COACÇÃO SEXUAL
IMPUTABILIDADE
REENVIO
Sumário

I - Nos termos do artigo 163.º do CPPenal, o juízo técnico ou científico inerente à prova pericial presume­se subtraído à livre apreciação do julgador, por isso que sempre que a sua convicção, como peritus peritorum, divergir do juízo contido na perícia deva fundamentar a divergência.
II - Se as atitudes de irresponsabilidade do arguido perante os seus actos, conscientes, se podem entender como de irresponsabilidade aparente, já a falta de ressonância ética ou de culpa, com um perfil de exibicionismo, ainda que "exibido" a posteriori, podem apontar para uma carência ou diminuição da imputabilidade.
III - Existe contradição entre parcelas da fundamentação, se, por um lado, o arguido é completamente responsabilizado pelos seus actos, mas por outro, se apresenta insusceptível de culpa ou com a culpa diminuída, tendo o Colectivo divergido das perícias realizadas, mas com uma fundamentação da divergência insuficiente ou contraditória.
IV - Do que resultou que o arguido apresentaria, segundo o texto da decisão, sinais de "irresponsabilidade", mas foi punido com maior severidade pela perigosidade que objectivou nos vários crimes do mesmo tipo já cometidos.
V - Vários preceitos do CPPenal, em casos complexos - e sê-lo-ão estes de apreciação de personalidades porventura com características psicopáticas, pela zona de fronteira em que caem -, apelam à colegialidade ou interdisciplinaridade das perícias.
VI - Verificada a existência dos vícios a que se referem as alíneas a) e b), do artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o STJ ordena o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à questão da imputabilidade e consequência advenientes.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I


1. No P.º comum n.º 24/02.3PBBGC, do 1.º Juízo da comarca de Bragança, mediante acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, com a intervenção do Tribunal Colectivo:
A, solteiro, servente, nascido a 16.09.78, na freguesia da Sé, concelho de Bragança, filho de ... e ..., e residente na Rua ..., Lote-..., Bragança, preso preventivamente no EP de Bragança;
sob imputação de autoria material, em concurso efectivo, de três crimes de "coacção sexual", sendo o primeiro e o terceiro em concurso aparente com dois crimes de "violação", sob a forma tentada, um crime de "sequestro" e um crime de "coacção e resistência sobre funcionário", pps., respectivamente, nos artigos 163º/1, 22º, 23º/1 e 2, 73º e 164º/1, 158º/1 e 347º, do Código Penal.
Por acórdão de 5 de Julho do corrente ano, o Colectivo deliberou condenar o arguido:
- Como autor de um crime de coacção sexual, pp. pelo artigo 163º, 1, do CPenal (ofendida B), na pena de dois anos de prisão;.
- Como autor de dois crimes de coacção sexual, pps. pelo artigo 163º,1, do CPenal, em concurso aparente com dois crimes de "violação", sob a forma tentada, p.p. pelos artigos 164.1, 22º, 23º e 73º, do CPenal (ofendidas C e D) nas penas de três anos e seis meses de prisão ( Marta) e de quatro anos de prisão (D);
- Como autor de um crime de sequestro, pp. pelo artigo 158º,1, do CPenal, na pena de um ano de prisão;
- Como autor de um crime de "coacção e resistência sobre funcionário", pp. pelo artigo 347º do CPenal, na pena de dois anos de prisão.
Procedendo ao cúmulo jurídico destas penas com aquelas em que foi condenado no Pº n.º 264/01, do 2º Juízo deste Tribunal, condenou-o na pena única de dez anos de prisão.
Mais o condenou a pagar ao H.D. Bragança a quantia de trinta e dois Euros e noventa e dois cêntimos.
2. Não se conformou o arguido com a decisão e dela interpõe recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):
"Primeira - O arguido é jovem, tinha à data da prática dos factos, 23 anos de idade. O Tribunal "a quo" deveria ter valorado positivamente a sua idade, atenta a circunstância da falta de apoio familiar, o que não fez.
Segunda - O arguido consumia drogas e álcool, substâncias que impedem a percepção da realidade e estimulam a prática irreflectida dos actos pelos quais foi condenado.
Terceira - O arguido apresenta um baixo nível de escolaridade. Ora, sem cultura não é fácil entender a censura.
Quarta - O arguido não gozava de apoio familiar. Entende-se que a personalidade se constrói com o apoio e no ambiente familiar e de amigos. Como se entende que a sociedade se baseia na família.
Quinta - O arguido apresenta "Traços de Personalidade Psicopata".
Pese embora o grau de tais traços na sua personalidade não serem suficientes para ser considerado inimputável, é contudo portador desta doença que diminui a sua culpa.
Sexta - O Arguido não teve totalmente a culpa pela não preparação da sua personalidade; dado que desde os 13 anos que apresenta alterações de comportamento reveladoras de inobservância das normas sociais. Parece oportuno lembrar que a presente sentença se propalada varria tudo quanto existe em termos de solidariedade social e reinserção social.
Sétima - As consequências dos crimes não foram gravosas. Apenas provocaram nas queixosas o medo, o receio e algum pânico, tanto assim que nenhuma deduziu qualquer pedido de indemnização civil- ou seja, o Tribunal não teve em conta os males do crime.
Oitava - Torna-se difícil ou quase impossível pensar em reintegrar na sociedade uma pessoa com 34 anos de idade, após dez anos da sua vida preso. - Aos 34 anos de idade quando desde os 13 já se timbrou com o selo de "mau". A douta sentença aplicou a máxima "dura lex sed lex"
"Legislação violada:
Arts.º 40.º, 43.º do CP, na medida em que o douto acórdão proferido visou tão somente a protecção dos bens jurídicos e a defesa da sociedade de alguém que tem mantido uma conduta contrária às normas instituídas mas, descurou a reinserção social do arguido. Art.;s 71.º e 72.º do Código Penal porquanto o Tribunal "a quo" não teve em consideração: a idade do arguido, a sua personalidade, o consumo de drogas e álcool, a falta de apoio familiar, circunstâncias que diminuem a sua culpa".
Termina pedindo a redução da sanção para prisão não superior a 5 anos, ou seja, para "os mínimos da pena".
Respondeu a Dig.ma Procuradora da República no Círculo de Bragança, dizendo em síntese:
"I - 1 ª- A pena deve ser fixada dentro dos limites consentidos pela culpa do agente;
2ª- dentro desses limites funcionam as exigências da punição;
II - Atenuação especial da pena é um mecanismo legal de aplicação excepcional que pressupõe sempre a verificação de acentuada diminuição da ilicitude, da culpa e da necessidade da pena (exigências de prevenção).
III - O elevado grau de ilicitude dos factos, a intensidade do dolo, o modo da acção, os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes, os fins, os motivos, os seus efeitos danosos, a reiteração de crimes idênticos, a falta de preparação do arguido para manter uma conduta lícita - resultante de uma personalidade de completa inadequação aos valores sociais e morais, construída pelo próprio e que deve ser censurada através da pena - não tem efeito desculpabilizante, nem deve funcionar como circunstância atenuante.
IV - A objectiva gravidade dos crimes cometidos, não só não permite a atenuação especial da perna como aconselha um pena que, adequada à culpa, satisfaça as necessidades de prevenção .
V - 1ª Não concorrem no seu caso quaisquer circunstâncias especiais e excepcionais que permitam concluir pela acentuada diminuição da ilicitude dos factos ou da sua culpa;
2ª- a pena que lhe foi aplicada é a única que satisfaz as finalidades da punição.
VI. O douto acórdão recorrido não violou qualquer norma jurídico penal ou jurídico- processual penal".
Deve, pois, o acórdão ser confirmado.
3. Neste STJ, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto promoveu a realização do julgamento.
Após exame preliminar, o recurso foi admitido e colheram-se os vistos legais.
Procedeu-se à audiência a que se refere o artigo 423º do Código de Processo Penal, com observância do formalismo respectivo, tendo sido produzidas alegações orais.
Cumpre ponderar e decidir.
II
O Colectivo considerou provados os seguintes factos:
"No dia 21.12.01, cerca das 04.00 horas, na Av. Sá Carneiro, nesta cidade, quando, dirigindo-se para casa, a C, abriu a porta de entrada do prédio onde habita, com o nº 133, o arguido, que se encontrava nas imediações, logo a impediu de a fechar, entrando no respectivo "hall" atrás dela.
E, de imediato, o arguido, com força, agarrou a C pelas costas, impedindo-a de se libertar, ao mesmo tempo que começou a apalpá-la com as mãos por todo o corpo, mas especialmente na zona da vagina e dos seios.
A C logo reagiu procurando livrar-se do seu agressor, começando a subir o primeiro lanço de escadas e gritando por socorro e o arguido seguiu-a, sem a largar e continuando passar-lhe as mãos pelas zonas erógenas do corpo, ao mesmo tempo que lhe ia tapando a boca e lhe dizia para se calar.
A dado momento, o arguido procurou tirar a roupa à C, puxando-lhe as calças para baixo, e por puxar por elas descoseu-lhe, pelas costuras, as pernas das calças, em ganga;
Em virtude dos gritos da C, acorreu ao local o E, seu vizinho do 1º andar, motivo por que o arguido se pôs em fuga.
Em virtude da conduta do arguido a B sofreu hematomas na zona das virilhas;
No dia 11.01.02, cerca das 16.10 horas, no espaço anexo ao Estádio Municipal, nesta cidade, pouco frequentado, o arguido abeirou-se, pelas costas, da B, que subia já a rampa de acesso ao portão do lado Norte, em direcção à Central de Camionagem, levando consigo um saco para ir de fim de semana;
Sem que a B se apercebesse o arguido abeirou-se dela agarrando-a pelas costas com força, impedindo-a de fugir, e começou a apalpá-la com as mãos na região vaginal, nos seios e nas nádegas.
A B apesar de cair ao chão, conseguiu reagir, vibrando pontapés no agressor, não sabendo se lhe acertou, e começou a gritar por ajuda, motivo por que alguém que se encontrava nas imediações deu sinal da sua presença, berrando, o que levou o arguido a fugir.
No dia 16.01.02, cerca das 22.45 horas, na Av. Sá Carneiro, nesta cidade, o arguido entrou no "hall" do prédio com o nº 106, seguindo atrás da D, que acabara de abrir a porta respectiva, dirigindo-se para sua casa, sita no 4º andar.
Depois de entrar no elevador a seguir à D, de a questionar sobre o andar a que queria dirigir-se e de pressionar o botão relativo ao 4º andar para onde a D se dirigia, o arguido, quando já seguiam ao nível da laje de separação entre o 2º e o 3º piso, de forma repentina e deliberada, pressionou o botão de "stop", pelo que o ascensor de imediato se imobilizou, defronte de uma parede.
E, de imediato e também de forma rápida, agarrou a D pelas costas, segurando-a com as mãos pela zona pélvica e pressionado-lhe os seios, ao mesmo tempo que descrevia movimentos ritmados para diante e para trás e encostava a sua região genital às nádegas daquela, simulando a prática de relações sexuais.
Em pânico, a D começou a gritar e a procurar libertar-se do seu agressor, enquanto também ia conseguindo pressionar, sem nexo, os botões de comando do elevador, para que reiniciasse a marcha, o que não ocorreu, e dava pontapés na porta do elevador.
Ao mesmo tempo, o arguido, com o propósito de a despir, começou a puxar pelas camisolas da D, chegando a desfraldá-la, assim como pelas calças, que não conseguiu despir-lhas de imediato apenas porque eram de ganga e lhe ficavam justas, tudo isto enquanto a ofendida se debatia e continuava a gritar, ao que ele respondia que se calasse, que de nada lhe valia gritar, e para estar quieta.
A dado momento, decorridos cerca de 05 minutos, alguém, do exterior, que não foi possível identificar, pôs o elevador em marcha, que se foi imobilizar na porta do 3º andar, circunstância que a D, que continuava a debater-se com ele, logo aproveitou para empurrar o arguido e sair para o átrio respectivo atirando-se para fora do elevador.
Ali já se encontravam alguns vizinhos da D, que acorreram aos seus gritos e agarraram o arguido, e também F, agente da PSP de Bragança, que, não se encontrando de serviço nem fardado, com vista a tomar conta da ocorrência, se identificou como Policia verbalmente e exibindo-lhe o seu cartão profissional, o agarrou e fez deslocar para local afastado do átrio, junto á parede, até á chegada dos colegas de piquete, ao que o arguido reagiu desferindo-lhe um soco no nariz, o que lhe provocou escoriação no dorso, com hematoma, com vista a fugir e evitar a sua detenção
No entanto, no acto, reagindo, o F acabou por deter o arguido, dando-lhe um soco e exibindo-lhe a pistola de serviço, intimidando-o, com vista a evitar a fuga e outros actos do arguido.
Em consequência da conduta do arguido a D sofreu hematomas ligeiros e abalo psicológico que se mantém.
Ao esperar e abeirar-se das raparigas e ao agarrá-las, o arguido actuou com propósitos lascivos, querendo alcançar e acariciar zonas erógenas das ofendidas, com vista a satisfazer impulsos libidinosos, bem sabendo que o fazia contra a vontade delas e sem o seu consentimento, e que assim violava a liberdade sexual de cada uma delas;
E que as mesmas apenas suportavam tais actos em virtude da força física contra elas usada, e no caso da C e da D, o arguido agiu também com o propósito de manter relações sexuais de cópula completa com elas, o que não conseguiu apenas em virtude da resistência oposta por elas e do auxílio dos vizinhos.
O arguido, ao parar o elevador e ali manter a D, contra a sua vontade agiu ainda bem sabendo que estava a limitar os movimentos e a encarcerar a D no elevador contra a sua vontade. Ao agredir o Agente da PSP, a soco, que sabia no desempenho da respectiva missão, cuja natureza conhecia, o arguido procurou impedi-lo que o identificasse e eventualmente o detivesse, bem sabendo que o fazia pelo recurso a meios violentos.
O arguido agiu sempre, voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo serem proibidas e punidas tais condutas;
O arguido não possui qualquer outra psicopatologia, para além de traços marcados de uma personalidade psicopata, com uma auto estima elevada, hostilizante, irresponsável, com comportamento interpessoal intrusivo, violação de regras sociais e sobretudo desculpabilização dos actos usando a mentira como resposta a atitudes desviantes e consciência dos actos praticados, e, consciente dos seus actos tem atitudes de versatilidade criminal, irresponsabilidade, impulsividade, manipulação, mentira e insensibilidade, perante os quais se apresenta frio, sem ressonância ou culpa e algo exibicionista.
E desde os 13 anos que apresenta alterações de comportamento reveladores de inobservância das normas sociais, indiferença pelos outros, atitudes violentas, consumo de drogas e álcool, tentativas de violação, conflitos com a Autoridade mantendo esses comportamentos apesar dos processos judiciais a que foi sujeito, e apesar de estar consciente dos seus actos, saber distinguir o bem do mal, o certo do errado, o legal do ilegal e saber das sanções penais a que está sujeito, apresentando traços marcados de perturbação de personalidade anti-social, e sendo responsável pelos seus actos, e face á personalidade que apresenta é capaz de repetir o seu comportamento.
O arguido foi julgado e condenado:
Em 5/4/01 no Proc. 12/01 do 2º Juízo deste Tribunal, pela prática em 11/9/00, de um crime de roubo, na pena de dois anos de prisão suspensa por 4 anos;
Em 7/5/02 no Proc. 264/01 do 2º Juízo deste Tribunal pela prática em 7/9/01 de dois crimes de coacção sexual e de um crime de coacção sexual tentado, nas penas de um ano de prisão, um ano de prisão e seis meses de prisão, e em cúmulo na pena de um ano e seis meses, suspensa pelo período de 4 anos
O arguido á data vivia com o pai, motorista dos STUB, e um irmão que frequentava um curso de formação profissional;
Tendo a profissão de servente de trolha há cerca de 1 mês que não trabalhava, a não ser esporadicamente em discotecas;
Tem o 6º ano de escolaridade.
É de humilde condição social;
O arguido consumia bebidas alcoólicas, quando se queria embriagar, e estupefacientes, e não gozava de apoio familiar face ao seu estado;
Depois de detido fez tratamento de desintoxicação;
F, face á agressão de que foi vitima por parte do arguido, foi assistido no H.D. Bragança, que lhe prestou os cuidados de saúde de que carecia, no que dispendeu a quantia de 32,92 Euros".
Não se provou que:
"O arguido estava á frente da D quando esta o empurrou para sair do elevador;
O arguido respondeu ao agente da PSP, agarrando-o pela camisola".
O Tribunal fundou a sua convicção:
"na análise, ponderação e valoração da prova produzida, nomeadamente, declarações do arguido, que tendo confessado os actos de que se recorda perfeitamente, negou: ter tapado a boca e ter procurado tirar a roupa à C; ter agarrado a B e esta ter-lhe vibrado pontapés; ter parado o elevador e agarrado a D, e tentado despi-la, e o agente da PSP não se ter identificado, bem como declarou que apenas queria apalpá-las e o seu intuito não era sexual, no que não mereceu qualquer credibilidade, não apenas por ir contra os depoimentos das ofendidas e circunstâncias da sua actuação, como queria que elas consentissem nos seus actos e sabia que precisava do seu consentimento e as regras da experiência comum; depoimentos de C, ofendida sobre o modo de actuação do arguido e que a agarrou por trás, dizendo obscenidades, o que fez o arguido, gritou, o arguido tapou-lhe a boca, tentou fugir para a Rua e não conseguiu e ao subir as escadas o arguido agarrava-a e a puxava-a para baixo, e que visava tirar-lhe a roupa, conjugado com o depoimento de E, que morava no 1º andar, ouviu os gritos e foi socorrer a B e encontrou o arguido a puxar as calças dela dando-lhe a sensação de que tentava tirar-lhas; B, ofendida sobre o modo de actuação do arguido que a agarrou por trás, o que fez o arguido, gritou, caiu, e tentou dar pontapés, e fuga do arguido e razão dela, tendo ficado descomposta, e descrição do local, D, ofendida, sobre o modo como o arguido apareceu, actuação deste, conversa sobre o andar, paragem do andar, actuação dela, o que fez o arguido e o que visava e procurou despi-la, e a mandava calar e estar quieta ameaçando-a, como o elevador se pôs em funcionamento, saída do elevador, actuação dos vizinhos e do agente da PSP; F, agente da PSP que acudiu ao ouvir os gritos, modo de actuação, e se identificou, lesões e tratamento hospitalar, o fim visado pelo arguido e sua actuação posterior compatível com a versão do arguido; G, H, I, vizinhos do 4º andar que ouviram os gritos e que vieram socorrer tendo chegado ao 3º andar e já ali estavam outros vizinhos desse andar, viram actuar o agente da PSP e identificar-se e actuação do arguido que pretendia fugir; da prova ressalta que a actuação do arguido é uniforme, procurando as ofendidas sem que elas se apercebam da sua presença e dos seus intentos bem como as agarra da mesma maneira, e só a D se apercebe do seu cheiro a álcool, tudo conjugado com as regras da experiência e a análise do teor dos doc.s de fls.65, 66 a 69, 91 e 92, 169 a 189, 204 a 209".
III
Como tem sido repetidamente afirmado neste Supremo Tribunal, cabe na sua competência conhecer oficiosamente dos vícios a que se refere o n.º 2 do artigo 410º do CPPenal (1).
Na verdade, se não lhe fosse possível conhecer da insuficiência da matéria de facto provada para que possa ser proferida uma decisão, da contradição irremovível entre a fundamentação da decisão ou entre a fundamentação e a decisão, bem como do erro notório na apreciação da prova corria-se o risco de serem confirmadas decisões que assentassem em premissas absurdas, contraditórias ou flagrantemente inverosímeis só porque os intervenientes processuais não as haviam atacado. Com um limite: que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Daí que constitua, normalmente, tarefa prévia da apreciação do que se visa com o recurso, a análise da matéria de facto que o Tribunal considerou provada, em ordem a apurar se ela padece ou não de algum daqueles vícios que inviabilize a ponderação do objecto do recurso.
Ora, existem algumas passagens do acórdão recorrido que necessitam de especial atenção, passando-as pelo crivo daquele preceito.
Vejamos.
Diz o Colectivo em certo passo:
"O arguido agiu sempre, voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo serem proibidas e punidas tais condutas;
O arguido não possui qualquer outra psicopatologia, para além de traços marcados de uma personalidade psicopata, com uma autoestima elevada, hostilizante, irresponsável, com comportamento interpessoal intrusivo, violação de regras sociais e sobretudo desculpabilização dos actos usando a mentira como resposta a atitudes desviantes e consciência dos actos praticados, e, consciente dos seus actos tem atitudes de versatilidade criminal, irresponsabilidade, impulsividade, manipulação, mentira e insensibilidade, perante os quais se apresenta frio, sem ressonância ou culpa e algo exibicionista.
E desde os 13 anos que apresenta alterações de comportamento reveladores de inobservância das normas sociais, indiferença pelos outros, atitudes violentas, consumo de drogas e álcool, tentativas de violação, conflitos com a Autoridade mantendo esses comportamentos apesar dos processos judiciais a que foi sujeito, e apesar de estar consciente dos seus actos, saber distinguir o bem do mal, o certo do errado, o legal do ilegal e saber das sanções penais a que está sujeito, apresentando traços marcados de perturbação de personalidade anti-social, e sendo responsável pelos seus actos, e face à personalidade que apresenta é capaz de repetir o seu comportamento" (realces nossos).
Lendo esta parte da matéria de facto apurada, a dúvida que se suscita afinal é a de saber se o arguido é ou não responsável pelos actos tipicamente ilícitos de que foi acusado, dizendo mais rigorosamente, se é inimputável ou se a sua imputabilidade se mostra sensivelmente diminuída (2). Ou, não sofrendo de qualquer anomalia psíquica grave (ou menos grave), a sua imputabilidade é completa.
2. O Colectivo debruça-se sobre esta matéria, dizendo:
"Inexiste qualquer causa que exclua a ilicitude das condutas do arguido, ou a sua culpa ou que constitua causa de desculpa, apesar de o arguido ter suscitado reservas ao seu equilíbrio psíquico, tendo-se vindo a apurar, não apenas a sua inteira consciência dos actos praticados e conhecimento da ilicitude dos mesmos, mas também que apesar de saber as sanções em que incorre mantém uma conduta anti-social, que constitui uma faceta da sua personalidade, com traços de psicopatia, comportamentos anti-sociais esses que o arguido vem desenvolvendo desde os 13 anos, o que pode constituir um índice de uma imputabilidade diminuída ( artigo 20º3 CP).
No caso porém tendo-se apurado que apresenta traços de psicopatia anti-social, não existe qualquer outra psicopatologia ( cfr. relatório de fls. 207), e dado que "A imputabilidade traduz-se naquele conjunto de qualidades pessoais que são necessárias para ser possível a censura ao agente por ele não ter agido doutra maneira" ... o arguido apresenta um perfeito conhecimento dos seus actos e dos mesmos tem consciência, sendo por eles responsável, e a sua conduta e personalidade anti-social, porque resultado de alterações comportamentais repetidos desde os 13 anos, aliada à sua perigosidade, não pode deixar de ser imputada ao arguido a título de culpa na preparação da personalidade, na medida em que ele próprio auto desculpabiliza os seus actos (...3). (o) que não pode levar de modo algum a uma atenuação ..., pois nada o impede de agir de outro modo, e de aceitar as regras sociais que conhece".
"Afigura-se-nos assim, que a psicopatia anti-social de que o arguido é portador, é-lhe imputável a titulo de culpa na formação da personalidade que apresenta, e pela qual deve ser censurado ( artigo 71º 2 f) CP), e como tal não passível de levar a uma atenuação da sua culpa, e consequentemente da pena já que esta não está estabelecida na lei, mas sendo aceite pela Doutrina e Jurisprudência, " pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo á agravação da pena. Isso sucederá..., quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v.g. em casos como os de brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis....." in F. Dias, Jornadas de Dto Criminal, CEJ, Fase I, pág 77, como parece ser o caso do arguido".
3. Como resulta do texto do acórdão, as conclusões sobre a imputabilidade do arguido provêm do intitulado "Relatório Médico legal" pedido nos termos do artigo 351º do CPPenal
(4) (fls. 205 a 209).
Tal Relatório, subscrito por uma Assistente Hospitalar de Psiquiatria do Hospital Distrital de Bragança, baseia-se em entrevista com o arguido, no processo clínico da consulta, no exame psicológico efectuado para o efeito e na consulta de cópia do processo, remetida pelo Tribunal de Bragança.
Na parte do "Exame Mental", refere:
"Consciente, orientado no espaço, no tempo, em relação à situação e a si próprio. Postura um pouco altiva, colaborando na entrevista clínica. Comportamento adequado. Discurso coerente. Atenção captável e mantida. Alguma ansiedade quando confrontado com a repetição dos seus comportamentos anti-sociais. Frieza afectiva.
-Sem alterações da sensopercepção (alucinações) ou do Pensamento (delírios).
-Quando fala dos seus Processos com a Justiça e dos motivos que os ocasionaram, fá-lo dum modo frio, sem mostrar ressonância ou culpa, adoptando até uma postura e tom de voz algo exibicionista. Está consciente e capaz de avaliar o bem e o mal, distinguir o certo do errado, o que é legal do que é ilegal, embora a sua postura em relação aos seus comportamentos seja distante, resumindo as suas motivações a um simples "aconteceu".

Sobre a "Avaliação Psicológica", remete para o relatório anexo - a que voltaremos - sintetizando:
"-Q.I. médio normal em relação à sua idade, sem deterioração mental.-
"Traços de Personalidade Psicopata".
Para concluir:
"(...)
4 - Na Entrevista Clínica e no Exame Mental não foram detectadas alterações da sensopercepção (alucinações) ou do Pensamento (delírios), nem é de suspeitar que essas alterações psicopatológicas estivessem presentes na altura da ocorrência dos delitos que lhe são imputados.-
-5 - Em relação aos factos que lhe são imputados, e apesar de dizer que, nesses dias tinha ingerido grandes quantidades de bebidas alcoólicas, refere que "se lembra de tudo".
Atendendo ao que o arguido refere, aos depoimentos das vítimas e das testemunhas que constam do Processo Judicial e ao comportamento do doente (fugas quando sente que se aproxima alguém, atitude de defesa com agressividade quando descoberto e até o modo como as vítimas foram abordadas), fazem supor que o A estaria consciente e capaz de avaliar a ilicitude dos seus comportamentos. -
6 - O A desde os 13 anos que apresenta comportamentos que se têm repetido ao longo dos anos. Esses comportamentos revelam uma inobservância pelas normas sociais, indiferença pelos outros, atitudes violentas, consumo de drogas e -álcool, tentativas de violação, conflitos com a Autoridade, mantendo esses comportamentos, apesar dos processos judiciais a que já foi sujeito. Estes comportamentos mantêm-se apesar do doente estar consciente dos seus actos, saber distinguir o bem do mal, o certo do errado, o legal do ilegal e saber das sanções penais a que está sujeito. Por tudo isto, podemos concluir que o A apresenta Traços marcados de Perturbação de Personalidade Anti-Social.
7 - Pela capacidade que mantém para avaliar o seu comportamento e por não existir outra psicopatologia, o A pode ser responsabilizado pelos seus comportamentos.
Por toda a sua história de vida e pelos traços de personalidade que apresenta, existem fortes possibilidades de repetição dos comportamentos anti-sociais" (realces nossos).

E no "Exame Psicológico", onde a Perícia anterior foi beber, assim como o Colectivo, diz-se sobre a avaliação de traços de personalidade:
"Através dos testes projectivos e questionários aplicados ..., parece-nos tratar-se de um sujeito: consciente, orientado, indiferente em relação à realidade, ansioso, agressivo, facilmente disturbável e irritável.
Parece também apresentar segundo os testes projectivos, um conflito de virilidade, mas, também possível ansiedade em relação aos próprios pensamentos, fantasias e instintos demonstrando um forte conflito entre a expressão e o controle dos impulsos, que acompanhado por um superficial contacto social, pouca expressão dos afectos, impulsividade e inadaptação; confere a este sujeito características muito próximas de indivíduos com traços de perturbação de personalidade.
Parece-nos importante referir que os vários testes dão sinais de um indivíduo com uma auto-estima elevada, hostilizante, irresponsável, com comportamento interpessoal intrusivo, violação de regras sociais e sobretudo auto-desculpabilização dos actos usando a mentira como resposta as atitudes desviantes e consciência dos actos praticados.
Conclusão:
Segundo a avaliação dos vários testes podemos concluir que se trata de um sujeito consciente dos seus actos, com atitudes de versatilidade criminal visto possuir vários contactos com a justiça, irresponsabilidade, impulsividade, manipulação, mentira, insensibilidade e uma história pessoal que nos permite concluir que possui traços marcados de personalidade psicopata".


4. É conhecida a lição de Eduardo Correia (5) quando estuda a imputabilidade e os elementos biológico e psicológico como critérios substanciais integradores da mesma.
Referindo-se aos psicopatas, classifica as suas perturbações "no domínio da vida emotiva, afectiva ou da vontade". E contrariando, nesta parte, a posição de SCHNEIDER, afigura-se-lhe que, "para efeitos jurídicos, as psicopatias devem ser equiparadas às doenças".
Na classificação de SCHNEIDER, encontramos, entre outros, os psicopatas inseguros ou pouco confiantes em si, a que em regra estão associados complexos sexuais e processos de compensação e de supra-compensação.
Em face de disposições legais menos claras, já defendia Eduardo Correia que "as psicopatias podem e devem assimilar-se às psicoses".
Não basta para a haver imputabilidade que alguém possua capacidade intelectual para compreender os juízos de valor ligados à sua conduta; é preciso ainda "que o agente tenha o livre exercício da sua vontade, que o agente tenha liberdade de querer de harmonia com essa valoração" (6).
É também sabido como aquele Mestre superava a aporia de uma menor liberdade na decisão do psicopata, uma imputabilidade diminuída, levar a sanções menos elevadas, em contraste com uma maior perigosidade destes agentes. Por isso, a "teoria" da culpa na formação da personalidade, a "culpa que se traduz na omissão - na omissão permanente por parte do criminoso - do cumprimento do dever de orientar a formação ou preparação da personalidade de modo a torná-la apta a respeitar os valores jurídico-criminais". E onde a dificuldade de preparação é maior, parecendo menor a culpa do agente, aí a intensidade do dever, logo a culpa pela sua violação será mais grave e, portanto, uma censura mais acentuada e uma maior pena.
Mas se o delinquente "consegue demonstrar" que a despeito de todos os esforços que fez para controlar a sua tendência foi "irresistivelmente conduzido ao crime" então não atinge a normalidade biológica e psíquica, faltando-lhe a capacidade de valoração dos seus actos e de se decidir de acordo com a valoração feita, não sendo imputável (7).
O Colectivo seguiu esta posição, da qual se encontra eco nos artigos 71º, n.º 2, alínea f) (8), do CPenal, na fixação da pena relativamente indeterminada - artigos 83º a 90º - e no internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica (artigo 104º).
5. A tendência será para, no quadro de diagnóstico de psicopatia, os tribunais concluírem pela imputabilidade (9); a inimputabilidade nestes casos constitui uma excepção. Posto que estudos mais recentes sobre a estrutura e funcionamento cerebral dos psicopatas apontem para matrizes biológicas das psicopatias, o que levaria a classificá-las como doença mental.
De qualquer modo a sua perigosidade e eventual incorrigibilidade (que resultaria agravada pela lesão/disfunção cerebral) apontaria para a aplicação de uma pena de prisão relativamente indeterminada.
Conclui o Autor a que nos referimos: "...torna-se fundamental a utilização de procedimentos rigorosos de análise e interpretação para que as decisões jurídicas que envolvam encaminhamento ou tratamento especializado, possam apresentar um maior grau de eficácia preditiva e preventiva".
6. Perante o exposto o que concluir quanto à indagação sobre a existência ou não de vícios na matéria de facto?
Nos termos do artigo 163.º do CPPenal o juízo técnico ou científico inerente à prova pericial presume­se subtraído à livre apreciação do julgador. Por isso, "Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência" (n.º 2).
O Juiz é o peritus peritorum, em toda a amplitude das questões suscitadas pela indagação dos pressupostos da imputabilidade, embora não haja dúvida quanto à importância da cooperação do peritos, essencial no que concerne aos contornos da existência ou não de anomalia psíquica e, respondendo afirmativamente a este, também e ainda na dimensão normativa dessa imputabilidade, quando o Tribunal pretende saber se o agente estava em condições de avaliar a ilicitude do crime ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
Ora da leitura conjugada da matéria de facto considerada demonstrada, da fundamentação jurídica e dos exames periciais que serviram de fundo, colhe-se a ideia de que existem algumas contradições e aspectos insuficientemente clarificados.
No dito "Relatório Médico legal" conclui-se que o arguido A Roxo apresenta traços marcados de Perturbação de Personalidade Anti-Social, o que não impede que possa ser responsabilizado pelos seus comportamentos.
Todavia, por toda a sua história de vida e pelos traços de personalidade que apresenta, existem fortes possibilidades de repetição dos comportamentos anti-sociais.
Porém, diz-se na matéria de facto que o Colectivo dá como provada que o arguido agiu sempre, voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo serem proibidas e punidas tais condutas; mas apresenta traços marcados de uma personalidade psicopata, com uma autoestima elevada, hostilizante, irresponsável ....
Podemos entender que o qualificativo de irresponsável se refere à autoestima, posto que não se compreenda bem o que seja. Mas logo adiante acrescenta-se que (embora) consciente dos seus actos tem atitudes de versatilidade criminal, irresponsabilidade, impulsividade, manipulação, mentira e insensibilidade, perante os quais se apresenta frio, sem ressonância ou culpa e algo exibicionista.
Agora a situação torna-se mais complexa: se as atitudes de irresponsabilidade perante os seus actos, conscientes, se podem entender como de irresponsabilidade aparente, já a falta de ressonância (ética, é de supor) ou de culpa, com um perfil de exibicionismo, podem apontar para uma carência ou diminuição da imputabilidade. Ainda que essa falta de ressonância ética seja "exibida" a posteriori.
Mau grado isso, a inclinação do Colectivo vai para a plena imputabilidade ao fazer a escolha e determinação das penas parcelares e sobretudo da pena unitária aplicada.
Somos assim conduzidos a encontrar contradição entre parcelas da fundamentação. Por um lado, o arguido deve ser completamente responsabilizado pelos seus actos, mas por outro, ele apresenta-se insusceptível de culpa ou com a culpa diminuída.
Assim parece ter o Colectivo divergido das perícias realizadas, mas com uma fundamentação da divergência insuficiente ou contraditória.
E as consequências estão à vista: afinal o arguido apresenta, segundo o texto da decisão, nesta parte, sinais de "irresponsabilidade" mas é punido com maior severidade pela perigosidade que objectivou nos vários crimes do mesmo tipo já cometidos.
Porém, e de acordo com o artigo 20º do CPenal "a comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas - como tem vindo a suceder com o arguido - pode constituir índice da situação prevista no número anterior", isto é, imputabilidade diminuída.
Entendemos, pois, verificados os vícios a que se referem as alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410º do CPPenal, determinantes do reenvio do processo.
7. As contradições enunciadas para além do ilogismo do raciocínio traduzem-se numa insuficiência da matéria de facto para a decisão, na parte em que respeita à pena (ou medida de segurança) a aplicar.
O que tudo aponta para a necessidade de aproveitar para um reforço do mecanismo das perícias a fim de encontrar a decisão final que se ajuste à imputabilidade.
Vários preceitos do CPPenal em casos complexos - e não temos dúvidas que o são estes de apreciação de personalidades porventura com características psicopáticas, pela zona de fronteira em que caem - apelam à colegialidade ou interdisciplinaridade das perícias - artigos 152º, n.º 2, 157º, n.º 5, 158º, n.º 1, alínea b), 159º, n.º 2, 160º, n.º 2, 351º, n.º 3, todos do CPPenal.
É nesta via a opinião mais recente de Figueiredo Dias (10), ao defender um "paradigma compreensivo" da imputabilidade, numa forma de culpa jurídico-penal que "assente numa liberdade concebida como modo-de-ser característico de todo o existir humano" em que, porém, "o juízo de culpa não poderá efectivar-se quando a anomalia mental oculte a personalidade do agente, impedindo que ela se ofereça à contemplação compreensiva do juiz".
O que requer, no processo penal, a consagração da perícia colegial e da perícia interdisciplinar, porque o auxílio ao juiz não se bastará em regra com o saber isolado da psicologia, da psicanálise, da psiquiatria ou da sociologia.
IV
Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em julgar verificada a existência dos vícios a que se referem as alíneas a) e b), do artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à questão da imputabilidade e consequência advenientes, o qual deve ser realizado por tribunal a determinar de acordo com o artigo 426º-A, do mesmo diploma .
Sem custas.
Texto processado em computador pelo Relator, que rubrica as restantes folhas.
Lisboa, 4 de Dezembro de 2002
Lourenço Martins
Pires Salpico
Leal Henriques
Borges de Pinho.
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(1) Onde se diz: "2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova".
(2) Dispõe o artigo 20º do CPenal ("Inimputabilidade em razão de anomalia psíquica"): "1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
2 - Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.
3 - A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior.
4 - A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.
(3) Cita-se jurisprudência e doutrina.
(4) Do seguinte teor"(Perícia sobre o estado psíquico do arguido): 1 - Quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico daquele. 2 - O tribunal pode também ordenar a comparência do perito quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade diminuída do arguido. 3 - Em casos justificados, pode o tribunal requisitar a perícia a estabelecimento especializado. 4 - Se o perito não tiver ainda examinado o arguido ou a perícia for requisitada a estabelecimento especializado, o tribunal, para o efeito, interrompe a audiência ou, se for absolutamente indispensável, adia­a".
(5) Direito Criminal, com a colaboração de Figueiredo Dias, I, Almedina 1963, pp. 331 e sgs.
(6) Ibidem, pp. 349 e 354.
(7) Criticando a teoria da culpa na formação da personalidade - cfr., v. g., Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, 2.º volume, aafdl, 1999 (reinpressão), p. 297; Almeida Santos "Novo mundo, novo crime, nova política criminal" na RPCC, Ano 10, JUL/SET 2000, p. 354.
(8) "2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: (...)f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena".
(9) Estamos a seguir o que diz Rui Abrunhosa Gonçalves, "Psicopatia, crime e lei", na RPCC, Ano 8, JAN/MAR, 1998, pp. 67 e ss.. Aí se dá conta de que em trabalho recente no Canadá (Zinger), se concluiu que o diagnóstico de psicopatia tem sido muito frequente em procedimentos forenses, que os tribunais parecem muito influenciados pelo testemunho de peritos (nem sempre de qualidade), sendo que na maioria dos casos a psicopatia serviu para aumentar a severidade das penas, até pelo facto de se afirmar que estes delinquentes não são tratáveis (pp. 86/87).
(10) "Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 279.