Sumário

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A (e seu marido B) e C (e seu marido D) instauraram contra E acção de processo comum na forma ordinária, que chamaram de reivindicação, pedindo:
a) se declare nulo, por vício de forma, o contrato de arrendamento que celebraram com o Réu;
b) se condene o Réu a reconhecer aos aqui Autores o direito de propriedade sobre o imóvel em questão;
c) se condene o Réu a restituir aos Autores o imóvel, livre de pessoas e coisas;
d) se condene o Réu a pagar aos Autores a quantia de 5.400.000 escudos, a título de indemnização pela ocupação e utilização do referido imóvel, desde Abril de 1995 até à data da propositura, acrescida das prestações mensais que se venham a vencer, bem como dos juros vencidos, à taxa de 15% ao ano, no montante de 2.508.437 escudos
e) se condene o Réu a pagar aos Autores o montante de 3.325.831 escudos, referente ao condomínio, transferência da posição da Grula, imobilizado, existências, cedência da carrinha Toyota, crédito da comissão da Grula e água,
f) perfazendo, assim, o total em dívida 11.234.268 escudos
g) e se condene o Réu nos juros vincendos, à taxa de 15%, até integral pagamento.

Citado, o Réu contestou, por excepção (ineptidão da petição inicial, a gerar nulidade de todo o processo, por ininteligibilidade e contradição entre pedido e causa de pedir), e por impugnação (incumprimento do contrato promessa imputável aos Autores).
E reconveio, pedindo:
a) se declare a resolução do contrato promessa, por incumprimento dos AA,
b) se condenem os Autores a pagar-lhe a indemnização de 14.068.973 escudos (assim achada: 1000 contos como dobro do sinal prestado, 3.068.973 escudos de valores pagos nos termos do contrato, 32.203.397 escudos de benfeitorias feitas, tudo deduzido de 22.203.397 escudos, indemnização que o Réu recebeu da seguradora em consequência do incêndio).

Na primeira instância foi a acção julgada parcialmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente e assim:
a) condenado o Réu a pagar aos Autores a quantia de 4.134.425 escudos, acrescida de juros de mora à taxa de 15% sobre a quantia de 1.614.425 escudos, desde a citação até integral pagamento,
b) absolvidos os Autores do pedido reconvencional.
Desta decisão recorreu o Réu de apelação para a Relação de Lisboa, que confirmou a decisão recorrida.

Recorre de novo o Réu, agora de revista, para este Supremo Tribunal.
Alegando, concluiu como assim se resume:
1) Nulidade do art. 668, nº1, d) do CPC, por falta de clareza e ambiguidade do despacho de aperfeiçoamento, podendo e devendo a Relação conhecer dos recursos em matéria de facto, por violação das normas de direito probatório material e por violação do ónus da impugnação especificada - devendo ser ordenada a baixa à Relação, para complementação da matéria de facto omitida, nos termos dos art. 712, 729, nº3 e 730 do CPC. Nulidade também do acórdão por falta de pronúncia sobre questão posta (da qualificação jurídica do contrato).
2) Rectificadas as respostas à matéria de facto, deve, atento o art. 238 do CC, o contrato ser classificado como promessa de arrendamento, conforme art. 410, nº1 do CC, e não como de arrendamento.
3) Deve julgar-se resolvido o contrato promessa por incumprimento dos aqui Autores, porquanto lhes competia marcar a escritura e esta realizar-se dentro do prazo de 60 dias, quando os Autores apenas requereram a licença de utilização 45 dias depois de expirado aquele prazo, e não permitindo a licença a existência de talho no locado, sendo que os Autores haviam assegurado ao Réu que o estabelecimento se encontrava licenciado.
4) Deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que, interpretando o contrato em conformidade com os art. 236, 238 e 410 do CC, julgue procedente o pedido reconvencional.

Os recorridos contra-alegáram em apoio do julgado.
A Relação, em conferência, acordou em que não ocorria a acusada nulidade (acórdão de fls. 316).

Matéria de facto.
Factos dados como provados nas instâncias.
a) os Autores são os legítimos proprietários da fracção "A" correspondente à loja n.º... do Centro Comercial Santo António, em Santo António dos Cavaleiros, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures, sob o n.º 041 e inscrito na matriz sob o art.º 5178, freguesia de Santo António dos Cavaleiros (A);
b) com data de 3 de Março de 1995, os Autores e o Réu outorgaram o denominado "contrato promessa de arrendamento" de fls. 14 a 18, cujo teor se dá por reproduzido (B);
c) nesse acordo foi consignado que: "a renda anual é de 2.160.000$00 a pagar em mensalidades de 180.000$00 (...). O local arrendado destina-se ao exercício de actividade de supermercado, padaria e talho para o qual está devidamente licenciado (...). A escritura de arrendamento deve ser celebrada no prazo máximo de 60 dias eventualmente prorrogável por mais 30, caso os senhorios encontrem dificuldades em regularização da situação descrita no § da clausula 1ª. § Os senhorios comprometem-se a realizar todas as diligências necessárias à regularização da situação, correndo por sua conta e risco os atrasos na celebração da escritura daí decorrente ( C);
d) foi ainda estipulado que: "A marcação da escritura de arrendamento incumbe aos promitentes senhorios, que notificarão o promitente inquilino, para a sua realização no prazo mínimo de cinco dias úteis" (D);
e) Na cláusula 18º foi estipulado que: "Verificando-se incumprimento definitivo do contrato, por falta de celebração de escritura de arrendamento, o promitente arrendatário tem direito a receber: o dobro do sinal ora prestado; a devolução de todas as quantias pagas acrescidas do respectivo juro moratório e indemnização correspondente a todas as benfeitorias realizadas no estabelecimento. § Como garantia pelo bom pagamento e liquidação destas tem o promitente arrendatário direito de retenção sobre o estabelecimento comercial e loja arrendado (E);
f) em 25 de Setembro de 1986, a Câmara Municipal de Loures emitiu o Alvará de Licença Sanitária de fls. 19, nos termos do qual foi atribuído licença para explorar mercearia e talho no local a que se reporta o acordo descrito em b) (F);
g) em 18 de Julho de 1995; o Autor D requereu à Câmara de Loures a realização de vistoria no local descrito em b) (G);
h) o Réu detém o uso e fruição do local descrito em b) desde 25 de Abril de 1995 (H);
i) o Réu recusa-se a deixar livre a fracção descrita em b) (I).
j) Aquando da obtenção do alvará, tal só foi possível, abdicando da parte do talho, pois, por alteração legislativa, passou a ser obrigatório o estabelecimento ter 200 m2 para que nele pudesse funcionar o talho (quesito 1º).
l) Na sua altura, os Autores sempre
venderam carne embalada (quesito 2º).
m) A escritura não foi marcada no prazo de 90 dias porque os Autores tiveram dificuldades burocráticas na obtenção do alvará devidamente alterado (quesito 3º).
n) Os Autores informaram o Réu de tal demora (quesito 4º).
o) Os Autores marcaram uma escritura que se destinava à venda da fracção identificada em a) para o dia 26 de Junho de 1996 (quesito 5º).
p) Tendo tudo pronto para a realização da mesma (quesito 6º).
q) O Réu apareceu na entidade bancária ...., que tinha concedido o empréstimo ao Réu, dizendo que não podia assinar a escritura em virtude de ter sido assaltado e de lhe terem roubado 2.000.000$00 e bilhete de identidade (quesitos 7º e 8º).
r) Os Autores marcaram nova escritura para o dia 4 de Julho de 1996 (quesito 9º).
s) No dia 3 de Julho de 1996, houve uma explosão no Centro Comercial, onde se situa o locado (quesito 10º).
t) O Réu não compareceu à escritura marcada para o dia 4 de Julho de 1996 (quesito 11º).
u) O Réu nos finais do mês de Dezembro de 1995, mostrou-se interessado em comprar a fracção identificada em a) (quesito 12º).
v) Autores e Réu entraram em fase de negociações de compra e venda relativamente ao locado acordaram o preço de venda em 28.000.000$00 (quesito 13º).
x) Desde o mês de Maio de 1995 e até à data da propositura da acção, o Réu deixou de pagar as contraprestações pela ocupação da aludida fracção no valor de Esc. 180.000$00/ mensais (quesito 14º).
z) O Réu deve aos Autores o montante de 45.452$00 relativo ao condomínio de 1995; 840.000$00 relativo ao imobilizado; 2.048.973$00 relativo a existências do supermercado e 180.000$00 relativo a uma cedência da carrinha Toyota TR ..... (quesito 15º).
aa) O Réu pagou 500.000$00 no momento da celebração do acordo referido em b) e 1.000.000$00 em 7 de Julho de 1995 (quesito 17º).
bb) O Réu a partir do mês de Maio inclusive suspendeu o pagamento dos condomínios (quesito 19º, resposta restritiva).
cc) O Réu colocou no estabelecimento equipamentos e realizou aí obras (quesito 25º).
dd) A explosão referida em s) deixou o Centro Comercial praticamente destruído (quesito 26º).
ee) A loja em que situava o supermercado deixou de existir fisicamente (quesito 27º).
ff) Com a explosão o Réu perdeu todos os seus bens e investimentos efectuados no estabelecimento (quesito 28º).
gg) Na sequência da explosão referida em s) e dd), o Réu foi indemnizado pela Seguradora em Esc. 22.203.397$00 (quesito 32º).

Como decidiram as instâncias.

Na primeira instância entendeu-se que o contrato celebrado foi um contrato de arrendamento (ou, a entender-se que era um contrato promessa de arrendamento, então o Réu teria perdido o interesse no arrendamento, pois que entrou em negociações para a compra, motivo por que o arrendamento deixara de ter interesse e o incumprimento do contrato promessa não era imputável aos AA).
Depois, entendeu-se ser exigida escritura pública para a validade do contrato promessa: art. 7, nº2 do RAU, vigente à data do contrato (03/03/95), cuja falta origina nulidade (art. 220 do CC) e podendo esta ser conhecida oficiosamente (art. 5, nº1 do DL 321-B/90, RLJ, ano 126-198 e Januário Gomes, Arrendamento Comercial, 2ª edição, 51); de qualquer modo, a nulidade foi invocada pelos AA.
A declaração de nulidade importa restituição de tudo o prestado, ou valor equivalente (art. 289, nº1 do CC), pelo que deve o Réu restituir o local e deve prestar aos AA o valor acordado pelo seu uso, desde 03/05/95 (data em que deixou de pagar as "rendas") até Julho de 1996 (quando a loja ardeu), ao abrigo dos art. 405 e 406 do CC.
A Relação seguiu no mesmo trilho.

Mas, nem a primeira instância, nem a Relação se pronunciaram, nem pelo reconhecimento da propriedade aos AA (o que não será de maior, na medida em que na condenação parece estar implícita, por inquestionada a propriedade), nem sobre o terceiro pedido dos AA: condenação do Réu a restituir o local (que poderá considerar-se prejudicada pela solução dada).

Breve comentário à matéria de facto.

A matéria de facto dada como provada é em si mesmo um tanto incongruente, incongruência que todavia não gera nulidade por ser ultrapassável em sede interpretativa.
Assim, os quesitos 20 a 24 e 29 continham matéria de facto favorável ao Réu, que não foi dada como provada. Porém, em grande parte, ela deduz-se das licenças de utilização e do contrato promessa (fins do arrendamento), existentes nos autos e dados como reproduzidos. De facto, verificou-se que o prédio não tinha, no momento do contrato promessa, a licença de utilização carecida para os fins do contrato prometido (supermercado, padaria e talho), mas só para mercearia e talho; actividade autorizada que depois ficou limitada a mercearia, pelo que não era possível celebrar a escritura de arrendamento para os fins prometidos.
Por outro lado, se em 03/07/96 houve uma explosão e incêndio, ficando a loja totalmente destruída, há duas consequências a tirar: não seria válido celebrar contrato de venda (ou de arrendamento) da loja, porque inexistente esta; não haveria financiamento para a compra, por destruído o local a comprar.
Nada disto foi considerado na sentença e no acórdão da Relação.
Mas nós podemos considerar, porque isso resulta de factos provados e de documentos juntos não impugnados; e em parte é matéria de direito.

Esquematizando e comentando.

- Em 03/03/95 celebraram as Partes o contrato promessa em causa, de arrendamento (por ora não discutimos a questão da exacta natureza do contrato: se contrato promessa de arrendamento, se contrato de arrendamento), para os fins de: supermercado, padaria e talho, e declarando que o local estava devidamente licenciado para esses fins.
- O local estava devidamente licenciado, sim, e desde 25/09/86, mas para mercearia e talho (doc. de fls. 19).
- A escritura era a celebrar em 60 dias, portanto, até 03/05/95 (mas prazo este prorrogável por mais 30 dias, se os senhorios tivessem dificuldades na regularização da propriedade exclusiva da fracção [de facto, a fracção estava registada em nome de três pessoas, sendo as Autoras mulheres duas dessas pessoas; mas, em 03/05/95, elas registaram em seu favor a terça parte que lhes faltava]).
- Portanto, não foi a circunstância de não serem as Autoras proprietárias exclusivas da fracção prometida arrendar que impediu a celebração da escritura até 03/05/95: a escritura de arrendamento devia ser até 03/05/95 e nessa data estava já a fracção registada em nome exclusivo das Autoras.
- O que inviabilizou a escritura de arrendamento (comercial) foi outra coisa: foi o art. 9º do RAU (DL 321-B/90, de 15 de Outubro), segundo o qual "só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido seja atestada pela licença de utilização, passada pela autoridade municipal competente, mediante vistoria realizada menos de oito anos antes da celebração do contrato" (nº1), e "A mudança de finalidade no sentido de permitir arrendamentos comerciais deve ser sempre previamente autorizada pela Câmara Municipal, seja através de nova licença, seja por averbamento à anterior" (nº3) e "não podendo ser celebrado qualquer contrato de arrendamento sem essa menção" (nº4).
- É que, se na data do contrato promessa a loja se encontrava, e desde 1986, licenciada para mercearia e talho (fls. 19) (e não também para supermercado e padaria), em virtude da ampliação do objecto do contrato, de forma a abranger supermercado, o licenciamento (agora para supermercado, e também para padaria e talho) passou, porque agora também para supermercado, a exigir uma área mínima de 200 m2: Portaria n.º 22.970, de 20/10/1967. De facto, esta Portaria exige uma área mínima de 200m2 para poder ser licenciada a actividade de supermercado: seu nº1, c).
- Decerto por isso que o local foi agora licenciado apenas para mercearia (doc. de fls. 21).
- Portanto, não terá sido exactamente "uma alteração legislativa posterior ao contrato promessa" que impossibilitou o arrendamento para os fins prometidos (como um tanto heterodoxamente se diz em sede de matéria de facto na resposta ao quesito 1º), mas sim o facto de nesses fins ter sido incluída a actividade de supermercado, para que a lei exige uma área mínima de 200 m2 - conjugada com as circunstâncias de o RAU exigir exibição do alvará de licença para os fins do contrato para o arrendamento comercial e de ser exigida escritura pública, por à situação serem aplicáveis os art. 1029 do CC e art. 89, j) do CNotariado vigente à altura, agora art. 80, nº2, m) do CNotariado actual, não obstante a ulterior publicação do DL 64-A/00, que dispensou a escritura pública: a lei aplicável é a vigente à data do facto gerador, porque dispõe sobre as condições de validade substancial : art. 12, nº2, 1º segmento, do CC.
- Se as partes podem fazer agora o contrato de arrendamento sem necessidade de escritura pública, o certo é que o prazo convencionado para tal se esgotou há muito (em 03/05/95), além de que no documento escrito teriam de fazer constar uma coisa que não existe: que o local se encontra licenciado para os fins prometidos contratar (art. 8, nº2, c) e art. 9, nºs 1, 3 e 4 do RAU).
- Por outro lado, como a licença em vigor era em nome da anterior proprietária (F, como se vê de fls. 19 confrontada com fls. 12), havia (crê-se, pois que nem foi alegado) que emitir nova licença agora em nome dos actuais proprietários. Daí que o anterior Alvará tenha sido aditado com o nome do novo utilizador e alterado também em que apenas para mercearia (fls. 21).
- Portanto, ficavam fora da licença as actividades de supermercado, padaria e talho - que eram precisamente os fins para que o arrendamento foi prometido. Com aquele Alvará decerto o Notário não faria a escritura do arrendamento comercial para os fins do contrato promessa, porque então seria para fins não autorizados pela CM, face ao art. 9º do RAU.
- A actividade permitida no local é apenas mercearia, a qual portanto não coincide com as actividades contratadas: supermercado, padaria e talho. Este parece-nos ser o busílis da questão.
- Portanto, até 03/05/95 a escritura não foi marcada pelos Autores, como o não foi depois disso, porque não podia ser, dada a falta de autorização de utilização do espaço para os fins pretendidos no prometido arrendamento.
- Em 03/05/95 os AA incumpriram o contrato promessa, motivo por que o Réu deixou de lhes pagar a contraprestação do uso do local, a partir de Maio de 1995.
- O que se diz depois sobre a projectada venda não prejudica o que se disse antes sobre o prometido arrendamento: foi decerto porque não podiam celebrar uma escritura de arrendamento (ao tempo ele só era válido por escritura pública e dela devia constar a licença de utilização para os fins do contrato), por falta de Alvará de utilização para os fins pretendidos, que as partes, em alternativa, cogitaram celebrar uma compra e venda, para que não se exigia tal alvará (bastando a genérica licença de utilização - e isto só porque o prédio é posterior a 1951).
- No entanto, a sorte da cogitada venda não interessa para aqui, pois a causa de pedir não é a venda, mas a promessa de arrendar.
- Os AA marcaram escritura de venda para 26/06/96, data em que já haviam incumprido o contrato promessa de arrendamento, e a que o Réu não compareceu. No entanto, repete-se, a causa de pedir não é a não realização da venda, mas o contrato promessa de arrendamento, pelo que a não realização da venda é irrelevante.
- É então que ocorre uma explosão no prédio, que ficou praticamente destruído, deixando a loja de existir fisicamente. Isto quer dizer que o prometido arrendamento (bem como a cogitada venda) se tornou, a partir de então, juridicamente impossível, por inexistência de objecto.
- Não se pode tirar qualquer conclusão do facto de o Réu não ter comparecido à nova escritura, marcada para 04/07/96, visto que na véspera a loja ardeu e deixou de existir fisicamente. Portanto, o objecto não existia. A escritura de venda, se se celebrasse, seria nula por falta de objecto.

Voltemos às questões postas no recurso.

A Relação teve dificuldade em entender qual a nulidade acusada à sentença e nós temos dificuldade em entender qual a nulidade acusada ao acórdão.
A Relação entendeu não alterar a matéria de facto (fls. 240 e v.º). Este Tribunal não pode censurar o não uso pela Relação dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 712 do CPC.
No que toca a falta de pronúncia sobre questão posta, é evidente a falta de razão, pois a Relação pronunciou-se sobre todas as questões que lhe foram postas em recurso.

O contrato celebrado é um contrato promessa de arrendamento.
Não é nulo por falta de forma porque nada na lei obriga a celebrar um contrato promessa por escritura. Basta que o seja em documento escrito e assinado: art. 410 do CC.
O que pode ser nulo por falta de forma é o arrendamento.
É possível qualificar como contrato de arrendamento um contrato promessa de arrendamento em que houve tradição da coisa e início do pagamento da contraprestação convencionada. No entanto, uma tal qualificação só é possível e tem sentido se se pretende a sobrevivência do negócio - não já quando se pretende a sua resolução ou declaração de nulidade.
No nosso caso, os AA pedem a declaração de nulidade do contrato de arrendamento, por falta de forma (escritura); o Réu pede a resolução do contrato promessa, por incumprimento dos AA. Nenhuma das partes deseja a sobrevivência do negócio.
De facto, aqui, a causa da eventual nulidade (do contrato de arrendamento) corporiza e confunde-se com o incumprimento do contrato promessa.
Por isso, é irrelevante tratar de qualificar o contrato em causa como de arrendamento, porque a questão é anterior e se resolve noutra sede: incumprimento pelos AA do contrato promessa.

O contrato de arrendamento (ou seja, o contrato promessa de arrendamento qualificado como contrato de arrendamento) só será nulo porque não foi reduzido a escritura pública. Todavia, a falta de escritura configura incumprimento do contrato promessa. O contrato promessa foi incumprido pelos AA, que tinham de marcar a escritura dentro de 60 dias, portanto até 03/05/95, prazo que não observaram e já vimos porquê. Não cumpriram a sua obrigação, e nem a podiam cumprir, pois se sabe que o local não dispõe de licença da utilização para os específicos fins contratados.
Por isso, o que há é incumprimento do contrato promessa imputável aos AA, que eram quem tinha de marcar a escritura em 60 dias, e não o fizeram, e quem tinha de pôr as condições necessárias para utilização para os fins contratados, o que não conseguiram.
Portanto, não há que falar em nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma, mas sim em incumprimento do contrato promessa de arrendamento, por falta de marcação da escritura no prazo (e, afinal, impossibilidade legal de a marcar). O incumprimento é imputável aos AA.
Se num caso destes os AA pudessem invocar a existência de um contrato de arrendamento e valer-se da sua nulidade por falta de forma, então estaríamos claramente a permitir que agissem em manifesto abuso de direito, porque estariam a invocar em seu proveito uma nulidade cuja causa foram eles mesmos a colocar (ou que não removeram): art. 334 do CC.
Os AA não podem invocar, sem abuso, essa hipotética causa de nulidade, porque foram eles quem lhe deu lugar, ou quem a não removeu.

O Réu pede se declare resolvido o contrato promessa, porque incumprido pelos AA.
Já vimos que tem razão: os AA não marcaram a escritura no prazo em que o deviam fazer (e, na verdade, repete-se, nem o podem fazer, por falta de licença de utilização para os fins contratados). Assim, incumprido o contrato promessa pelos AA, pode o Réu pedir a resolução do mesmo contrato.
Improcedente o pedido de declaração da nulidade do arrendamento, procede o de resolução do contrato promessa.

Quais as consequências?

Já vimos que os AA incumpriram em 03/05/95.
O Réu deixou de pagar as contraprestações de Maio de 1995 e seguintes, porque o contrato promessa foi incumprido nessa altura. E manteve-se na posse do local, porque tanto o autorizava a cláusula 18ª do contrato promessa, acima referida, que lhe conferia o direito de retenção do estabelecimento e loja até lhe serem pagos o sinal em dobro, a devolução das quantias pagas e indemnização pelas benfeitorias feitas.
Os efeitos da resolução, entre as partes, são, em princípio, os da nulidade: art. 433 do CC: portanto, deve ser restituído tudo o prestado: art. 289 do CC.

O Réu não pagou aos AA:
a) as contraprestações de Maio de 1995 a Julho de 1996 (data do incêndio) (nem as posteriores) - mas não tem que as pagar porque, não possuindo o local a necessária licença de utilização para os fins do contrato, não pode legalmente exercer nele essas actividades, pelo que a dita "contraprestação" seria de nada;
b) de diversos contratados, a quantia de 3.114.425 escudos, conforme provado.
O Réu pagou aos AA:
a) 500 contos, como sinal, de que tem direito a receber o dobro, nos termos contratuais, por haver incumprimento definitivo do contrato promessa;
b) mais 1.000 contos em 07/07/95, mas não se sabendo a que título.

Operando a devida compensação, tem o Réu a pagar aos AA a quantia de 2.114.425 escudos, assim encontrada: 3.114.425 - 1.000.000 = 2.114.425 escudos.
Com juros às sucessivas taxas legais, desde a citação.

Decisão.
Pelo exposto, acordam em conceder em parte a revista e assim revogam o acórdão recorrido e decidem:
a) condenar o Réu a reconhecer que os AA são proprietários da fracção em questão;
b) julgar improcedente o pedido de declaração de nulidade do falado contrato de arrendamento, dele absolvendo o Réu;
c) julgar procedente o pedido do Réu, de resolução do contrato promessa de arrendamento, por incumprimento dos AA, declarando-se resolvido o mesmo;
d) consequentemente devendo o Réu restituir o local, imediatamente, livre de pessoas e coisas;
e) condenar o Réu a pagar aos AA a quantia de 2.114.425 escudos, com juros às sucessivas taxas legais desde a citação.

Custas a meias.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2002
Reis Figueira
Barros Caldeira
Faria Antunes