LETRA DE CÂMBIO
TÍTULO EXECUTIVO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário


I - A época e o local de pagamento de uma letra são elementos não essenciais do título executivo.
II - Se a questão prejudicial do conhecimento da apelação da sentença, resultante da inexistência de título executivo, suscitada na apelação do despacho saneador, deixou de o ser e foi julgada insubsistente, há que
conhecer das questões consideradas prejudicadas e suscitadas no recurso da sentença, desde que haja elementos para tal.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Empresa-A. Limited, AA e BB, executados no processo de execução nº 81/99, 6º Juízo, 2.ª Secção do Tribunal Cível da Comarca do Porto, em que é exequente Empresa-B – Artigos para Calçado, Lda, vieram deduzir embargos de executado, pedindo que:
a) devem os presentes embargos ser admitidos e julgados procedentes e provados com todos os efeitos legais.
b) deve a obrigação assumida pelos executados AA e BB, ser declarada nula nos termos articulados pela exequente, ou seja, de que o aval é ao sacador porquanto, além do mais, não há aceitantes.
Tudo isto porque o documento que suporta a execução não contém o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada.
Por outro lado, não indica o lugar onde foi passado e falta a assinatura de quem emite a letra, do sacador.
Por fim, a tradução refere nome endereço do sacado que figurava ao lado dos carimbos e assinatura e não em cima, como por lapso (ou talvez não) se detecta na tradução junta pela embargada. E ao lado do nome e endereço do sacado temos dois carimbos e duas assinaturas:
- Empresa-A, Limited.
- Empresa-B – Artigos para Calçado Limitada.
Logo, existem dois sacados e não apenas um, sendo certo que como o documento não está aceite não se sabe qual dos co-sacadores é o responsável pelo pagamento de tal documento.
Acresce que a 1.ª embargante só estava vinculada neste acto escrito se, quem apôs a sua assinatura indicasse a qualidade em que o fazia, nomeadamente na eventual qualidade em que o fazia, nomeadamente na eventual qualidade de gerente - nº 4 do art. 260º do C.S.Comerciais.
A falta de requisitos impediu que o documento dado à execução, produza o efeito como título legítimo - art. 2º da Lei Uniforme relativa de Letras e Livranças - .

No documento que suporta a execução falta a assinatura de quem passa a letra ( sacador), logo não existe legitimidade nem interesse em agir, pois estamos na presença de dois sacadores e não de um só.
Aliás, o documento não está aceite, não está assinado pelo sacador ( não existe sacador), existem dois, não se sabendo quem está responsável pelo pagamento de tal documento.
De seguida, articula que o documento que suporta a execução, foi emitido por favor, pelo que não existe nenhuma relação subjacente ou fundamental entre a exequente e a 1.ª executada.
Por fim, referem que o segundo e terceiro avalistas assinaram o documento que suporta a execução no verso da mesma, mas não escreveram nem são do punho respectivo as palavras, aliás, dactilografadas “ Por aval à aceitante”, desconhecendo quem o fez.
As assinaturas no verso do documento, por força do disposto no art. 31º da L.U. presumem-se como a prestação do aval do sacador.
Aliás o documento que suporta a execução não está aceite, pelo que não existindo aceitante o aval dado pelo 2º e 3º executado é a favor do sacador.

Notificada para contestar a exequente impugna os factos articulados pelos embargantes e termina pedindo que os embargos sejam julgados totalmente improcedentes com todas as consequências legais e a primeira embargante seja condenada em multa como litigante de má- fé.
Após efectuadas as diligências necessárias foi concedido o apoio judiciário à primeira embargante e negado esse mesmo apoio aos segundo e terceiro embargantes.
Foi, de seguida, lavrado despacho saneador, no qual o Sr. Juiz “a quo” concluiu que as letras dadas à execução constituem título executivo, não se verificando a arguida ilegitimidade.
Ainda, neste despacho, o Sr. Juiz, por falta de pretensão fáctica, melhor, por falta de fundamentação fáctica da pretensão dos embargantes, desconsidera a alegação dos embargantes de que as letras dadas à execução são de favor, por não existir relação subjacente entre a exequente e a primeira executada.
Por fim, foram organizados os factos dados por assentes e a base instrutória.
Os embargantes não se conformando com o teor do despacho saneador dele vieram agravar para o Tribunal da Relação do Porto.
Vieram ainda reclamar da base instrutória.

A embargada respondeu.
O recurso atrás referido foi recebido como sendo de agravo a subir diferidamente.
Por a reclamação não ter ocorrido na audiência preliminar só era admitida no início da audiência de julgamento, pelo que foi ordenado o seu desentranhamento e devolução aos reclamantes.
Entretanto, as agravantes apresentaram atempadamente as suas alegações de recurso. O mesmo aconteceu com a agravada.
Instruída a acção teve lugar o julgamento que decorreu com observância de formalismo legal.
Na altura própria foi lavrado o despacho, onde o Sr. Juiz a quo respondeu à matéria de facto controvertida.
De seguida foi proferida sentença, na qual, o Sr. Juiz “ a quo” julgou os embargos improcedentes, ordenando o prosseguimento dos autos de execução.
Os embargantes apelaram da sentença.
O recurso foi recebido como tal.
Os apelantes e a apelada apresentaram as suas alegações.
No Tribunal da Relação do Porto foi proferido acórdão no qual se decidiu:
- Julgar procedente o recurso do despacho saneador (procedente) que se revoga.
- Julgar prejudicado o conhecimento do recurso da sentença.
- Julgar procedentes os embargos do executado e consequentemente extinta a execução.
Inconformada a embargada veio recorrer de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Admitido a recorrente apresenta as suas alegações, onde formula as seguintes conclusões:
A) Contém a letra junta com o requerimento inicial, de execução todos os requisitos essenciais para valer como tal;
B) Designadamente, e no que ao presente recurso concerne, o requisito enunciado na 2.ª parte do n.º 7 da L.U.L.L.- o local onde a letra é passada – está perfeitamente preenchido através do recurso às regras do art. 2º da L.U.L.L.;
C) No entanto, e como é aceite na generalidade da Doutrina, o local da emissão de uma letra de câmbio não é um requisito essencial para a sua validade como letra, sendo que as letras que não indiquem a época de pagamento, ou o lugar de pagamento, ou ainda a indicação de onde foram sacadas não carecem de ser preenchidas para se poder exigir ou fazer valer os direitos e as obrigações delas literalmente decorrentes.
D) Uma série de decisões acerca de matérias em tudo igual à presente conferiram um entendimento completamente antagónico do acórdão aqui em recurso.
E) Pelo que da decisão, ora em recurso, viola, entre outros, o disposto no art. 1º , 2º nº IV e 16º da L.U.L.L. e art. 813º do C. P. Civil.
F) Termina requerendo que seja revogado o acórdão recorrido, na parte aqui em crise, com as demais consequências legais.
Os recorridos não apresentaram alegações.
Cabe decidir.
É objecto deste recurso, analisar e decidir se as letras, que servem de título à execução embargada, têm os requisitos necessários para valerem como títulos executivos.
No art. 1º da L.U.L.L. indicam-se os requisitos que a letra deve conter.
No art. 2º da mesma lei diz-se expressa e taxativamente que “ O escrito em que faltar algum dos requisitos indicados no artigo anterior não produzirá efeito como letra, salvo nos casos determinados nas alíneas seguintes:
- A letra em que não se indique a época de pagamento entende-se pagável à vista.
- Na falta de indicação especial, o lugar designado ao lado do nome do sacado considera-se como sendo o lugar de pagamento, e, ao mesmo tempo o lugar de domicílio do sacado.
- A letra sem indicação do lugar onde foi passada considera-se como tendo-o sido no lugar designado ao lado do nome do sacador”.
Destes dois preceitos legais retira-se que, com excepção dos requisitos nºs 4 e 5 e 7 parte final do art. 9º, o escrito em que faltar qualquer um dos outros requisitos não produzirá efeito como letra.
Resulta, pois, sem margem para dúvidas que a letra tem requisitos essenciais para ser válida e consequentemente produzir efeitos como tal – os requisitos 1º, 2º, 3º, 6º, 7º 1.ª parte e 8º do art. 1º citado – e requisitos não essenciais, a que podemos chamar de circunstâncias, que não colidem com a sua validade e produção de efeitos, por a lei indicar entendimentos alternativos na sua falta - requisitos 4º, 5º e 7º 2.ª parte do mesmo art. 1.º - .

E bem se entende porquê.
Como ensina Ferrer Correia, Lições 3.º, 85 e 127 a letra de câmbio é um título de crédito à ordem, sujeito a determinadas formalidades, pelo qual, uma pessoa - sacador – ordena de outro - sacado – que lhe pague a si ou a terceiro – tomador – determinada importância, funcionando a entrega de título, após a sua subscrição, como elemento essencial da validade da obrigação.
É visível, pois, que os requisitos essenciais da letra têm a ver com a reprodução da relação jurídica cambiária, com especial incidência na palavra “ letra” inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redacção de título – por isso é que a lei é uniforme para todos os países que assinaram a respectiva convenção -; do mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada; a quem ou à ordem de quem deve ser paga; o nome do sacador e do sacado; e a data em que é passada.
Estes requisitos constam dos escritos, que constituem os títulos, que fundamentam a execução ora embargada e não foram postos em causa pelos embargantes.
Assim sendo, está formalmente verificada e provada a relação jurídico-cambiária configurada nas letras.
Nos embargos e designadamente no acórdão recorrido só são colocados em crise requisitos não essenciais das letras, como sejam o lugar da sua emissão e o lugar do seu pagamento.
A L.U.L.L. no art. 2º estabelece os mecanismos para colmatar as omissões desses requisitos.
Nas letras em questão encontram-se os elementos de facto necessários para determinar, quer o lugar da emissão, quer o lugar de pagamento das mesmas. Nesse ponto, sem formalismos excessivos porque desnecessários, fazemos nossas as considerações sintéticas da sentença da 1.ª instância.
É bom que se entenda que se deve ter o necessário rigor formalista na análise dos requisitos essenciais do escrito para o considerar como letra. Os princípios da literalidade e da abstracção assim o exigem.
No entanto, face às salvaguardas legais, esse formalismo deve ser reduzido na análise dos requisitos não essenciais, para não fazer perigar o direito do tomador da letra exercer o seu legítimo direito de ver pago o seu crédito.
Procedem, pois, as conclusões recursórias.
Mostram-se violados no acórdão recorrido os art.ºs 1º e 2º e 16º da L.U.L.L. e 813º do C.P. Civil.
É de confirmar a decisão da 1.ª instância.
O Tribunal recorrido não conheceu do recurso da sentença por o mesmo ter ficado prejudicado com a procedência do recurso de apelação – foi assim recebido pelo Ex.mo relator a fls. 694 - do despacho saneador.
Porém, revogado o acórdão recorrido e considerando-se as letras válidas e, por esse motivo, títulos executivos legítimos, há que conhecer da apelação da sentença, por haver elementos para isso, nos termos dos art.ºs 726º e 715º nº 2 do C.P.Civil.
Como se deixou referenciado o Sr. Juiz a quo julgou os embargos improcedentes, ordenando o prosseguimento da execução.

Os embargantes apelantes apresentaram as suas alegações, onde tiram as seguintes conclusões: -
A) Os documentos quando foram assinados no verso pelos recorrentes AA e BB não continham as palavras dactilografadas “ Por aval à aceitante”.
B) Tais palavras foram colocadas em momento posterior, por alguém que não os apelantes. –
C) O aval assim prestado é nulo.
D) Terminam requerendo que seja revogada a sentença, julgando-se nulo o aval prestado pelos ora recorrentes.
A recorrida embargada apresentou as suas alegações, onde pugna pela manutenção da sentença.
Cabe decidir.
Na sentença recorrida foi dado como provado o seguinte facto:
- O teor das letras dadas à execução, constantes de fls. 5, 12, 25 e 44 dos autos executivos, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
A base instrutória era constituída apenas por uma questão.
As palavras dactilografadas no verso das letras dadas à execução “ Por aval à aceitante” foram aí afectas em momento posterior ao da aposição das assinaturas do 2º e 3º executado?
A esta questão foi respondido “ Não provado”. –
Face ao facto provado e designadamente ao facto não provado é manifesto que, como se diz na sentença da 1.ª instância, os embargantes são avalistas das letras, sendo o aval prestado a favor do aceitante e não do sacador como pretendem.
Assim, atento o disposto no art. 47º da L.U.L.L., há que concluir que a embargada agiu correctamente ao instaurar a execução contra os ora embargante AA e BB.
Deste modo, bem andou o Sr. Juiz “ a quo” em julgar os embargos improcedentes e ordenando o prosseguimento da execução.
Improcedem as conclusões dos apelantes.

Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido e confirma-se o despacho saneador.
Por outro lado, julga-se improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se integralmente a sentença recorrida.
Custas em todas as instâncias pelos embargantes, que são recorridos na revista e apelantes na sentença.

Lisboa, 26 de Novembro de 2002

Barros Caldeira (Relator)
Faria Antunes
Lopes Pinto