Sumário

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - "A" intentou acção com processo ordinário contra B, seu filho menor C e marido D, pedindo que se declare que o falecido marido da ré se obrigou a transferir para o autor o direito a uma sexta parte indivisa de imóvel que identifica e se opere pela sentença a transmissão a favor do autor da propriedade do direito em questão ou se condene os réus a outorgar escritura de transferência do mesmo direito para a titularidade do autor, mais se condenando os réus, no caso de não procederem à outorga referida, a pagar ao autor, solidariamente, uma indemnização por danos causados.

Alegou que a mãe do ora autor declarou fazer doação a seu neto de um sexto indiviso de um prédio rústico, sendo, contudo, sua intenção transmitir a titularidade da Quinta em causa para os seus três filhos, um dos quais o ora autor. A ré, viúva do falecido filho, recusa-se a transferir para o autor o direito em causa.

A ré, por si e em representação do filho menor, sustentou que por decisão do Supremo Tribunal de Justiça ficou definitivamente assente que o referido sexto da Quinta em questão pertence aos réus contestantes. Não há, diz, qualquer fundamento que imponha aos réus a obrigação de transmitirem para o autor o direito em causa.

O processo prosseguiu termos, tendo em saneador-sentença a acção sido julgada improcedente.

Apelou o autor.

O Tribunal da Relação confirmou o decidido.

Inconformado, recorre o autor para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:
- Entre E e F (respectivamente, mãe e filho do ora autor) foi estabelecido um negócio fiduciário, nos termos do qual;
- A mãe do autor fez doação ao F do direito a 1/6 da descrita Quinta de Rape, mas obrigando-se o F a transferir esse direito para a titularidade do autor quando este o solicitasse;
- A doadora quis proceder a essa atribuição patrimonial a favor do neto, mas vinculando-se este a só exercitar o seu direito em vista de certa finalidade (futura transferência da respectiva titularidade para o ora autor);
-Trata-se de um negócio admitido pelo ordenamento jurídico português, face designadamente ao disposto no artigo 405º do C. Civil;
- Sendo certo que o fim prosseguido pela doadora (fiduciante) e pelo donatário (fiduciário) era inteiramente legítimo;
- O F sempre reconheceu, quer perante a doadora, quer perante todas as pessoas das suas relações, a sua obrigação de transferência do bem em causa para o autor;
- Esse reconhecimento resulta de todos os factos alegados na p.i., de entre os quais se salienta a outorga de procuração irrevogável a favor do autor datada de 12.03.1987 (logo poucos dias depois da escritura de doação);
- Os réus B e filho, como sucessores do F (entretanto falecido), estão obrigados a cumprir o "pactum fiduciae" por este assumido, mas recusam-se a cumprir tal obrigação;
- Como esta é passível de execução específica, o autor tem direito a obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial dos faltosos, nos termos do artigo 830º do C. Civil;
- Quando, porventura, assim não seja entendido, deverá sempre reconhecer-se e declarar-se que ao autor assiste o direito creditório de ver celebrada a seu favor, pelos réus, a escritura pública de transferência da propriedade da sexta parte indivisa da Quinta de Rape;
- Devendo os réus ser condenados a cumprir essa obrigação;
- E condenados ainda a, não o fazendo, indemnizarem o autor por todos os danos, incluindo lucros cessantes, que este último sofrer em resultado desse incumprimento, indemnização essa a liquidar em execução de sentença, por não ser possível discriminar nem quantificar ainda os prejuízos que resultam para o autor da não celebração a seu favor da escritura de transferência da propriedade do direito imobiliário em causa;
- Aliás, o comportamento dos réus integra um manifesto abuso de direito, consoante se demonstrou na p.i.;
- Incorrendo os réus em responsabilidade civil contratual (como salienta Pedro Pais de Vasconcelos, na obra e loc. Citados, "o fiduciário infiel deve indemnizar os prejuízos causados pela mora, pelo incumprimento definitivo, pelo incumprimento defeituoso, nos termos gerais da responsabilidade civil");
- Finalmente, o autor alegou ainda, subsidiariamente, o regime jurídico do enriquecimento sem causa, como fundamento derradeiro da sua pretensão, nos termos constantes dos artigos 38º a 41º da p.i.;
- A acção contém todos os elementos da decisão do mérito, devendo considerar-se provados todos os factos alegados na p.i.;
- E, consequentemente, devem ser julgados provados e procedentes os pedidos formulados nas alínea a) e b) da parte final da p.i.; e, se por hipótese não proceder o pedido da alínea b), devem ser julgados provados e procedentes os pedidos constantes das alíneas c) e d) da mesma p.i.;
- O acórdão recorrido violou, designadamente, o disposto nos artigos 405º, 830º, 219º, 762º, 798º, 562º a 572º, 473º, 474º, 479º e 480º, todos do C. Civil.

Contra-alegando, o recorrido menor defende a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Vem dado como provado:

Por escritura de doação realizada no dia 4 de Março de 1987 no 2º Cartório Notarial de Viseu, lavrada a fls. 13 e seguintes do Livro nº 5-E, E, declarou doar, a F, 1/6 da Quinta de Santo António do Rape, sita ao Vale do Rape, freguesia e concelho de Sernancelhe, com a área de 667.675 metros quadrados, a confrontar do Norte com herdeiros de G e herdeiros de H, do Sul e do Nascente com caminhos e Poente com I, inscrito na respectiva matriz sob os artigos 1028, 1047, 1050, 1163, 1342, 1349, 1677 e 1839;

O referido F foi representado nessa escritura pelo autor que declarou aceitar;

O referido F, em 12 de Março de 1987, outorgou uma procuração no Consulado Português de Newark, USA, dando poderes ao autor para em seu nome comprar, vender, hipotecar e ainda partilhar ou dividir o mencionado 1/6;

F e B, casaram no dia 23 de Março de 1989, sem convenção antenupcial;

C, nasceu no dia 22 de Dezembro de 1989, na freguesia de Santa Maria de Viseu, concelho de Viseu;

Foi registado na Conservatória do Registo Civil de Viseu como filho de F e de B;

F faleceu no dia 24 de Dezembro de 1990, em Viseu;

Deixou como únicos herdeiros os referidos B e C;

Em 7 de Março de 1991, no Cartório Notarial de Celorico da Beira, o autor, em representação de seu filho, declarou, por escritura pública, vender o 1/6 identificado;

Por acórdão do STJ de 18 de Maio de 1999, proferido no âmbito da acção nº 193/91 do 2º Juízo Cível do Tribunal de Viseu, a referida venda foi julgada ineficaz em relação a B e C;

D e B casaram no dia 30 de Novembro de 1996, sem convenção antenupcial.




III - A mãe do autor fez doação de 1/6 de uma quinta a um filho deste.

Sustenta o autor, aqui recorrente, que se está perante um negócio fiduciário, nos termos do qual o seu filho (neto da doadora) se obrigou a transferir esse direito para a titularidade do autor, quando este o solicitasse.

Tendo falecido o donatário, a viúva-ré recusa transferir o direito em causa para o autor.

Daí a acção.

No acórdão recorrido considerou-se que a ter existido o pacto fiduciário, o mesmo teria sido celebrado sem submissão à forma legal exigida. Com esse fundamento foi a acção julgada improcedente, como já o fora na 1ª instância.

Recorre o autor, defendendo a tese da existência e validade de um negócio fiduciário.

É esta a questão de fundo a resolver.

Pode entender-se por negócio fiduciário o negócio atípico pelo qual as partes adequaram através de um pacto - "pactum fiduciae" - o conteúdo de um negócio típico a uma finalidade diferente da que corresponde ao negócio instrumental usado por elas.

Sendo a fidúcia muito difícil de definir, dadas as cambiantes com que se apresenta, entendem alguns autores que é preferível proceder à descrição de tal negócio do que à definição do mesmo. Tratar-se-á assim de um "contrato atípico constituído geralmente por referência a um tipo contratual conhecido, susceptível de ser adaptado a uma finalidade diferente da sua própria, através de uma convenção obrigacional de adaptação" - Pedro Pais de Vasconcelos - "Contratos Atípicos" - Reimpressão, Almedina, pág. 259.

Constitui, saliente-se um único negócio e não uma dualidade negocial.

O dono do negócio, que é quem confere os poderes e o fiduciário a quem são conferidos, querem celebrar o negócio, não existindo assim simulação, mas não querem o negócio com todas as consequências jurídicas, todos os seus efeitos típicos, mas tão só para certo fim específico. O fiduciário fica obrigado a usar os poderes apenas para o fim tido em vista pelo dono do negócio.

É evidente que os contratos fiduciários assentam na confiança depositada pelo fiduciante no fiduciário, tendo a convicção firme de que este irá cumprir a sua vontade.

Entre as modalidades possíveis de negócio fiduciário contam-se a "fiducia com anico", que contempla, na tese do recorrente, a hipótese dos autos. Segundo aquele a mãe do autor doou ao neto um direito, comprometendo-se este a não usar dos seus poderes a não ser para transferir para o autor esse mesmo direito. É um exemplo de escola da "fiducia com amico" - Prof. Carvalho Fernandes - "Teoria Geral do Direito Civil", 2ª ed., pág. 263/264.

Não tem sido pacífica a admissibilidade de tal negócio jurídico.

No domínio do Código de Seabra era prevalente a tese da invalidade. Escreveu a propósito o Prof. Manuel de Andrade - "Teoria Geral da Relação Jurídica", Almedina, 1972, II, pág. 178, que "Não sendo válidos entre nós, portanto, os negócios fiduciários, segue-se que os interessados para realizarem objectivos semelhantes àqueles que seriam atingidos mediante esse negócio, terão de utilizar - sempre ou quase sempre - a simulação, fingindo concluir alguns dos negócios translativos causais previstos na lei (venda, doação, etc)".

Não é esse hoje o entendimento dominante.

O princípio da autonomia privada, que é uma ideia fundamental do nosso ordenamento jurídico-civil, tem como meio de actuação privilegiada o negócio jurídico.

É evidente que se a "fiducia", designadamente a "fiducia com creditore", envolver fraude à lei ou não se demarcar suficientemente da simulação relativa, existirá uma invalidade, mas por esse motivo e não pela causa "fiduciária".

É evidente também que a autonomia privada sofre limitações várias, desde logo a formação do contrato deve ser feita dentro dos limites da lei (artigo 405º do C. Civil), não sendo ainda dispiciendo lembrar os artigos 280º e 294º do mesmo Código, entre outros.

Não existindo nenhum desses obstáculos, parece nada impedir a admissibilidade dos negócios fiduciários.

Admitindo a existência do negócio, questão complexa é a de saber quais as exigências do contrato no que respeita à forma, como contrato atípico que é.

Como é sabido, o formalismo negocial apresenta vantagens: uma maior reflexão das partes na feitura do negócio; maior precisão na formulação da vontade das partes; maior facilidade e certeza de prova; publicidade do acto, além de outras.

Mas certo é que o inconveniente da maior dificuldade na celebração dos negócios e a enorme diminuição da celeridade, faz com que a tendência actual seja no sentido da não exigência de forma.

A nossa lei consagra por isso mesmo a consensualidade, o princípio da liberdade de forma (artigo 219º do C. Civil). Quanto a certos negócios, porém, considera-se que a vantagem da exigência da forma supera os inconvenientes, existindo assim excepções várias ao enunciado princípio.

A regra geral da liberdade de forma tanto vale para os contratos típicos como para os atípicos, já que nenhuma razão ou exigência legal impõe o contrário suscitando, contudo, os atípicos particulares questões.

Mas, igualmente as exigências legais de forma estatuídas para certos tipos contratuais ou a propósito do conteúdo e efeitos dos contratos, valem para todo o tipo de contratos, sejam ele típicos ou atípicos.

Assim, determinando a alínea a) do artigo 89º do Código do Notariado a obrigatoriedade de escritura pública para todos e quaisquer contratos que importem reconhecimento, constituição, aquisição e modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade e impondo a alínea b) do mesmo artigo igual exigência para os contratos que importem revogação, rectificação ou alteração de negócios que, por força da lei ou por vontade das partes, tenham sido celebrados por escritura pública, tal exigência é aplicável a todos os contratos, típicos ou atípicos - Pedro Pais de Vasconcelos, obra citada, pág. 464/465.

Em concreto está em causa uma doação de imóvel celebrada, necessariamente, por escritura pública, sendo tal regime igualmente aplicável a um negócio fiduciário que envolva a modificação subjectiva desse mesmo direito.

Nenhum documento existe no caso em análise que comprove a celebração de um negócio fiduciário.

Nem se pode concluir sequer pela celebração verbal de um qualquer contrato, já que os elementos de facto trazidos até este Tribunal não comprovam a existência de outro negócio jurídico, para além da escritura de doação.

A procuração junta aos autos como elemento de prova, como se defende nas bem estruturadas alegações, não comprova só por si a existência de qualquer contrato. O seu valor foi, aliás, apreciado em acórdão deste Supremo, junto aos autos e transitado em julgado.

Recorde-se que, ao Supremo, como Tribunal de revista só cumpre, em princípio, decidir questões de direito e não julgar matéria de facto, cumprindo às instâncias apurar a factualidade relevante (artigos 722º nº 1 e 729º nº 3 do C. Processo Civil).

Face aos factos não é possível concluir pela existência de qualquer cláusula fiduciária.

Sustenta ainda o recorrente a existência de abuso de direito.

O artigo 334º do C. Civil diz que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida. Por um lado, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico, por outro evitando que observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

Certo é, porém, como escreveu o Prof. Baptista Machado - "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimados", pág. 308, que os princípios jurídicos gerais carecem sempre de "concretização" para se tornarem aplicáveis às situações da vida.

Ora, em concreto a eventual existência de abuso de direito, só se poderia configurar se estivesse provada a existência do negócio jurídico fiduciário.

Então poder-se-ia equacionar se o comportamento dos réus, violador dos princípios da boa fé, não integraria um "venire contra factum proprium".

Também se poderia admitir a título excepcional que a nulidade proveniente da não observância da forma, poderia ter por detrás uma situação de abuso de direito. A verdade, porém, é que não está provada a existência de tal contrato, pelo que não há elementos que apontem para a existência do abuso de direito.

Os mesmos argumentos se aplicam à invocada situação de enriquecimento sem causa.

O único enriquecimento que resulta dos autos tem como causa a doação, não se mostrando que não exista causa justificativa, nem que exista um injusto locuplemento (artigo 473º nº 1 do CC).

Não é assim passível de censura o acórdão em causa.

Pelo exposto nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2002.

Pinto Monteiro

Lemos Triunfante

Reis Figueira