de toda a família; e um pai normal;

57. O arguido tem como escolaridade o 8º ano (4º unificado), começou a trabalhar por volta dos 17 anos de idade e tinha uma vida normal em termos de estabilidade, embora com dificuldades económicas, por razões que não foi possível apurar, nomeadamente por o arguido não ter conseguido concretizar as mesmas;

58. O Sr. HBM era um homem de negócios, bem sabendo que esta profissão acarreta riscos económicos;

59. Ao aderir ao negócio da compra do veículo o Sr. HBM fê-lo no intuito de uma vantagem económica;

60. O arguido reconhece a divida de 2.500.000$00 para com o Sr. HBM.

Factos não provados

Não se provaram os restantes factos articuladas na acusação, no pedido cível e nas contestações que sejam incompatíveis com os atrás descritos e com relevância para a boa decisão da causa, nomeadamente que:

1. O arguido chegou a beneficiar, pelo menos por duas vezes, de empréstimos por parte da vitima, que chegaram a atingir montantes de um milhão de escudos;

2. O cheque nº 6650572265 da conta nº 5076530 da Caixa Geral de Depósitos, no valor de 3.100.000300 foi entregue pelo arguido entre finais de Dezembro e princípios de Janeiro de 2001, com o propósito de evitar que a vitima continuasse a pressioná-lo;

3. A actividade da vitima, de criação de gado, proporcionava-lhe um rendimento mínimo anual de cerca de 1.200.000$00;

4. A vitima percepcionou que ia morrer da forma violenta como veio a acontecer e por isso viveu seguramente momentos de angústia e desespero terríficos;

5. Sempre foi intenção do arguido pagar a divida de 2.500.000$00 com um acréscimo de 300.000$00 e nunca teve o intuito de burlar o Sr. HBM;

6. A fim de obter a quantia em divida o arguido tentou obter um empréstimo junto da Banca;

7. O arguido preencheu e assinou um cheque seu, como garantia da divida com o Sr. HBM, no valor de 3.100.000$00, enquanto encetava o pedido junto da banca;

8. Com data de 26.03.2001, por entender que nessa data já teria uma resposta favorável do Banco;

9. Assim que o banco viabilizasse o pedido e disponibilizasse a quantia acordada o arguido informava o Sr. HBM para lhe devolver o referido cheque e em contrapartida entregava-lhe a quantia de 2.800.000$00;

10. Nunca o referido cheque foi preenchido ou assinado pelo arguido para ser presente a pagamento, mas sim como garantia, e assim foi acordado entre as partes;

11. O arguido sempre honrou os seus compromissos, jamais agiu com o intuito de lesar o património, ou negar-se ao pagamento da referida divida;

12. O Sr. HBM esteve na manhã de 30.03.2001 na oficina do arguido por questões de mecânica, referentes ao VW Golf, veículo da vitima;

13. Nunca, jamais o arguido agiu, formulou ou perpetrou pôr termo à vida do Sr. HBM;

14. Quando o arguido entrou no veículo da vitima, pelas 14.15 horas, fê-lo com o propósito de se dirigirem à fazenda do Sr. HBM, para lá o deixar, e regressar à oficina com o veículo VW Golf, a fim do arguido identificar alguma avaria;

15. A meio do percurso o Sr. HBM imobilizou a referida viatura e de uma conversa mais agressiva, entre a vitima e o arguido, transformou-se numa discussão;

16. A fim de pôr termo a esta discussão o arguido abriu a porta do referido veículo para dele se ausentar;

17. Foi então que a vitima, de forma brusca e inesperada, o agarrou pelo braço esquerdo e o reteve dentro da viatura;

18. A violência foi tal que o arguido embateu com a cabeça no ombro direito da vitima, ficando imobilizado;

19. Em consequência deste embate o arguido ficou atordoado e amedrontado;

20. A vitima apesar da idade mantinha alguma destreza e força física, para levar a bom termo o seu intuito;

21. Na sequência dos factos a vitima proferiu as seguintes expressões: "Anda cá meu filho da puta, estás a ver? Vou matar-te já aqui" ;

22. Em acto continuo a vitima fez um gesto ameaçador com a mão esquerda, a qual tinha um objecto, que no entender do arguido era uma arma;

23. O arguido, num acto de desespero e irreflectido, tirou a arma que trazia consigo, a fim de intimidar a vitima;

24. Acidentalmente, na altura em que "puxou pela patilha de segurança - o cão -, sem saber explicar o acontecido, disparou na direcção da vitima;

25. O arguido não sabe, não compreende e não consegue explicar o sucedido;

26. É falso que o arguido tenha "formulado o propósito de o matar" e quem indicou a hora e o local para o encontro foi a vitima e o arguido só concordou;

27. O arguido transportava consigo uma arma devido à sua profissão de mecânico e tinha como propósito afastar ou remover algumas situações periclitantes;

28. O arguido ao retirar a arma do bolso não agiu com o intuito de matar a vitima;

29. Existiu uma situação de tensão, os acontecimentos atropelaram-se e o arguido debaixo de forte emoção, sem domínio do raciocínio, afastou-se do lo al após os disparos;

30. O arguido ao abandonar o local caminhou sem orientação destino, só teve consciência do lugar em que se encontrava quando se aproximou de um pontão;

31. Os escritos não foram por si redigidos, mas já tinha conhecimento deles, e dos dizeres, pois foi a própria vitima que lhos tinha mostrado;

32. O arguido desconhece se os referidos escritos estavam dentro ou fora do veículo da vitima, por nada saber, e por não ter praticado nenhum dos factos enunciados na acusação;

33. O arguido demonstrou o seu profundo arrependimento e até à presente data não consegue explicar o facto por si praticado;

34. O arguido é bom filho, prestando auxilio aos pais;

35. Ao aderir ao negócio o Sr. HBM fê-lo no intuito do lucro fácil;

36. É vontade expressa do demandado efectuar o pagamento da quantia de 2.500.000$00;

37. O arguido transporta consigo um profundo arrependimento do acto que praticou e da dor causada à família do ofendido;

4.3. No que se refere ao invocado não cumprimento das regras do n.º 1 do art. 358.º do CPP, a eventual nulidade daí advinda não foi arguida no recurso pelo interessado: o arguido. Ora sendo a mesma cominada em nome do respeito pelo direito de defesa, só pode ser arguida pelo seu beneficiário, a quem compete ponderar do eventual prejuízo para a defesa, não sendo do conhecimento oficioso.

Depois, como se refere na própria sentença recorrida, procedeu-se em audiência às demarches processuais impostas por aquele normativo. Com efeito, como consta de fls. 660-1 dos autos, na audiência de 9.7.02, o Tribunal admitiu a hipótese convolar a qualificação jurídica quanto ao uso da arma e notificou o arguido nos termos do n.º 1 do art. 358.º do CPP, que nada requereu.

Quanto à questão da qualificação jurídica da sua conduta, começa por sustentar o recorrente que a conduta global do arguido não se integra no conceito de conduta especialmente censurável, que permita o enquadramento do crime praticado, no previsto no art. 132.º n.º 2 al. i) do C. Penal, porquanto a disposição legal aplicável é a do art. 131.º do referido diploma (conclusões 1.ª e 2.ª).

4.3.1. Escreveu-se a propósito no acórdão recorrido:

«1.1. Crime de homicídio qualifìcado, p. e p. nos artºs 131º e 132º nºs 1 e 2 al. i)

O preenchimento deste crime, na sua objectividade, resulta de o arguido ter disparado dois tiros contra HBM, atingindo-o com os mesmos na cabeça, do que resultou a morte deste. O elemento subjectivo do tipo está igualmente preenchido, pois o arguido quis aquela conduta e resultado, ou seja, quis tirar a vida a HBM, tendo assim actuado com dolo directo.

Cremos ainda que este homicídio é de considerar qualificado porquanto todo o circunstancialismo ligado à morte de HBM e respeitante à conduta do arguido leva-nos a concluir que tal morte foi produzida "em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade" e é isto que é determinante para qualificar o homicídio.

As circunstâncias descritas nas diversas alíneas do nº 2 do artº 132º são apenas apontadas como "susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade".

Daí decorre, como bem salienta Maia Gonçalves, Cód. Penal Português, Liv. Almedina, 12ª edição, p. 444, que tal enumeração de circunstâncias não é taxativa, mas apenas exemplificativa. Por outro lado, tais circunstâncias, não sendo elementos do tipo mas da culpa, não são de funcionamento automático.

Porém, na situação sub judice, em que o arguido quando se vê pressionado pela vitima com a perspectiva de este apresentar a pagamento um cheque que o mesmo lhe tinha entregue para pagamento de dinheiro que recebera da vitima, combina com esta um encontro para dali a dois dias para lhe pagar, sabendo que não tem condições financeiras para o efeito, o arguido formula aí o propósito de matar a vitima e, dessa forma, livrar-se da divida. No dia e hora combinados, verifica-se tal encontro, mas o arguido não paga à vitima. Quiçá por razões que se prendem apenas com o facto de a vitima ter sido vista na oficina do arguido, o arguido compromete-se a pagar à tarde e deslocar-se ao banco para o efeito. À hora aprazada, 14.00 horas, o arguido entra no carro da vitima, munido de uma pistola que ninguém lhe conhece, igualmente não lhe conhecendo o hábito de andar armado. Percorridos cerca de quinhentos metros, em local de pouco movimento, desfere dois tiros contra a cabeça da vitima, o qual tudo indica foi completamente apanhado de surpresa. Deixa no local elementos para despistar a investigação. Saí do local fazendo todo um trajecto perfeitamente apto a dissimular a sua presença no local e a aparecer na sua oficina pelo lado contrário da estrada de modo a que se fosse visto nessa altura, por ser terreno descoberto, não ser relacionado com o outro lado da estrada. Mantém-se a trabalhar na oficina durante cerca de três horas e meia, como se nada tivesse acontecido. Claro que na perspectiva do arguido apenas tinha acontecido uma morte que dava jeito para resolver a sua divida.

Tudo isto aponta para uma conduta especialmente censurável, em que há um desprezo completo pela vida alheia, face a um problema de dificuldades económicas do arguido, raiando mesmo a determinação por avidez (v. al. d) do nº 2 do artº 132º). Mas, sobretudo, há uma completa insensibilidade perante o valor da vida e uma aturada reflexão sobre os meios a utilizar no cometimento do homicídio, bem como a melhor forma e local de o levar a cabo e não ser conectado com o mesmo. Acresce que tal propósito de causar a morte à vitima foi mantido pelo arguido por um período superior a 24 horas, sendo certo que nada o demoveu desse propósito. Nem a circunstância de na manhã desse dia a vitima ter sido vista na sua oficina por outras pessoas, o que tudo indica o levou a adiar para a tarde uma pretensa deslocação ao banco para um pretenso pagamento que não eram mais do que a forma de conduzir a vitima ao local certo para lhe causar a morte.

A situação em análise configura, tal como se refere no Ac. do STJ de 18.06.86, BMJ 358, p. 260, a "calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar".

No fundo estamos perante a premeditação, pese embora tal conceito tenha sido eliminado da al. i) citada pela Reforma de 1995, verificando-se pois que tal premeditação e a forma de execução que a acompanhou é indicador de uma culpa agravada por parte do agente, uma especial perigosidade por parte do mesmo. No sentido de os exemplos-padrão referidos na al. i) citada continuarem a reportar-se ao conceito englobante de premeditação cfr. O Comentário Conimbricense do Código Penal-Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, p. 39.»

4.3.2. Dispõe o Código Penal:

«Artigo 132º - Homicídio qualificado

1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.

2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;

b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez;

c) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;

d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;

e) Ser determinado por ódio racial, religiosos ou político;

f) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;

g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;

h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;

i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;

j) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Ministro da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das Regiões Autónomas ou do território de Macau, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente ou examinador, ou ministro de culto religioso, no exercício das suas funções ou por causa delas;

l) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso da autoridade.»

Este Supremo Tribunal de Justiça já teve ocasião de se pronunciar várias vezes, quer sobre este dispositivo em geral, quer sobre os conceitos de premeditação e frieza de ânimo.

Em geral, tem afirmado constantemente que:

- As circunstâncias contempladas no n.º 2 do art.º 132 não são taxativas nem implicam só por si a qualificação do crime. Tais circunstâncias não são elementos do tipo e antes elementos da culpa não sendo o seu funcionamento automático (Ac. do STJ de 13.2.97, proc. n.º 986/96)

- A enumeração do n.º 2 do art. 132º do C. Penal não é taxativa.

A qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do art. 132º do C. Penal. Essencial, é que, as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade destina-tas (pela sua anormal gravidade ) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples. (Ac. do STJ de 21.5.97, proc. n.º 188/97)

- (2) O tipo do art.º 132, do C. Penal, (homicídio qualificado) consiste em ser a morte causada em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente (art.º 132, n.º 1), enumerando o n.º 2 do mesmo artigo um conjunto de circunstâncias, não taxativas, susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade. (3) Por isso, pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas diversas alíneas do n.º 2, do art.º 132, do C. Penal, e não existir especial censurabilidade ou perversidade justificativa da qualificação do homicídio e podem outras circunstâncias, diversas daquelas descritas, revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas como qualificativas.. (Ac. do STJ de 10.12.97, proc. n.º 1207/97)

- O legislador utilizou no art.º 132, do CP, a chamada técnica dos exemplos-padrão, sendo as circunstâncias elencadas nas diversas alíneas do n.º 2 meros indícios não taxativos e meramente enunciativos da existência ou inexistência da especial censurabilidade ou perversidade do agente aludida no n.º 1. É a especial censurabilidade ou perversidade do agente o fundamento da aplicação da moldura penal agravada do homicídio qualificado; e não as circunstâncias indicadas nos exemplos-padrão, que não são de funcionamento automático. (Ac. do STJ de 18.2.98, proc. n.º 1086/97)

- As circunstâncias enunciadas, a título exemplificativo, no art.º 132, n.º 2, do CP, são meros elementos da culpa, pelo que não funcionam automaticamente, mas apenas se no caso concreto revelarem especial censurabilidade ou perversidade do agente. (Ac. do STJ de 3.6.98, proc. n.º 301/98)

- As circunstâncias a que o art.º 132.º, do CP, se refere não são elementos do tipo, mas da culpa, devendo existir no momento do crime, ou preceder a sua execução. (Ac. do STJ de 8.7.98, proc. n.º 646/98)

- A verificação dos exemplos-padrão do n.º 2 do art.º 132.º, do CP, não funciona automaticamente, em termos de logo se dar por demonstrada a especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como elementos da culpa, implicam ainda um exame global dos factos de modo a chegar, ou não, àquela conclusão. (Ac. do STJ de 7.12.99, Acs STJ ano VII t 3 pag 234)

E, na verdade, do n.º 1 do art. 132.º do C. Penal, que contem uma cláusula geral, resulta que o homicídio é qualificado, ou agravado, sempre que a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. É essa a matriz da agravação, por forma a que sem especial censurabilidade ou perversidade, ela não ocorre.

Depois, ao lado desse critério aferidor da qualificação assente na culpa e que recorta efectivamente o tipo incriminador, o legislador produz uma enumeração aberta, meramente exemplificativa pois, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei "é susceptível" (1.ª parte do corpo do n.º 2).

Mas os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: "entre outras" no segmento final do corpo do n.º 2.

De concluir, pois, que nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do n.º 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, que esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1; mas que na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não se verifique qualquer daqueles indicadores (neste sentido o Ac. do STJ de 19.6.96, proc. n.º 203/96):

Finalmente, pode dizer-se que se estará perante um crime de homicídio qualificado quando a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, estando presentes vários indicadores das alíneas do n.º 2 do art. 132.º, que no seu conjunto o permitem afirmar, embora, individualmente, cada uma delas não reuna a qualidade/quantidade que justificou a sua inclusão como indicador.

4.3.3. Não procede, portanto, a crítica do recorrente que afirma a inelutável necessidade de ocorrência de um dos exemplos padrão do n.º 2 do art. 132.º, para operar a qualificação do crime de homicídio.

Com efeito, como se viu, a verificação da cláusula geral do n.º 1 não exige a necessária verificação de um daqueles exemplos.

Sustenta igualmente na sua motivação que se não verifica especial censurabilidade ou perversidade, que se verifica a cláusula geral traduzida na formulação genérica do tipo (especial censurabilidade ou perversidade) (n.º 1), ou seja, o crime de homicídio qualificado e que se verifique a hipótese da al. i) do n.º 2 (i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas).

Mas, dispensa-se de demonstrar que a morte não foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, designadamente com "frieza de ânimo", preferindo recorrer a uma abordagem genérica e ao princípio da dúvida.

Sucede, porém, que independentemente de se ter verificado qualquer dos índices das alíneas do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal, designadamente a "frieza de ânimo", as circunstâncias em que a morte do ofendido foi tentada, revelam especialmente censurabilidade ou perversidade.

Com efeito, vem assente, em síntese, que o arguido, pressionado pela promessa da vítima de que apresentaria a pagamento um cheque que lhe entregara para pagamento de dinheiro que recebera desta, por meio de uma burla, combina um encontro para daí a 2 dias afirmando-lhe que lhe pagaria, quando sabia que não tinha condições financeiras para o efeito.

Formula então o propósito de matar a vitima e assim se livrar da dívida que tinha para com esta.

No dia e hora combinados, verifica-se tal encontro mas na oficina do arguido, tendo a vítima sido aí vista, não pagando o arguido à vitima. O arguido então compromete-se a pagar à tarde e deslocar-se ao banco para o efeito.

À hora aprazada, o arguido entra no carro da vitima, munido de uma pistola que ninguém lhe conhece, igualmente não lhe conhecendo o hábito de andar armado.

Em local de pouco movimento, percorridos cerca de 500 metros, o arguido desfere 2 tiros contra a cabeça da vitima, que foi completamente apanhado de surpresa.

O arguido deixa no local elementos para despistar a investigação e saí daí num trajecto perfeitamente apto a dissimular a sua presença no local e a aparecer na sua oficina pelo lado contrário da estrada de modo a que se fosse visto nessa altura, por ser terreno descoberto, não ser relacionado com o outro lado da estrada.

Mantém-se a trabalhar na oficina durante cerca de três horas e meia, como se nada tivesse acontecido.

Sem pretender afirmar, neste momento, a presença de uma ou várias circunstâncias, tais como previstas nas alíneas do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal, sempre se imporia concluir que:

- o motivo que presidiu ao comportamento do arguido (escapar ao pagamento de uma dívida que tinha para coma vítima a quem burlara);

- a traição e deslealdade com que desferiu o ataque (atraindo a vítima com um falso pretexto e disparando totalmente de surpresa, sem qualquer aviso, 2 tiros com uma pistola contra o assistente que se encontra indefeso e vulnerável a curta distância);

- o tipo de arma usada e a forma como o foi (arma de fogo usada de forma a não deixar qualquer hipótese ao assistente e a não trazer qualquer risco ao arguido);

- a frieza com que a conduta foi desencadeada e nela se persistiu (com a decisão de causar a morte da vítima 2 dias antes, a atracção da vítima para local e condições favoráveis à prática do crime sem ser descoberto, o uso repetido da arma na forma descrita), e a forma como procedeu friamente o arguido para despistar eventuais perseguições policiais e permanecer depois cerca de 3,5 horas a trabalhar como se nada tivesse acontecido;

- impõem a conclusão de que a conduta do arguido se reveste da especial censurabilidade ou perversidade a que se reporta o n.º 1 do art. 132.º do C. Penal.

Mas deve também entender-se que esteve presente a frieza de ânimo, tal como previsto na al. i) do n.º 2 do falado art. 132.º.
Com efeito, «há frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana. Como reflexão sobre os meios empregados deve entender-se a escolha, o estudo ponderado dos meios de actuação que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam a vulnerabilidade da concretização da concretização do desígnio criminoso» (Simas Santos & Leal-Henriques, Código Penal Anotado, II, pág. 73).
Entendimento que cabe dentro da forma pela qual este Supremo Tribunal de Justiça tem entendido a Lei. Na verdade, da sua jurisprudência claramente maioritária, pode concluir-se que o Supremo Tribunal considera que
Verifica-se, assim, a circunstância da falada al. i) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal.
Neste sentido vai, aliás a repetida jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, que recentemente decidiu que há frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana e reflecte-se sobre os meios empregados quando a escolha, o estudo ponderado dos meios de actuação que facilitam a execução do crime ou pelo menos diminuam acentuadamente as possibilidades de defesa da vítima mercê do modo frio, indiferente, calmo e imperturbadamente reflectido com foi planeada a morte (Cfr. Ac. de 16.5.02, proc. n.º 585/02-5 do mesmo Relator).

E tem entendido nesta linha que:
- A " frieza de animo " significa uma calma imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar. Age desta forma o réu que sem o mínimo de exaltação provada abate friamente a vitima depois de lhe dizer, cerca de quatro minutos antes, " que ela ainda se sairia mal ", " que a trazia debaixo de olho " (Ac. do STJ de 28.6.86, BMJ 358-260)
- (1) A frieza de ânimo - a que se refere o mesmo art. 132.º, n.º 2, al. g) - significa uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar. (2) De qualquer forma, só qualificado o homicídio o motivo fútil ou frieza de ânimo quando a apreciação do caso concreto mostre que o agente actuou com especial censurabilidade ou perversidade, exigidos no n.º 1 do mesmo parceiro incriminador. (Ac. do STJ de 12-07-1989, BMJ 389-310 )
- (1) O marido que empurra a mulher para um tanque cheio de água, com a intenção de a matar por afogamento bem sabendo que ela não sabe nadar e que fica à espera da ocorrência do evento, comete o crime por acção elegendo também acidentalmente um meio omisso. (2) Ao fazê-lo, em virtude da ofensa da mulher ao chamar-lhe «chibano de merda», comete o arguido o crime de homicídio qualificado por motivo fútil - art. 132º, nºs 1 e 2, als c) e g) do C Penal de 1982, e com frieza de ânimo, não a socorrendo. (Ac. do STJ de 31.1.90, AJ n.º 6)
- Frieza de ânimo é «qualidade do que é moralmente frio, tibieza, indiferentismo, sangue-frio, insensibilidade, indiferença», significando «uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar». (Ac. do STJ de 1.3.90, BMJ 395-218)
- (1) Actua com premeditação o agente que mantém a resolução de matar, pelo menos desde que iniciou uma viagem de mais de 100 km até ao local onde se encontrava a vítima que viria a ofender. (2) Essa actuação revela ainda frieza de ânimo, ou seja, vontade de matar ainda de modo frio, deliberado, calculado, analisado e a manter-se durante algum tempo até à consumação. (3) Verificando-se mesmo, por parte da arguida, reflexão sobre os meios necessários para a execução e, por isso, ela já foi munida da pistola e logo disparou como vinha planeado. (Ac. do STJ de 12.12.90, AJ n.º 13/14)
- (1) A frieza de animo - art. 132º, n.º 2, g) do C Penal de 1982 - significa uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a intenção de matar. (2) Consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cautelosos, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução. (Ac. do STJ de 24.4.91, BMJ 406-381)
- A frieza de ânimo traduz uma actuação insensível, de indiferença, incompatível com estados emotivos e emocionais. (Ac. do STJ de 14.10.92, Processo n.º 42918)
- (1) Ao contrário do que acontecia com o C Penal de 1886, a actuação «frigido pacatoque animo» pode, só por si, integrar a premeditação a que faz apelo o art. 132º do C Penal de 1982. (2) Não pode porém esquecer-se que todo o crime pressupõe uma certa dose de paixão, a frieza de ânimo tem de resultar de circunstâncias inequívocas em que transpareça claramente. (Ac. do STJ de 8.7.93, Processo n.º 44541)
- Age com frieza de animo e reflexão sobre o meio empregado o mesmo arguido que, antes do disparo, se dirigiu a sua casa situada em frente do local onde o ofendido estava sentado, preparou a arma e escolheu um cartucho de zagalotes. (Ac. do STJ de 5.1.94, Processo n.º 45806)
- (1) O ciúme não é incompatível com a frieza de animo no crime de homicídio voluntário, salvo nos casos de flagrante delito da infidelidade. (2) Isto porque a motivação pode levar o agente a uma reflexão sobre as circunstancias de execução do projecto criminoso. (Ac. do STJ de 17. 5.95, Acs STJ III, 201)
- Há frieza de ânimo quando o arguido, na execução do seu desígnio anteriormente formado, mantêm-no depois de acompanhar a vitima até ao seu local de trabalho. (Ac. do STJ de 26.6.96, Processo n.º 533/96)
- (1) A frieza de ânimo de que fala a al. g) do n.º 2 do art. 132 do CP de 1982 para integrar o conceito de "premeditação" aí previsto como qualificante do crime de homicídio, está ligada à formação e manutenção da resolução criminosa e ao modo da sua execução.
(2) Não é a falta de motivação na formação da resolução que preenche esse conceito. Ele vai antes fundamentar-se no desvalor com que ao formá-la lenta, reflexiva, deliberada e persistentemente, o agente encara a vida humana e a reduz a mera coisa que quer e pode eliminar.
(3) Este desvalor associado agora a uma mecanização assim programada da acção dirigida à sua execução é que nos dá os contornos jurídico-penais da "frieza de ânimo" (Ac. do STJ de 17.10.96, Processo n.º 634/96)
- (1) A frieza de ânimo ocorre quando a vontade se revela formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e na execução e persistente na resolução. (2) O arguido age com frieza de ânimo quando se prova que o arguido decidiu definitivamente tirar a vida à ofendida, muitos dias antes dos factos, aguardando apenas o momento mais propício para o concretizar. (Ac. do STJ de 21.5.97, Processo n.º 107/97)
- Traduz frieza de ânimo, o facto de não obstante a vítima ser tia do arguido e pessoa de avançada idade, que o havia acolhido em sua casa em duas ocasiões diferentes, não se ter o mesmo inibido de usar para com ela de grande crueldade, desferindo-lhe no corpo várias pancadas com o rolo da massa, nomeadamente duas que a atingiram na cabeça, fazendo-a cair no chão e depois, amordaçando-a com um "naperon", para que não gritasse, acabando por lhe cravar ainda uma faca de cozinha no peito, que deixou espetada, provocando-lhe assim, desse modo, a morte (Ac. do STJ de 22.5.97, Processo n.º 152/97)
- Frieza de ânimo é uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar. (Ac. do STJ de 2.10.97, Processo n.º 689/97)
- (1) Frieza de ânimo é a acção com evidente sangue frio, insensibilidade, indiferença, calma ou imperturbada reflexão ao assumir a resolução de matar a vítima. (2) Cometeu o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. p. pelos art.ºs 22, 23, n.ºs 1 e 2, 73, n.º 1, ais. a) e b), 131 e 132, n.ºs 1 e 2, als. c) e g), do CP, o arguido que: - se muniu de uma espingarda caçadeira e se dirigiu para junto da casa de habitação do assistente, a aguardar a chegada deste, acoitando-se debaixo de uma oliveira; - de noite, empunhou a referida espingarda, apontando-a na direcção do assistente, quando este se encontrava distante de si cerca de 15 metros, e disparou dois tiros seguidos, tendo os chumbos atingido o visado na cabeça e no braço direito, provocando-lhe múltiplas lesões; - após os disparos se pôs em fuga; - agiu com a intenção de tirar a vida ao assistente, não conseguindo o seu propósito por aquele ter sido prontamente socorrido ; - actuou com a finalidade de tirar desforço da discussão e envolvimento físico havido cerca de duas horas antes entre ele, por um lado, e o assistente e um seu irmão, de outro. (Ac. do STJ de 18.2.98, Processo n.º 1414/97)
- A "frieza de ânimo" é um conceito que pressupõe uma vontade formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução. (Ac. do STJ de 15.4.98, BMJ 476-238)
- A frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução. (Ac. do STJ de 30.9.99, proc. n.º 36/99)
- Comete o crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. c) e g), do CP, o arguido que, sem qualquer justificação ou perturbação de ânimo, aproveitando-se da circunstância de a vítima estar diminuída fisicamente, em resultado de um acidente que sofrera, a ataca pela retaguarda, de surpresa, arremessando-lhe às costas uma pedra com o peso de 5 Kg., e que, após derrubar a mesma, desfere-lhe múltiplas pancadas na cabeça, no pescoço e na face, com o referido objecto, só parando depois de se certificar da sua morte. (Ac do STJ de 15.12.99, Processo n.º 1022/99 )
- O agir frigido pacto que animo (com frieza de ânimo) tem sido relacionado pela jurisprudência mais com a conduta prévia do homicida, que de forma calma mas determinada decide tirar a vida a outrem, do que com o seu comportamento posterior aos factos criminosos. No presente caso, os quatro disparos sobre a vítima, com uso de arma de fogo que o arguido manejava por hábito profissional, em evidente posição de superioridade, dois deles à queima roupa, encontrando-se a vítima sob o efeito do álcool, sem qualquer motivo, desinteressando-se completamente sobre o estado em que a deixou, gemendo com dores, pois fora atingida em órgãos vitais, revela uma completa insensibilidade, roçando mesmo o total desprezo pela vida do seu semelhante. Trata-se de conduta revestida de especial censurabilidade, mesmo não se dando como demonstrada a frieza de ânimo, tal como descrita na alínea i) do n.° 2 do artigo 132.º, do CP. (Ac. do STJ de 9.2.00, Processo n.º 990/99)
- Age de modo a revelar tanto na preparação, como na execução do crime, especial censurabilidade ou perversidade, movido por "motivo fútil" e com "frieza de ânimo", o arguido que não estando habilitado a conduzir veículos automóveis, após ocasionar um acidente de viação, ressentido e desagradado com o facto de não lhe ter sido permitido retirar a sua viatura do local sem que alguém se responsabilizasse pelos danos por si causados, já depois dos seus padrinhos terem resolvido pacífica e serenamente o problema, no espaço de uma hora, após abandonar o local do acidente, dirige-se a casa, mune-se de uma espingarda de caça, desloca-se a casa do outro condutor acidentado, sai da viatura, e mesmo tendo-lhe sido recomenda calma pela sua madrinha, que com o seu marido aí se encontravam por outros motivos e que o avistara, apoia a arma no tejadilho da viatura em que se deslocara, e sem nunca pronunciar uma palavra, ao divisar o outro condutor, dispara em sua direcção a uma distância de sete metros, visando-lhe a região do tórax, assim lhe causando a morte. (Ac. do STJ de 2.3.00, Processo n.º 1192/99)
- Age com marcada frieza de ânimo o arguido, cuja família e a da vítima andavam inimizadas fazia já meses, com discussões e agressões mútuas de alguns dos seus elementos, que se aproveita do momento em que a vítima ficou sozinha, ocupada em cortar mato, sem possibilidade de reagir à inesperada aproximação daquele munido da pistola e de dele se defender, para, movido pela intenção de o matar, se aproximar até uma distância que lhe permitia tiro certeiro e alvejá-la atingindo-a por 3 vezes em zonas vitais, fugindo logo que a viu prostrada e já agonizante, sem que sequer se tivesse travado qualquer discussão. Na verdade, verifica-se frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana. (Ac. do STJ de 28.6.01, Processo n.º 1568/01-5).

4.3.4. No texto da sua motivação, o recorrente refere, a propósito, que da fundamentação quanto ao enquadramento a dúvida sobre a premeditação resulta uma dúvida que o deve beneficiar.

Embora resulte da decisão recorrida, que o Tribunal a quo que a proferiu não teve dúvidas quanto à incriminação da conduta do arguido, acaba este por colocar a questão de saber se é lícito o recurso ao princípio in dubio pro reo no domínio da interpretação das normas jurídicas.

Impõe-se assim considerar, se bem que perfunctoriamente essa questão.

4.3.4.1. O princípio in dubio pro reo

Dispõe a Constituição no n.º 2 do seu artigo 32.º 1 que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», preceito que se identifica em geral, com as formulações do princípio da presunção de inocência constantes da Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão, da Declaração Universal dos Direitos do Homem 2 (art.11.º, n.º 1 3), na Convenção Estropeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais 4 (art. 6.º, n.º 2 5) e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14.º, n.º 2).

Partilham os autores a ideia de que o seu fundamento reveste natureza política, decorrendo de uma concepção dos direitos humanos nascida com a revolução francesa. O princípio da presunção de inocência constitui, assim, uma decorrência dos direitos à liberdade e à dignidade, à luz dos quais a possibilidade de submeter a consequências penais alguém que não praticou qualquer tacto criminoso, traduz uma situação intolerável e um limite absoluto à prossecução dos fins estaduais de administração da justiça 6.

O princípio da presunção de inocência encerra uma ponderação cuja necessidade resulta da aceitação e do reconhecimento de que a verdade processual afasta-se, em muitos casos, da verdade histórica, por esta ser, em muitas situações, inatingível ou, pelo menos, não demonstrável.

Em sede de processo civil, as situações em que não se logra atingir um juízo de certeza, em que o julgador se vê perante um impasse que, não podendo ser denegada justiça, são solucionadas através das regras de distribuição do ónus da prova.

«Em processo penal, a justiça, perante a impossibilidade de uma certeza, encontra-se na alternativa de aceitar, com base em uma probabilidade ou possibilidade, o risco de absolver um culpado e o risco de condenar um inocente. A solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar-se o risco de absolvição do culpado e nunca o da condenação de um inocente.» 7.

O princípio da presunção de inocência surge na sua formulação inicial a do princípio in dubio pro reo, para resolver este dilema. Entre o risco de condenar um inocente e o risco de absolver um culpado, o princípio da presunção de inocência impõe claramente a opção de, fazendo prevalecer o respeito pela dignidade humana sobre os interesses da perseguição penal, assumir o segundo risco e nunca o primeiro.

O princípio in dúbio pro reo constitui «uma das garantias mais importantes da liberdade individual face à pretensão punitiva do Estado, cujo fundamento considera assentar, por um lado, numa concepção optimista do Homem, ligada ao pensamento de Rousseau e, por outro lado, no valor supremo que a liberdade e a honra assumem para o Homem, de tal forma que não poderão ser-lhe retirados enquanto persistir a dúvida quantia à justiça e ao bem-fundado desse acto». 8

Conforme varia a maneira segundo a qual cada autor perspectiva, no âmbito do processo penal, o equilíbrio entre, por um lado, o respeito pelos direitos humanos e, por outro lado, o interesse na perseguição penal, assim é diverso o alcance atribuído a este princípio.

A principal divergência situa-se na determinação do alcance do princípio da presunção de inocência, nas sua relação com o princípio in dubio pro reo" 9 em que surgem várias hipóteses quanto ao conteúdo do princípio da presunção da inocência. 10

Há autores que apresentam a presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo como sinónimos; outros atribuem àquela presunção um conteúdo mais amplo 11. Castanheira Neves separa completamente os dois princípios afirmando que a presunção de inocência traduz uma exigência de natureza política, enquanto o princípio in dubio pro reo tem uma justificação exclusivamente jurídico-processual 12.

Como corolários do princípio da presunção de inocência 13 são apresentados os princípios da investigação 14 15 16, livre apreciação da prova, celeridade processual e proibição da estatuição de presunções de culpa 17.

«O princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa». 18

Mas o princípio in dubio pro reo surge também, como se viu, relacionado à ausência de ónus da prova 19 em processo penal 20.

Com efeito, o Estado não pode prescindir, em processo penal 21, duma averiguação, o total do objecto do processo, com o correspondente encargo para o Tribunal de averiguação da verdade material. Não sendo um fim legítimo a condenação, baseada em mera probabilidade, a incerteza dos factos não consente a sua divisão, para distribuição do ónus de prova, consoante a parte a que lhe aproveita.

Afirma-se então que «o princípio in dubio pro reo não é distinto, conforme se tenha em conta factos extintivos ou constitutivos da infracção, e só funciona em relação às provas, nunca ao enquadramento jurídico.» 22

4.3.2.2. Mas vejamos mais de perto o princípio in dubio pro reo.

Foi tal princípio enunciado por Stubel, no século XIX, constituindo um princípio probatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto, tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido.

«Nas suas origens, o princípio teve sobretudo o valor de reacção contra, os abus os do passado e o significado jurídico negativo de não presunção de culpa. No presente, a afirmação do princípio, quer nos textos constitucionais, quer nos documentos internacionais, ainda que possa também significar reacção aos abusos do passado mais ou menos próximo, representa sobretudo um acto de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda a sociedade livre» 23.

O princípio traduz o correspectivo do princípio da culpa em direito penal 24, ou "a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena." 25.

Como vimos já, Castanheira Neves 26 entende que o princípio in dubio pro reo tem exclusivamente uma justificação jurídico-processual, não sendo o resultado de uma exigência político-jurídica traduzida pela presunção de inocência.

É relativamente ao princípio in dubio pro reo, especificamente direccionada para a resolução de uma dúvida, que se tem colocado a questão de saber se o seu alcance se restringe à dúvida sobre a prova da matéria de facto, ou se poderá intervir também em caso de dúvida na interpretação das normas penais.

Como informa Helena Bolina, a doutrina parece ser quase unânime no entendimento de que o princípio in dubio pro reo, não tem quaisquer reflexos ao nível, da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, urna vez que este tem reflexos exclusivamente ao nível da apreciação da matéria de facto.

A dúvida que o julgador está vinculado a resolver favoravelmente ao arguido é, assim, uma dúvida relativa aos elementos de facto - quer sejam pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer sejam factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão de: - ilicitude ou da culpa - e não sobre a interpretação da lei 27.

Eduardo Correia 28, não obstante partir da afirmação de que em caso de "dúvida sobre o significado das normas, deve (...) o intérprete socorrer-se de todos os elementos que permitam a averiguação da verdadeira vontade do legislador", parece admitir que, se depois dessa tarefa se continuar em presença de duas interpretações contrárias de valor igual, se prefira aquela que menos limite a liberdade. Esta solução, porém, é propugnada tendo em consideração "o princípio de que a liberdade é a regra e a limitação a excepção", devendo, na aplicação da lei criminal, preferir-se, em caso de dúvida, "a solução que traga uma menor limitação da liberdade", o que inculca estar-se perante a aplicação de um princípio de natureza diferente do in dubio pro reo.

«Esta é também a solução defendida por aquele autor nos casos em que "a situação de facto sugere a aplicação de vários preceitos sem que a prova mostre claramente se se verificam os elementos de um ou de outro" . Todavia, nesta situação, não se trata já da interpretação de normas penais, mas antes de dúvida quanto à verificação dos factos e, sendo assim, parece cair, claramente, no âmbito da aplicação do princípio in dubio pro reo.» 29.

A fechar o estudo a procedeu, Helena Bolina conclui, além do mais 30, que:

«Se entendeu que o princípio da presunção de inocência excede em significado e consequências o princípio in dubio pro reo, constituindo este apenas um critério de decisão em caso de dúvida quanto à verificação dos factos. Se o princípio da presunção de inocência impõe, neste caso, uma decisão absolutória, identificando-se, nessa medida, com o princípio in dubio pro reo, excede-o, manifestamente, quando determina que a dúvida deva surgir em determinadas circunstâncias e que, como reverso da medalha, a certeza corresponda a uma verdade material e não meramente ficcionada.»

E, na consonância de autores que acima se referiu, sublinha-se «que se não trata de interpretação de normas legais; mas de simples decisão em matéria de facto, A incerteza, por exemplo, sobre o alcance duma amnistia, é um problema de interpretação da lei; só a dúvida sobre a existência de factos concretos é um problema de prova.» 31.

«O princípio do in dubio pro reo é um princípio que tem a sua particular importância em termos de uma questão de facto. Aliás, ele só se aplica em face de uma questão de facto, não se aplica, em princípio, em face de uma questão de direito.» 32.

«Com o sentido e conteúdo referido o princípio in dubio pro reo vale só, evidentemente, em relação à prova da questão-de-facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão-de-direito: aqui a única solução correcta residirá em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto» 33.

«Note-se que se não trata de interpretação de normas legais; mas de simples decisão em matéria de facto. A incerteza, por exemplo, sobre o alcance duma amnistia, é um problema de interpretação da lei; só a dúvida sobre a existência de factos concretos é um problema de prova» 34.

«O princípio (da presunção de inocência do arguido) opera intra-processualmente no sentido de isentar o arguido de qualquer ónus da prova, isenção essa que produz efeito realmente benéfico para si através do princípio in dubio pro reo. O qual por sua vez se funda logicamente na dita isenção» 35.

«É princípio probatório, isto é "refere-se apenas à decisão sobre a prova dos factos, e não à interpretação e aplicação do direito criminal" 36.

«É um princípio probatório, refere-se apenas à decisão e à prova dos factos, e não à interpretação e aplicação do direito» 37.

«O princípio in dubio pro reo (...) só funciona em relação às provas, nunca ao enquadramento jurídico.» 38.

«O princípio in dubio pro reo pretende responder ao problema da dúvida na apreciação judicial dos casos criminais. Não da dúvida interpretativa, na aferição do sentido da norma (que aliás pode surgir e surge independentemente da actividade jurisdicional), mas da dúvida sobre o facto, tipicamente forense» 39.

«Quando nos referimos al princípio pro reo, en realida no se está haciendo referencia a una cuestión de interpretación de la norma penal, sino que se trata de un criterio rector referido a lavatoración de las pruebas y a la apreciación de los hechos que se plantea durante el proceso penal quando aquélios no aparecen de forma clara o indubitada.» 40.

Mas, como adiantamos e é problemática diversa, o princípio in dubio pro reo aplica-se às causas de exclusão da ilicitude, da culpa e da pena, e portanto também às chamadas condições objectivas de punibilidade 41 42.

Finalmente, importa referir a possível incidência substantiva do princípio em análise.

«De distinguir cuidadosamente do âmbito de incidência do princípio in dubio pro reo são os casos em que o juiz não logra esclarecer, em todas as suas particularidades juridicamente relevantes, um dado substrato de facto, mas em todo o caso o esclarece suficientemente para adquirir a convicção de que o arguido cometeu urna infracção, seja ela em definitivo qual for. Exemplo: o juiz convence-se que o arguido cometeu um crime patrimonial, embora não consiga determinar, para além de toda a dúvida razoável, se os elementos de facto integram um furto ou um abuso de confiança.

Nestes casos ensina-se ser admissível, dentro de certos limites, uma condenação com base em uma comprovação alternativa dos factos 43. Se assim deve ser ou não constitui porém, claramente, problema que extravasa do âmbito processual, para ir radicar na interpretação dos tipos aplicáveis, à luz da função de garantia que jurídico-constitucionalmente lhes cumpre. E pois um problema próprio do direito penal substantivo, de que aqui se não deve curar.» 44, 45, 46

Mas. como sugere Jescheck 47, a determinação alternativa surge como excepção ao princípio in dubio pro reo e não sua afirmação.

Escreve ele: «o princípio in dubio pro reo, tal como o problema da determinação alternativa, pertence em primeiro lugar ao Direito processual, pois ambos se referem à questão de saber até que ponto as constatações de facto alcançadas no processo penal têm de estar determinadas para poder suportar uma condenação. Mas, esta problemática oferece uma faceta jurídico-material. A admissibilidade da determinação alternativa entre vários tipos penais, como excepção ao princípio in dubio pro reo resolve-se segundo a relação jurídico-material desses tipos entre si. Acresce que, o in dubio pro reo e a determinação alternativa hão-de ser considerados como o correspondente jurídico-processual da função material de garantia da lei penal: enquanto que o princípio da legalidade protege toda a pessoa contra a possibilidade de ser castigada por urna acção cuja punibilidade e pena não se encontrassem legalmente estabelecidas antes da sua comissão, o princípio in dubio pro reo completa-o com o dogma "não há pena sem a prova do facto e da culpabilidade". A determinação alternativa, por sua vez, modifica, este princípio ao autorizar em certos casos a condenação baseada numa constatação alternativa dos factos.».

Deste percurso parece dever concluir-se que, numa questão como a que vem sugerida, mais do que colocada, no presente recurso, em que está em causa a qualificação jurídica de uma determinada conduta, questão de direito envolvendo a interpretação das normas que tipicam a conduta em causa, não é licito recorrer ao princípio in dubio pro reo, ou a eventual decorrência substantiva do mesmo, tanto mais que, como se adiantou, nenhuma dúvida expressaram as instâncias, nem resulta da matéria de facto provada.

4.4. Na conclusão 6.ª da motivação, mais do que no próprio texto, suscita o recorrente a questão da qualificação da burla, pelo valor, ao escrever: «só uma análise meramente automática e matemática poderá determinar a qualificação do crime de burla como sendo de burla qualificada, tendo em conta o valor correspondente a 2.500.000$00».

No entanto, não só essa agravação é inevitável face à letra da lei, pois tem hoje um pendor objectivo, diversamente do que sucedia com o texto original do C. Penal, como a própria impugnação do recorrente se mostra deduzida em sede de iure constituendo, totalmente desapoiada de iure condito.

Não merece, pois, essa censura, a decisão recorrida.

4.5.1. Impugna igualmente o recorrente a medida concreta das penas parcelares, pretendendo que não lhe deverá ser aplicada uma pena superior a 12 anos devendo a mesma ser encontrada entre os 8 e os 12 anos, bem como aos crimes de burla e de detenção ilegal de arma de defesa não deverão ser aplicadas penas privativas da liberdade, pois não contribuem para os fins de prevenção (conclusões 4.ª e 9.ª), pois que a aplicação de 20 anos de prisão pelo do crime de homicídio qualificado, não teve em devida consideração os factos provados (n.ºs 52 a 57 de facto) (conclusão 3.ª)

Ao determinar-se a prisão efectiva para o crime de burla qualificada, qualificação, devia ter-se em conta que o fim de prevenção geral, tendo em conta o concurso de crimes, é assegurado no que se refere ao crime de burla se de posse ilegal de arma de defesa, pela medida aplicada ao crime de homicídio (conclusão 5.ª).

Finalmente - diz -, o douto acórdão baseia-se em considerações sem suporte técnico ou cientifico para determinar a medida das penas, quando refere que o arguido tem "personalidade mal formada", baseando-se para esta análise na negação do arguido de parte dos factos, penalizando o arguido por um acto que resulta do seu direito de defesa, violando assim as normas penais anteriormente referidas (artigos 70º e 71º) do Código Penal, bem como o direito à sua defesa (conclusão 8.ª).

Deve ter-se presente que se trata de um recurso de revista, com as limitações que daí advêm.

Com efeito, o recurso respeitante à medida concreta da pena aplicada visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, podendo o Supremo Tribunal de Justiça 48 dele conhecer, por se dever ter por afastada a concepção da medida da pena concreta, como a "arte de julgar" tributária de plena discricionariedade judicial, em cujo processo de individualização interviriam, coeficientes de difícil ou impossível racionalização.

Na verdade, a escolha e a medida da pena é hoje levada a cabo pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito.

No recurso de revista pode-se sindicar a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite ou da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada 49.

Quanto à determinação da pena concreta escreve-se no acórdão recorrido:

«2. Na determinação da medida das penas parcelares há que ter em conta as penas abstractas de:

- prisão de 12 a 25 anos para o crime de homicídio qualificado;

- prisão de 1 mês a 5 anos ou multa de 10 a 600 dias para o crime de burla qualificada;

- prisão de 1 mês a 2 anos ou multa de 10 a 240 dias para o crime de detenção ilegal de arma de defesa;

penas estas estabelecidas pelas respectivas normas incriminadoras, em conjugação com o preceituado nos nºs 1 dos artº 41º e 47º.

Considerando que a pena não privativa da liberdade não realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades de punição, nomeadamente a protecção dos bens jurídicos que se pretendem acautelar com aquelas incriminações, ao abrigo do artº 70º opta-se, em relação aos crimes de burla qualificada e detenção ilegal de arma de defesa, por impor ao arguido uma pena privativa da liberdade.

Tomar-se-ão ainda em consideração os critérios constantes do artº 71º, nomeadamente ponderando: a culpa do arguido por ter agido como agiu, quando podia e devia ter agido de modo diverso, sendo de qualificar tal culpa como muito intensa, principalmente no crime de homicídio; as exigências de prevenção geral, que são muito fortes no crime de homicídio, pois a norma punitiva protege o bem jurídico mais valioso e, por outro lado, a perpetração de crimes contra a vida tem vindo a aumentar gradualmente e de grau médio nos restantes ilícitos; as exigências de prevenção especial, que são sempre de acautelar; o grau de ilicitude do facto, modo de execução e suas consequências, atentos os valores jurídicos ofendidos, mormente no crime de homicídio, em que a vida, o bem jurídico mais importante, foi violado pelo arguido, mas também sendo de ponderar o dano patrimonial causado; o dolo directo e intenso por parte do arguido, quer em relação ao crime de homicídio quer quanto ao crime de burla face ao estratagema engendrado para enganar a vitima, a qual era pessoa de sua confiança; o dolo directo; os fins que motivaram a conduta do arguido e que não o abonam, pois radicam, em última análise, numa ideia de solucionar problemas materiais mediante um completo desprezo por bens essenciais como a vida; as condições pessoais do arguido, aproveitando-lhe uma confissão parcial dos factos, embora de pouco relevo, pois o arguido apenas confessa o que não pode negar; não olvidando que beneficia ainda de uma colaboração parcial com as autoridades policiais na recolha de provas, que é primário e tem um comportamento anterior aos factos a qualificar de normal, em termos sociais, profissionais e familiares.

Tudo devidamente ponderado, tem-se por ajustadas as seguintes penas parcelares: 20 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, 2 anos de prisão pelo crime de burla qualificada e 1 ano de prisão pelo crime de detenção ilegal de arma de defesa.

3. Encontrando-se os crimes acima apurados como cometidos pelo arguido em relação de concurso de crimes, pois foram cometidos antes de qualquer deles ser objecto de uma decisão judicial, impõe-se condenar este arguido numa pena única.

A determinação desta será feita considerando a globalidade dos factos, atrás descritos e que por isso nos dispensamos de aqui repetir, bem como a personalidade do arguido, que se revelou muito mal formada, sendo um profundo indicador disso a sua negação dos factos e a falta de arrependimento, isto em cumprimento do estatuído no nº 1 do artº 77º, sendo ainda de ponderar os limites consignados no nº 2 do mesmo preceito legal, dos quais resulta uma pena mínima de 20 anos de prisão e uma pena máxima de 23 anos.

Assim, tudo equacionado, cremos adequada a pena única de 21 anos e 6 meses de prisão.»

Vê-se, pois, que o douto acórdão recorrido fez correcta aplicação dos normativos aplicáveis, tendo em consideração de forma adequada os elementos a que podia e devia atender e os fins das penas, situando-se a pena aplicada dentro da submoldura que o mínimo exigido pela prevenção geral de integração e o máximo consentido pela culpa concreta do agente desenham. E não pode afirmar-se no caso sujeito a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada, que poderia, como se viu, fundar a intervenção, neste domínio, do STJ.

Na verdade, as circunstâncias do caso não permitem que se afirme em relação ao crime de burla e de uso de arma proibida a suficiência de uma pena não detentiva. Por um lado, foi a burla que esteve na génese do homicídio e, por outro, foi a arma que serviu para perpetrar esse mesmo crime.

Depois, não se pode recorrer à pena de prisão efectiva infligida por um outro crime que permite afirmar a suficiência da medida substitutiva para os restantes crimes com aquele relacionados. Aliás, essa circunstância (de ter que cumprir uma longa pena de prisão por outro crime) aponta antes no sentido inverso, retirando sentido ressocializar e suficiente à pena de multa.

Diferentemente do pretendido pelo recorrente, a aplicação de 20 anos de prisão pelo do crime de homicídio qualificado, teve em devida consideração os factos provados, dos quais resulta efectivamente uma personalidade do arguido não formada no respeito pelos valores protegidos pelo ordenamento penal.

Só a confissão parcial dos factos e a colaboração parcial com a polícia, a primaridade e o seu comportamento anterior é que permitiram a fixação das penas impugnadas.

4.5. Por fim impugna o recorrente o valor das indemnizações cíveis, nos seguintes termos:

O montante da indemnização apresenta-se violento, tendo em conta que o arguido não possui condições financeiras no presente e no futuro para pagar (conclusão 10.ª), não foi tida em consideração a sua situação financeira e do seu agregado familiar que dele depende na totalidade, e a circunstância de os lesados serem pessoas que possuem uma situação financeira estável (conclusão 11.ª)

Pelo que deverá o montante da indemnizações determinadas no pedido cível ser equitativamente reduzido para valores humanamente comportáveis.

Dispõe o art. 129.º do C. Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, sendo certo que à questão dos danos não patrimoniais referem-se fundamentalmente os art.ºs 496.º e 494.º (este por remissão do art.º 496.º, n.º 3), do C. Civil.

Assim, "o montante da indemnização (por danos não patrimoniais) - como será o caso do reclamado "direito à vida" - será fixado equitativamente" (art. 496.º, n.º 1, do C. Civil), isto é, "tendo em conta todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida" 50 .

Donde que, tal como escapam à admissibilidade do recurso "as decisões dependentes da livre resolução do tribunal" (art.s 400.º, n.º 1, b), do CPP e 679.º do CPC), devam os tribunais de recurso limitar a sua intervenção - em caso de julgamento segundo a equidade (em que «os critérios que os tribunais devem seguir não são fixos») 51 - às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, «as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida» 52.

São conhecidas as dificuldades que nesta matéria se colocam: «Nestes (danos não patrimoniais) a grandeza do dano só é susceptível de determinação indiciária fundada em critérios de normalidade. É insusceptível de medida exacta, por o padrão ser constituído por algo qualitativo diverso como é o dinheiro, meio da sua compensação.» «Aqui, mais do que nunca, nos encontramos na incerteza, inerente a um imprescindível juízo de equidade» 53.

Os critérios de equidade a que haverá que atender para o efeito, serão, exemplificativamente, o grau de culpabilidade do responsável, a sua situação económica e a do lesado e do titular do direito de indemnização, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, as flutuações do valor da moeda 54.

No caso, a indemnização agora impugnada foi adequadamente fixada, toda a vez que todos os itens da fixação concreta a que é lícito recorrer, nomeadamente a situação económica do arguido e os padrões jurisprudenciais correntes, apontam para o bom senso do decidido. Assim, os elementos disponíveis não consentem a este tribunal de revista qualquer juízo negativo quanto ao eventual afrontamento pelo tribunal a quo (que, a ter ocorrido, não seria, ainda assim, manifesto) das «regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida».

Quanto à matéria de lucros cessantes, a decisão recorrida remeteu para a liquidação em execução de sentença, pelo que não está em causa agora esse aspecto.


V

Pelo exposto, os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

O recorrente pagará, taxa de justiça que se fixa em 4 UC para a acção penal; e as custas da acção cível.

Lisboa, 14 de Novembro de 2002

Simas Santos,

Abranches Martins,

Oliveira Guimarães,

Dinis Alves.

_________________________________
1 - Sob a epígrafe "garantias do processo criminal".
2 - De 10.l2.48, publicada no Diário da República, Iª Série de 9.9.78.
3 - «Everyone charged with a penal offence has the right to be presumed innocent until proved guilty according to law in a public trial at which he has had all the guarantees necessary for his defensor».
4 - De 4.4.50, ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro.
5 - «Everyone charged with a criminal offence shall be presumed innocent until proved guilty according to law».
6 - «Enquanto se torne como equivalente do princípio in dubio pro reo, a «presunção doe inocência» pertence sem dúvida aos princípios fundamentais do processo penal em qualquer Estado-de-direito.» - Figueiredo Dias, loc. cit.
7 - Cavaleiro de Ferreira (Curso de Processo Penal. vol. 1º, 1986, pág. 216.
8 - Eduardo Correia, Les preuves en droit pénal portugais, RDES, ano IV, n.º l, págs. l7 e 22.40
9 - Cavaleiro de Ferreira II 316: «Dalguma maneira uma presunção de inocência é o próprio princípio ‘in dubio pro reo’». Cf. também Kennv - Turner 456 SS. O G. Bettiol P. 2.º, cap. III n. 4.
10 - Cfr. Helena Bolina, op. cit.
11 - Como sucede com Rui Pinheiro e Artur Maurício, «Sobre a presunção de inocência do arguido», in Constituição e Processo Penal, 12l-l4l e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, 3ª Edição, nota V ao art. 32.º.43
12 - Sumários de Processo Penal, pág. 56 e 57.
13 - Como escrevem Vital Moreira e Gomes Canotilho «não é fácil determinar o sentido do princípio da presunção de inocência do arguido (a.º 2). Considerado em todo o seu rigor verbal, o princípio poderia, levar à própria proibição de antecipação de medidas de investigação e cautelares (inconstitucionalizando a instrução criminal, em si mesma) e à proibição de suspeitas sobre a culpabilidade (o que equivaleria à impossibilidade de valorização das provas e aplicação e interpretação das normas criminais pelo juiz). Como conteúdo adequado do princípio apontar-se-á: (a) proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; (b) preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do processo; (c) exclusão da fixação de culpa em despachos de arquivamento; (d) não incidência de custas sobre arguido não condenado; (e) a proibição da antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares (ctr. AcTC n.º 198/90); (f) a proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal.» - loc. cit.
14 - Não parece porém que, para lograr a, sua correcta compreensão jurídica, seja necessário ou sequer aconselhável (bem pelo contrário) instruir um «ónus da prova» em processo penal, que recairia por inteiro sobre a acusação. Tal representaria sempre, pelo menos, uma arbitrária transposição para o processo penal de categorias dogmáticas de processo civil que naquele não devem encontrar guarida. Pois não é exacto que uma absolvição por falta de prova constitua, em processo penal, uma decisão desfavorável à acusação, quando esta seja, como é normalmente, acusação pública (representada em princípio pelo MP). Não é função do MP, com efeito, sustentar «a todo o custo» a acusação contra o arguido, mas sim auxiliar o juiz na descoberta da verdade material; não recai sobre aquele, digamos assim, um «dever de acusação», mas antes um «dever de objectividade» ele não é parte, pelo menos no sentido de que mão possui um interesse necessariamente contraposto ao do arguido. E por isso é que, mais do que equívoco, acaba por ser erróneo falar de ónus da a prova material a cargo do MP. A absolvição por falta de prova, em todos os casos de persistência de dúvida no espírito do tribunal, não é consequência de qualquer ónus da prova mas sim da intervenção do princípio in dubio pro reo.» - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I.46
15 - No sentido da inexistência de ónus da prova em processo penal tem-se pronunciado o STJ. Cfr. os acs. de 28.10.92, BMJ n.º 420, p. 269, de Ac. de 15.12.83, BMJ n.º 322, p. 281, Ac. de 28. 10.92, BMJ n.º 420, p. 269 de 11.1.95, proc. n.º 48395, de l 8.2.93, proc. n.º 43031, de 24.6.93, proc. n.º 43753.
16 - «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer a pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam considerar-se como «provados». E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non líquet na questão da prova - não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (art. 110.º, n,º 2 do EJ e art. 286.º do CP), - tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o principio in dubio pro reo». Figueiredo Dias, op. cit.
17 Cfr. Helena Bolina, Razão de Ser, Significado e Consequências do Princípio da Presunção de inocência (art. 32º, n.º 2 da CRP), Boletim da Faculdade de Direito 70(1994), p. 433-46 I,
18 - Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 203.
19 - A doutrina considera normalmente o conceito de ónus de prova em dois aspectos: pessoal - consiste no dever das partes em produzir prova, material - sujeição as consequências desfavoráveis resultantes da falta de prova.
20 - Pelo que não podem funcionar em processo penal o princípio dos artigos 342.º e 346.º do C. Civil.
21 - Em que como se dirimem interesses fundamentais do viver em sociedade.
22 - Gil Moreira dos Santos, Noções de Processo Penal. 2ª Ed. Pág. 442-25 e Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 2, pág. 326
23 - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, pág.40
24 - No entender de Figueiredo Dias, loc. cit.
25 - Na formulação de Gomes Canotilho e Vital Moreira, loc. cit.
26 - Sumários de processo criminal, 1967-68, págs. 55 v. 56.
27 - Nesse sentido escreve Castanheira Neves, (Sumários.... op. cit, pág. 59): "É um princípio probatório, refere-se apenas à decisão e à prova dos factos", e não a interpretação e aplicação do direito".
28 - Direito Criminal, 1968, vol 1, pág. 150.
29 - Cfr. a este propósito, Miguel N. Pedrosa Machado, O princípio in dubio pro reo no novo Código de Processo Penal, notas 15 e 19, ROA, ano 49, p. 594
30 - São as seguintes as conclusões totais: «conclui-se que o princípio prossegue este objectivo simples, mas essencial na caracterização da função do processo penal, que e o de garantir que, no desempenho da sua actividade repressiva, o Estado não submeta a consequências penais quem, na verdade, não cometeu qualquer crime.
Este objectivo, fundado nos direitos à liberdade e a dignidade, só é verdadeiramente atingido, se o processo penal se configurar de forma a garantir que, na medida do admissível à luz daqueles direitos, seja uma verdade de natureza material a basear a decisão.
Por esse motivo, se entendeu que o princípio da presunção de inocência excede em significado e consequências o princípio in dubio pro reo, constituindo este apenas um critério de decisão em caso de dúvida quanto à verificação dos factos. Se o princípio da presunção de inocência impõe, neste caso, uma decisão absolutória, identificando-se, nessa medida, com o princípio in dubio pro reo, excede-o, manifestamente, quando determina que a dúvida deva surgir em determinadas circunstâncias e que, como reverso da medalha, a certeza corresponda a uma verdade material e não meramente ficcionada.
Entendeu-se, assim, que o princípio da presunção de inocência, impõe a vigência, no processo penal, dos princípios da investigação e da livre apreciação da prova.
Por outro lado, o princípio não pode deixar de se reflectir no tratamento dado ao arguido, ao longo do processo, por forma a que este não represente, desde o inicio, um juízo de culpabilidade que, não só dificultará uma decisão imparcial, no momento da indagação sobre a verificação dos factos, como também, mesmo no caso de decisão absolutória, fará recair sobre o arguido absolvido uma marca indelével de culpabilidade.
A manifestação mais saliente deste reflexo, é a exigência de celeridade processual que a própria Constituição, no n.º 2 do seu art. 32.º, liga ao princípio da presunção de inocência.
Finalmente, fora do processo penal, o princípio reflecte-se também no direito penal substantivo, constituindo uma proibição, dirigida ao legislador ordinário de estatuição de presunções de culpa, por desencadearem uma inversão do sentido da decisão, em caso de dúvida acerca da verificação dos factos.»
31 - Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 2, pág. 326.
32 - Frederico Isasca, Apontamentos de Direito Processual Penal, Teresa Pigarro Beleza e outros, pág. 87.
Este Autor, numa posição próxima da de Eduardo Correia a propósito da incidência já não do princípio in dúbio pro reo, escreve: «O segundo princípio que deriva da presunção da inocência é o princípio "in dubio pro libertatis", isto é também um corolário lógico da presunção de inocência e significa que na duvida, e aqui eu diria que esta dúvida não deverá ser só uma dúvida que funciona em termos de questão de facto, mas uma dúvida que se possa gerar em termos de questão de direito. E claro que quando estou a pensar existir uma dúvida em termos de questão de direito é pressuposto que o juiz tem conhecimentos necessários e suficientes para não poder ter duvidas em direito; o juiz nunca pode ter dúvidas em questões de direito. Se as têm a última coisa que lhe resta e ir estudar, estudar mais direito até sanar as suas dúvidas. Mas na medida em que me parece aplicável este princípio "in dubio pro libertatis" na questão de direito será, por exemplo, numa questão em que, suponham que concorrem de uma forma dificilmente ultrapassável circunstâncias que permitem, por exemplo, ou a qualificação de um determinado facto ou a agravação de um determinado facto, pensem no homicídio qualificado e no homicídio simples, por exemplo, suponham que o pai mata o filho, ou o filho mata o pai. A. circunstância da relação de ascendência é uma circunstância que nos termos do art. 132º do CP. e susceptível de qualificar o homicídio. Agora suponham que o filho matou o pai porque o pai estava gravemente doente, tinha muita pena dele, estava a sofrer muito, tinha uma doença horrorosa. Isto será uma circunstância privilegiante do art. 133º CP. Pode assim aqui suscitar-se a questão não de prova de qualquer um destes factos mas provados os dois factos o juiz pode encontrar-se face a uma decisão difícil de tomar, no sentido de privilegiar ou de agravar. Penso que neste sentido ele deve decidir-se pela punição menos grave.»
33 - Questão é saber se não pode também dar-se ao princípio in dubio pro reo uma certa incidência substantiva, quer dizer, ao nível da interpretação dos tipos legais de crime; pela afirmativa Eduardo Correia I, 150 ss, Parece, porém, que tal só deverá suceder nas hipóteses de comprovação alternativa dos factos - Figueiredo Dias, op. cit., pág, 215.
34 - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, pág. 40
35 - José Souto de Moura, A questão da presunção de inocência do arguido, Revista do M.º P.º, n.º 42, p. 47.
36 - Miguel N. Pedrosa Machado, O princípio in dubio pro reo e o novo Código de Processo Penal, ROA, ano 49, p. 594.
37 - Escreve Castanheira Neves, Sumários..., op. cit., pág. 59.
38 - Gil Moreira dos Santos, Noções de Processo Penal, 2ª Ed. Pág, 442-25.
39 - Escreve Cristina Líbano Monteiro a iniciar o artigo Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, BFD, Studia Ivridica n.º 24, p. 9.
40 - Gonzalo Quintero Olivares, Derecho Penal- Parte General, p. 135
41 - O STJ decidiu no acórdão de 15.12.83, BMJ n.º 322, p. 281 (dirimente da legitima defesa - Se o julgamento criar no tribunal dúvida razoável sobre a verificação de uma dirimente (v.g., a legítima defesa), deve o réu ser absolvido por torça do princípio «in dubio pro reo».)
42 - «Mas terá ele aplicação ainda no âmbito dos pressupostos processuais? Eis um dos mais difíceis problemas que neste enquadramento deve ser decidido.
A favor de uma resposta negativa podem invocar-se boas razões: por um lado, corno se terá visto, o princípio in dubio pro reo apresenta-se como o correspectivo processual do princípio da culpa, do princípio «não há pena sem culpa» (cf. por exemplo o art. 2.º do Projecto Eduardo Correia), relativamente ao qual os pressupostos processuais se mostram matéria absolutamente estranha; com efeito, o que nos pressupostos processuais está em jogo não e o interesse do arguido, mas a admissibilidade de um processo que até pode interessar àquele, para que nele demonstre a sua inocência. Nesta medida, pois, nem sequer se poderá falar aqui em uma decisão «favorável» ou «desfavorável» ao arguido.
Isto não significa, porém, que perante uma dúvida persistente sobre factos relevantes para a admissibilidade do processo (v, p. sobre se o procedimento criminal se encontra prescrito) não deva em regra preferir-se o seu arquivamento à sua prossecução, em homenagem ao conteúdo material de sentido ínsito no princípio da legalidade de toda a repressão penal; o que não deve é invocar-se, para justificar tal solução, o princípio in dubio pro reo, nem o interesse do arguido em uma decisão que lhe seja "favorável"» - Figueiredo Dias, loc. cit.
43 - Cf. Eduardo Correia I 151; em pormenor, mas negando a possibilidade, G. Bettiol, Sentaza penale di condanna e accertamento alternativi di fatti, Scritti giuridici I 202. Pretende-se ainda por vezes - mas sem razão - ver aqui uma consequência da «presunção de inocência»: Bouzal n. 1183. Cf. por último, sobre o assunto, W. Sax, Zur Wahl-festslellung bei Wahldentigkeit mehrerer Taten, 1956/745, Willms, Zum Begriff der «Wahlfestellung», Jz. 1962/628, J. Hruschka, Zur Logik und Dogmatik von Verurteilung aufgrund mehrdentiger Beweiser-gebnisse im Strafprozess. Jz 1970/637, G. Jakobs, Probleme der Wahlfestellung, GA 1971/277 e J. Wolter, Alternative end eindentige Verwrteelung auf mehrdeutiges Tatsachengrundlage im Strafrecht (1972). Nota original de Figueiredo Dias, op. cit.
44 - Figueiredo Dias, /Direito Processual Penal, I, págs. 218-219).
45 - Sobre a questão da chamada determinação alternativa no direito Espanhol concluindo pela sua inadmissibilidade, pode ver-se Gonzalo Olivares, loc. cit., p. 136.
46 - Para o direito Alemão ver H. H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, p. 1267
47 - Tratado de Derecho Penal, Pate General, p. 128.
48 - Cfr. Ac. do STJ de 30.11.00, proc. n.º 2808/00-5, do mesmo Relator.
49 - Cfr. Ac. do STJ de 23.11.00, proc. n.º 2766/00-5, do mesmo Relator
50 - Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. 1.º, anotação 6.ª ao art. 496.º
51 - Autores citados, ob. cit., anotação 1.ª ao art. 494.º
52 - Cfr. o Ac. do STJ de 29.11.01, proc. n.º 3434/01, relatado pelo Cons. Pereira Madeira e também subscrito pelo relator, que se seguirá de perto.
53 - Leite de Campos, A Indemnização Do Dano Da Morte, pág. 12
54 - Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5. ª ed., págs. 567.