Sumário

I - Uma escritura pública só seria falsa se, nos termos e para os fins do nº 2 do art. 372º do C. Civil nela se tivesse consignado que os outorgantes declararam coisa diferente daquilo que na realidade disseram.
II - A desconformidade entre as declarações dos outorgantes, consignada na escritura, e a realidade pode ser demonstrada em sede de prova testemunhal sem que tal implique a arguição de falsidade do documento.
III - Num contrato de compra e venda de imóvel as partes podem acordar os preços e declarar inferior ao valor de mercado / efectivo da coisa.
IV - Os motivos da diferença entre o valor do mercado e o valor do preço do contrato da coisa prometida podem ser alcançados através da prova desse pendente testemunho

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e mulher B intentaram, a 6 de Março de 2000, acção declarativa, constitutiva, de preferência, contra C e mulher D, pedindo que se reconheça aos autores o direito de se substituírem aos réus, como compradores, no contrato de compra e venda de 12 de Janeiro de 2000 tendo como objecto o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o nº 00252/301087, freguesia do Monte, cancelando-se todos os registos que tenham por objecto a inscrição da transmissão a favor dos réus.
Para tanto, em síntese, os autores alegaram que são arrendatários de parte do identificado prédio; e que os réus o compraram, pelo preço de 12.000.000$00, por contrato da referida data, sem que as vendedoras tenham oferecido a preferência aos autores.
Os réus contestaram pugnando pela absolvição do pedido.
Para tanto, também em síntese, os réus alegaram que se tratou de contrato misto de compra e venda com doação, tendo sido pagos apenas 4.200.000$00, o que foi preço vil, meramente simbólico, constituindo a diferença para o preço de mercado, superior a 20.000.000$00, uma atribuição gratuita. Além disto, constitui abuso de direito a pretensão dos autores de preferir no contrato, adquirindo prédio de valor superior a 20.000.000$00, quer pelo preço declarado, quer pela quantia efectivamente paga.

A Vara de Competência Mista Cível e Criminal do Funchal, por sentença de 9 de Outubro de 2001, julgou a acção procedente, pelo preço de 4.200.000$00 (tendo determinado a devolução aos autores da quantia de 7.800.000$00, diferença entre o depositado e aquele preço), e ordenou o cancelamento das inscrições em relação ao prédio a favor dos réus.
Para tanto, entendeu-se que o contrato é de compra e venda, e não misto de compra e venda com doação; e que assiste aos autores, como arrendatários, o direito de preferir no contrato.
Em apelação dos réus, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 23 de Maio de 2002, revogou a sentença e absolveu os réus do pedido.
De harmonia com o respectivo discurso, é criticável, a decisão da matéria de facto da primeira instância, enquanto se julgou não provado o conteúdo de determinados quesitos (respeitantes ao carácter de parcial liberalidade do negócio), com desprezo da prova testemunhal produzida, com invocação do disposto no artº 394º, nº1, do Cód. Civil. Não obstante, a Relação rejeitou o recurso, neste aspecto, atendendo a que os réus não cumpriram o ónus a que se refere o artº 690º-A do CPC.
Entendeu-se, de seguida, que o invocado erro na apreciação da prova não integra a nulidade de oposição entre os fundamentos e a decisão, prevista no artº 668º, nº1, c), do CPC.
Reconheceu-se que na sentença se cometeu a nulidade de omissão de pronúncia (artº 668º, nº1, d), do CPC) em relação à questão do abuso de direito. Aliás, na esteira do acórdão deste Supremo Tribunal de 4 de Março de 1997, a aplicação da figura do abuso de direito mereceria acolhimento. De qualquer modo, esta nulidade não impede o conhecimento do objecto da apelação.
Finalmente, entendeu a Relação, face à factualidade provada, que o contrato de 12 de Janeiro de 2000 integra uma venda amistosa, um negotium mixtum cum donatione, uma venditio donationis causa pretio viliori facta. Ora, o direito de preferência previsto no artº 47º, nº1, do Reg. do Arrend. Urb. não existe nestes casos de contrato misto de compra e venda com doação. Daqui que se haja julgado a acção improcedente.
Inconformados, os autores pedem revista mediante a qual pretendem que a acção seja julgada procedente, pelo preço de 12.000.000$00.
Para tanto, os autores alegam que no acórdão recorrido:
a) se cometeu a nulidade prevista no artº 668º, nº1, b), do CPC enquanto se não desconsiderou o conteúdo das respostas aos quesitos 41º e 42º, com violação do disposto nos artºs 394º, nº2, do Cód. Civil, e 712º, nº1, b), do CPC;

b) se violou o disposto nos artºs 362º, 369º, 370º, 371º e 372º, todos do Cód. Civil, enquanto se alterou o sentido das declarações negociais da escritura de 12 de Janeiro de 2000;

c) se violou o disposto nos artºs 405º, nºs 1 e 2, 875º e 947º, do Cód. Civil, bem como no artº 89º, al.a), do Cód. do Notariado, enquanto se considerou a existência de doação informal apenas estribada em prova testemunhal;

d) se violou o disposto no artº 252º do Cód. Civil enquanto se tomou em consideração a finalidade ou motivo da compra e venda sem acordo a reconhecer a essencialidade dos motivos.
Os réus alegaram no sentido de ser negada a revista.
O recurso não merece conhecimento quanto à primeira questão acima referida, a da alegada nulidade.
É que os autores não colocaram a questão aqui em apreço, a da desconsideração da matéria das respostas aos quesitos 41º e 42º, para ser julgada na apelação, como podiam e deviam ter feito caso pretendessem que fosse apreciada e decidida - artº 684º-A, nº2, do CPC.
Pelo contrário, os autores aceitaram expressamente, sem crítica, tais respostas, como se pode ver dos nºs 3º e 4º, a fls.192, 10º e 11º, a fls.193 da alegação que ofereceram na apelação (o que implica renúncia ao direito de recorrer quanto a tal segmento do julgamento da matéria de facto, nos termos do artº 681º do CPC).
Por isto, a Relação não se ocupou desta questão, nem tinha que se ocupar, não sendo, assim, nulo o acórdão.
E, agora, a revista não pode ter como objecto esta questão visto que os recursos visam a impugnação das decisões recorridas mediante o reexame do que nelas se haja discutido e não a apreciação de questões novas (artº 676º, nº1, do CPC).
No mais o recurso merece conhecimento.
Afastado que ficou o conhecimento daquela primeira questão, a matéria de facto a considerar é a adquirida no acórdão recorrido para cujos termos aqui se remete ao abrigo do disposto nos artºs 713º, nº6, e 726º, ambos do CPC.
Segunda questão: valor probatório da escritura de 12 de Janeiro de 2000.

Os autores sustentam que no acórdão recorrido se violou o disposto nos artºs 362º, 369º, 370º, 371º e 372º, todos do Cód. Civil, enquanto, sem que a força probatória da escritura de 12 de Janeiro de 2000 haja sido ilidida com base na sua falsidade, se decidiu que o contrato a celebrado é misto de compra e venda com doação.
Nos termos do disposto no artº 371º, nº1, do Cód. Civil,
os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (...).
Quer isto dizer que a escritura pública de 12 de Janeiro de 2000 faz prova plena de que a procuradora das vendedoras, em representação destas, e o comprador declararam vender e comprar o identificado prédio, por dado preço, já recebido.

Mas daí não se segue que o conteúdo destas declarações corresponda exactamente à realidade, isto é, a força probatória daquela escritura notarial não vai ao ponto de constituir prova plena de que o preço acordado e efectivamente pago foi o declarado e não outro, de que o preço já se encontrava efectivamente pago quando foi outorgada a escritura e, principalmente, de o preço, seja o declarado, seja o efectivo, corresponder ao valor real do prédio vendido, excluindo a possibilidade de se haver acordado um preço vil com o intuito de atribuir gratuitamente ao comprador a diferença entre o preço e o valor real do bem.
A escritura só seria falsa se, nos termos do artº 372º, nº2, do Cód. Civil, nela se tivesse consignado que os outorgantes declararam coisa diferente daquilo que na realidade disseram.
A divergência entre as declarações dos outorgantes, consignadas na escritura, e a realidade pode ser demonstrada em julgamento sem que tal implique arguição de falsidade do documento.
Assim, no acórdão recorrido não foi violado o disposto naqueles preceitos legais.
Terceira questão: falta da forma legal necessária à celebração de contrato misto.
Os autores sustentam que se violou o disposto nos artºs 405º, nºs 1 e 2, 875º e 947º, do Cód. Civil, e 89º, a), do Cód. do Notariado, enquanto se julgou que o contrato celebrado é misto, no sentido de ter constituído uma compra e venda por baixo preço com o intuito de beneficiar gratuitamente os compradores.
Ora, o certo é que o contrato foi celebrado por escritura pública a qual é a forma adequada à celebração quer do contrato de compra e venda de bens imóveis (artº 875º do Cód. Civil), quer do contrato de doação de bens imóveis (artº 947º, nº1, do Cód. Civil).
Na espécie, celebrou-se um contrato de compra e venda cuja estrutura foi inteiramente respeitada visto que serviu para as vendedoras transmitirem ao comprador o direito de propriedade sobre determinada coisa mediante um preço - artº 874º, do Cód. Civil.
Nada na lei exige que o preço acordado pelas partes corresponda ao valor real, efectivo, de mercado, da coisa.
O preço pode ser de montante superior ou inferior ao do valor real da coisa. Isto pode acontecer pelas mais diversas razões.
Uma destas razões pode ser a de uma das partes, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, querer beneficiar a outra, quer acordando-se e pagando-se um preço superior ao valor efectivo da coisa (de sorte a que o comprador beneficie o vendedor), quer acordando-se e pagando-se um preço inferior ao valor efectivo da coisa (de sorte a que o vendedor beneficie o comprador).

Nestas situações está-se em presença de contrato misto, permitido pelo artº 405º do Cod. Civil.
O contrato, continuando a ser de compra e venda, absorve um elemento do contrato de doação enquanto uma das partes, por liberalidade, faz uma atribuição patrimonial à outra.
Nada exige que este espírito de liberalidade seja expressamente declarado na escritura; ele compagina-se com a objectiva diferença entre o valor de mercado da coisa e o preço. O que está aqui em causa é a finalidade, o motivo dessa diferença de valores que nada impede que seja alcançada por qualquer meio de prova, nomeadamente testemunhal.
Assim, no acórdão recorrido não foram violadas as normas em foco.

Quarta questão: erro sobre os motivos.
Por último, os recorrentes alegam ter sido violado, no acórdão recorrido, o preceituado no artº 252º do Cód. Civil, segundo o qual o erro que recaia nos motivos determinantes da vontade, mas se não refira à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio, só é causa de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo.
No acórdão recorrido esta norma não foi aplicada, nem tinha se o ser.
Não está em causa, na presente acção, nem a existência de um qualquer erro, nem se pede ou discute a anulação do contrato celebrado entre as vendedoras e o réu, este como comprador.
A apontada norma legal não foi violada.
Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em não tomar conhecimento do recurso quanto à alegada nulidade e, no mais em negar revista aos autores.
Custas pelos autores.

Lisboa, 9 de Janeiro de 2003
Sousa Inês,
Nascimento Costa,
Dionísio Correia.