Sumário

1) No domínio da vigência do DL 46 673 de 29-11-1965, a falta de licença de loteamento não determina a nulidade dos contratos de compra e venda de terrenos com ou sem construção compreendidos no loteamento-assento de 21-7-87.
2) O que importa é a divisão efectiva, operada com a construção em prédio desanexado de outro.
3) Assim, não é nula doação efectuada no domínio do DL 400/84 de 31-12 do novo prédio referido em 2), levado à matriz logo após a construção efectuada em data anterior a 1951, embora não inscrito no registo predial.

Texto Integral

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I

A e marido B, residentes na Quinta da ....., lugar da Moita, C, Município de ........ instauraram em 12-3-2001 a presente acção declarativa com processo ordinário contra C, pedindo que:
se declare nula e de nenhum efeito a doação efectuada através da escritura pública de 86/08/29 por D à R. de parte do prédio denominado Quinta da ...., sito naC, Município de .... , descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n° 39818, a fls 197 do Livro B-101 e actualmente descrito, em virtude da doação, na Conservatória do Registo Predial ..... sob as fichas 159 e 985 da C;
inutilizada a descrição predial n° 00159/241186 (C) da Conservatória do Registo Predial de .......;
e se ordene, ao abrigo do art° 8°/1 do Cód. Registo Predial, o cancelamento do registo relativo à inscrição G1, Ap.25/241186 do prédio descrito sob a ficha n° 00159/241186, relativa à aquisição pela R., por doação da falecida D, e de todas as inscrições posteriores ao registo da referida aquisição.

Para tanto, e em síntese, alegam que a referida doação implicou a desanexação do prédio doado e a abertura de uma descrição predial autónoma, nos termos dos arts 79° e ss do Cód. Reg. Predial, tendo determinado assim o fraccionamento fundiário do prédio descrito sob o n° 39 818 a fls 197 do Livro B 101 do Concelho de .......
Uma vez que o referido fraccionamento fundiário não foi precedido de licenciamento municipal ou de qualquer operação de loteamento ou destaque e da escritura pública não consta a menção da data de qualquer alvará de loteamento, nem tão pouco que este documento tenha sido exibido perante o ajudante de notário que lavrou o referido instrumento notarial, a doação seria nula por consubstanciar um loteamento realizado com violação do DL 400/84 de 31/12.

Contestou a Ré, alegando que através da escritura outorgada em 29/08/86 a doadora lhe doou um prédio distinto e autónomo, o prédio inscrito na matriz sob o artigo 151 da C, composto de casa térrea com nove divisões para habitação, três dependências e pátio, a confrontar do norte e poente com caminho e do sul e nascente com a própria doadora. Tal prédio estava à data da doação descrito na CRP de Torres Vedras sob parte do n° 39 818. Após a doação e por efeito do registo da nova aquisição, passou a estar descrito em ficha com o n° 159-C.

Continua, alegando que não é verdade que o negócio jurídico titulado pela escritura da doação tenha implicado a desanexação do prédio doado, não tendo determinado qualquer fraccionamento fundiário do mesmo.

O fraccionamento fundiário deu-se na altura da construção da parte urbana sobre o prédio rústico, o que aconteceu, pelo menos, há mais de 63 anos.

A Quinta .... era um prédio misto e desde que foi inscrito na matriz que dele fazem parte prédios distintos: um rústico e dois urbanos. Pelo menos desde 22 de Dezembro de 1938 que a Quinta .... já tinha perfeitamente autonomizados dois prédios urbanos, referidos nesta descrição predial, os arts 151 e 152, para além do prédio rústico.

Mais alega que só a partir da entrada em vigor do DL n° 289/73 de 6 de Junho é que passaram a ser feridos de nulidade todos e quaisquer fraccionamentos de prédios sem que a câmara municipal emita o respectivo alvará. À data em que a construção do prédio inscrito na matriz sob o art° 151 foi efectuada, muito antes da publicação do Decreto-Lei 289/73, o fraccionamento deste do prédio rústico não consubstanciou uma verdadeira e própria operação de loteamento de realização vinculadamente condicionada, mas antes um simples acto material de destaque.

Conclui, pugnando pela improcedência do pedido.

No saneador-sentença de fl. 120 e seg. o Sr. Juiz julgou a acção improcedente.

Apelaram os AA., tendo a Relação de Lisboa, por acórdão de fl. 177 e seg. confirmado a sentença.

Interpuseram os AA. recurso de revista, tendo concluído como segue a sua ALEGAÇÃO:

1 °. A doação sub judice, titulada pela escritura pública de 1986.08.29, determinou o fraccionamento do prédio então descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n ° 39818, a fls. 197 do Livro B-101, tendo dado origem a dois prédios autónomos e à consequente abertura de duas novas descrições prediais.
2°. O imóvel doado está actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial do ........ sob a ficha n.° 001 59/241186 e o novo prédio, sob a ficha n.° 00985/920401, ambas da C.
3°. A "construção de parte urbana sobre o prédio rústico" não determinou o fraccionamento fundiário do prédio n°. 39818, o qual só ocorreu com a escritura de doação, de 86.08.29 que incluiu também o pátio.
4°. O fraccionamento fundiário pode resultar de uma divisão jurídica, maxime de um negócio jurídico, quando o objecto do negócio ou o seu efeito seja a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios.
5°. A doação sub judice titulada pela escritura, de 1986.08.29, determinou o fraccionamento jurídico do prédio descrito sob o n°. 39818 a fl. 147 do Livro B-101, dando lugar a dois prédios de diferentes titulares, com composição, áreas e confrontações totalmente distintas das existentes no momento anterior à doação, pelo que se aplicam in casu os artº 57°/1 e 60° do DL 400/84, de 31 de Dezembro.
6°. O fraccionamento fundiário operado pela doação sub judice não foi precedido do licenciamento municipal de qualquer operação de loteamento ou de destaque (v. artº 1 ° e 2° do DL 400/84, de 31 de Dezembro, então em vigor), não constando da escritura de 1086.08.29, a menção da data de qualquer alvará de loteamento e, além disso, não existe, nem foi exibido qualquer dos documentos referidos no art. 57° do citado diploma legal.
7°. O negócio jurídico titulado pela escritura de 1986.08.29 é assim nulo, ex vi do disposto nos artº 1 °, 3°, 21 ° e segs., 42°, 43°, 47° e segs., 57° e 60° do DL 400/84, de 31 de Dezembro (cfr. arts. 53° e 56° do DL 448/91, de 29 de Novembro e art. 49° do DL 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção do DL 177/2001, de 4 de Junho).
8°. O acórdão recorrido enferma assim de manifestos erros de julgamento, tendo violado os artº 1°, 3°, 21° e segs. , 42°, 43°, 47° e segs. 57° e 60° do DL 400/84, de 31 de Dezembro e o art. 9°/2 do Cód. Civil.

ALEGOU a R. :

1 - Nos termos do art° 1° do Decreto-Lei 289/73 de 6 de Junho, do art° 1° do Decreto-Lei 400/84, de 31 de Dezembro e art° 3° do Decreto-Lei 448/91, de 29 de Dezembro, existe loteamento quando se verifica a divisão em lotes de um ou vários prédios, lotes esses destinados imediata e subsequentemente à construção;
2 - Até à entrada em vigor do Decreto-Lei 289/73 de 6 Junho, vigorava o Decreto-Lei 46 673 de 29 de Novembro de 1965 que, nesta matéria, prescrevia que a venda ou anúncio de venda ou promoção de venda de terrenos, com ou sem construção, compreendidos em loteamentos, só se poderiam efectuar após obtenção de licença e de se terem observado os condicionalismos previstos nesse diploma;
3 - No entanto, a violação destas regras não implicava a nulidade de respectivo contrato;
4 - Com o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Julho de 1987 ficou definitivamente esclarecido que, no domínio de vigência do Decreto-Lei 46 673 de 29 de Novembro de 1965, a falta de licença de loteamento, não determinava a nulidade dos contratos;
5 - Só após a entrada em vigor do Decreto-Lei 289/87 de 6 de Junho é que passam a ser feridos de nulidade todo e qualquer fraccionamento de prédio sem que a Câmara Municipal emita o respectivo alvará;
6 - Portanto, só a partir da entrada em vigor deste diploma é que passaram a ser nulos os negócios jurídicos relativos a lotes de terreno divididos sem prévia autorização camarária;
7 - A doação não determinou qualquer fraccionamento fundiário do prédio descrito sob o n.° 39 818, fls. 197 do Livro B-101, razão porque na escritura pública não consta a menção de alvará de loteamento;
8 - De facto, à data da escritura de doação, o prédio já existia como prédio distinto, desde muito antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 289/73 de 6 de Junho;
9 - Através de escritura de doação, foi doado à Ré um prédio distinto e autónomo, o prédio inscrito na matriz sob o art° 151 da C;
10 - Por efeito do registo da aquisição por parte da recorrida, foi aberta uma nova descrição em resultado da desanexação, que corresponde à ficha n.° 159 de C;
11 - Esta nova descrição não se confunde com o fraccionamento fundiário referido pelos recorrentes;
12 - A parcela de terreno onde foi efectuada uma construção adquire autonomia material e jurídica aquando da construção, sendo esta que opera a divisão do prédio, passando a parcela e respectiva edificação a constituir uma nova unidade predial distinta daquele donde se destacou;
13 - A divisão ou fraccionamento de prédio rústico decorrente de construções concluídas antes da entrada em vigor do citado diploma processa-se de forma independente e é pedida pelo proprietário inscrito;
14 - O acto material de incorporação no solo de edificio construído até à entrada em vigor do Decreto-Lei 289/73 de 6 de Junho, operava, por si só, a divisão do prédio rústico onde se erigia a construção, provocando a separação como prédio autónomo, do terreno adjacente que então lhe tenha ficado a servir de logradouro;
15 - Constituem prova legal desse destaque, nomeadamente, a existência de inscrição matricial anterior ou documento emitido pela Câmara Municipal que ateste que a construção foi efectivamente concluída antes da entrada em vigor da citado diploma, facto que resultou provado e que é mencionado na sentença no n.° 9 dos factos dados como provados;
16 - A escritura de doação não está, portanto, ferida de nulidade.
II

MATÉRIA DE FACTO fixada no acórdão recorrido:

1° D faleceu em 25 de Outubro de 2000.

2° Através da inscrição n° 46 020, apresentação 4 de 16 de Maio de 1949, foi registada a transmissão a favor da mãe da A., D, por partilha da herança de E ou E, do prédio misto denominado Quinta da ..., sito na C, município do ....., descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n° 39 818, a folhas 197 do Livro B-101.

3° Por escritura pública outorgada em 29/08/86, lavrada no Cartório Notarial de ....., D declarou doar à Ré que declarou aceitar tal doação, um prédio urbano, composto de casa térrea com nove divisões, para habitação, três dependências e pátio, a confinar do Norte com caminho, bem como do Poente, e do Sul e Nascente com a doadora, inscrito na matriz urbana da C no art° 151, com o rendimento colectável de 1 245$00 e o valor matricial de 24 900$00.

4° Da escritura pública não consta a menção da data de qualquer alvará de loteamento, nem que este documento tenha sido exibido perante o ajudante de notário que lavrou o referido instrumento notarial.

5° O prédio doado encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras, sob parte do n° 39 818, a fls 197 do Livro B-101.

6° Após a doação passou a estar descrito na Conservatória do Registo Predial de ..... sob a ficha n° 00159/241186, da C, nos termos seguintes: "Prédio Urbano- Quinta ....- Casa Térrea para habitação, 3 dependências e pátio- Norte e Poente: Caminho; Sul e Nascente: D- RC: 1 245$00-Artigo 151. Desanexado do n° 39 818, a fls 197 do Livro B-101.

7° A parte não doada do prédio está actualmente descrita na Conservatória do Registo Predial do ...... sob a ficha n° 00985/920401, da freguesia da C, com a seguinte descrição: "Misto- Quinta ....- Terra de semeadura, olival, casas de habitação, casa de lenha. -Norte e Poente- Caminhos públicos; Sul e Nascente- Virgílio Torres- V.V. 280$00-Artigos 151 e 67 (antigo)- Desanexado o n° 159.

8° A A. é filha de D.

9° O prédio urbano objecto da doação foi construído e inscrito na matriz sob o artigo 151 da C anteriormente a 7 de Agosto de 1951.
III

CUMPRE DECIDIR

Temos assim que o prédio urbano objecto da doação impugnada foi construído e inscrito na matriz sob o artº151 da C anteriormente a 7 de Agosto de 1951-supra II-9.
O edifício foi construído em terreno do prédio misto denominado "Quinta .... ".

À data da construção estava em vigor o DL 46 673 de 29-11-1965, que no artº10º proibia anúncio de venda e venda ou promessa de venda de terrenos, compreendidas em loteamento.
Tendo surgido discrepâncias na jurisprudência sobre as consequências do incumprimento desse preceito, veio a ser lavrado o assento de 21-7-87 (1) do seguinte teor:
"No domínio da vigência do DL 46 673 de 29-11-1965, a falta de licença de loteamento não determina a nulidade dos contratos de compra e venda de terrenos com ou sem construção, compreendida no loteamento".

Sem pôr em causa a doutrina do assento, sustentam os recorrentes que a data a considerar não é a da construção do prédio ora doado mas a do contrato de doação de 29-8-86.
Nessa data, estava em vigor o DL. 400/84 de 31-12, que no artº57ºa 60º comina a nulidade da doação realizada, uma vez que não foi licenciado o loteamento nem na escritura se mencionou o respectivo alvará.

Responde a R. juntando cópia de parecer que tem mantido sobre esta hipótese o Conselho Técnico dos Registos e Notariado, publicado no Boletim dos Registos e do Notariado, Julho, 7/2000 (vidé fl. 74 e seg.).
Aí se lê:
"O acto material de incorporação no solo de edifício construído até à entrada em vigor do DL 289/73 de 6-6, operava, só por si, a divisão do prédio rústico onde se erigira a construção, provocando a separação, como prédio autónomo, do terreno de implantação do edifício, bem como do terreno adjacente que então lhe tenha ficado a servir de logradouro.".

A doutrina exposta é a que resulta da lei.

A divisão operou-se com a construção efectiva, que logo foi levada à matriz.

Podia a falecida doadora ter registado desde logo o novo prédio-artº42º-5 do CRP actual (ver ainda o artº134º do CRP aprovado pelo DL 42 565 de 8-10-59).
E podia tê-lo alienado.
Isto antes da entrada em vigor do DL 289/73.
Não faria sentido que perdesse esse direito após a entrada em vigor daquele diploma.
O artº1º do DL 400/84 refere as "acções que tenham por objecto a divisão em lotes...".
Não diz "negócios jurídicos" como pretendem os AA.
o nº2 do artigo veda todas as operações materiais preparatórias para construção, citando nomeadamente destruição de vegetação, etc.
Não se preocupa em 1ª linha com negócios jurídicos, que até podem ser muito anteriores à vigência daquele diploma.
Pode um terreno ter sido vendido muito antes, para construção, e só se iniciarem os trabalhos necessários já depois da vigência do DL 400/84.
Este aplicar-se-á.
As disposições dos artº57º e seg., estes visando sim os negócios jurídicos que "impliquem directa ou indirectamente o fraccionamento" inserem-se no cap. X-Disposições Cautelares.
São dispositivos "cautelares" que visam frustrar eventual (e em perspectiva) fraccionamento material.

Este regime era já o do DL 289/73 de 6-6 (vidé artº1º e 27º).

No caso dos autos, não foi isso que aconteceu.
O prédio doado fora destacado havia muitos anos e era juridicamente um prédio autónomo, irrelevando a circunstância de ainda não estar inscrito como tal no registo predial.
Após a entrada em vigor do DL 400/84 foi doado.
Esta doação não cai na alçada daquele diploma.
As operações materiais de construção do imóvel e de destaque da Quinta .... havia muitos anos tinham decorrido.
Essas é que importavam ao regime do DL 400/84, como se disse.

O assento de 21-7-87 vale hoje como acórdão de uniformização de jurisprudência (artº17º-2 do DL 329-A/95 de 12-12).
Respeita-se aqui a sua doutrina.

Em face do exposto, nega-se a revista.
Custas pelos AA.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2002.

Nascimento Costa
Dionísio Correia
Quirino Soares

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(1) in BMJ 369, pg. 199. O assento veio a ser anotado por Eridano de Abreu in O Direito, ano 121, III, pg. 557