DEPOIMENTO INDIRECTO
VALORAÇÃO
Sumário

I - No caso de depoimento indirecto, se o juiz chama a fonte a depor, aquele (depoimento indirecto) pode ser valorado, mesmo nos casos em que a fonte se recusa, lícita ou ilicitamente, a prestar depoimento, ou simplesmente diz que já não se recorda dos factos.
II - O critério operativo da distinção entre depoimento directo e depoimento indirecto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade, o seu depoimento é directo; se não, é indirecto.
III - Não constitui depoimento indirecto o depoimento de uma testemunha que relata o que ouviu o arguido dizer.

Texto Integral

Proc. nº 195/07.2GACNF.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Colectivo que corre termos no Tribunal Judicial de Cinfães com o nº 195/07.2GACNF foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferido acórdão, depositado em 18.05.2009, que condenou o arguido:
- como autor material de um crime de incêndio p. e p. actualmente pelo artº 274º nºs 1 e 2 al. a) do Cód. Penal e na altura da prática dos factos pelo atº 272º nº 1 al. a) do Cód. Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão);
- suspender na sua execução a pena de prisão pelo período de quatro anos, a contar do trânsito em julgado da decisão;
- subordinar a suspensão da execução da pena de prisão, ao cumprimento por parte do arguido do dever de entregar no prazo de seis meses após o trânsito em julgado do acórdão a quantia de € 250 à C…, e a regime de prova assente num plano individual de readaptação social, sob vigilância e apoio dos serviços de reinserção social.
Inconformado com o acórdão condenatório, dele veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respectivas motivações as seguintes conclusões:
1. O recorrente foi condenado como autor material de um crime de incêndio p. e p., actualmente, pelo artº 274º nºs 1 e 2 al. a) do Cód. Penal e na altura dos factos pelo artº 272º nº 1 al. a) do Cód. Penal;
2. O Tribunal a quo fundamentou os factos dados como provados (ponto II do douto acórdão) em dois depoimentos indirectos, o da testemunha D… e o de E…, e numa conversa havida entre o arguido e a testemunha, F…, na presença da testemunha, G…, Inspector da Polícia Judiciária;
3. Salvo o devido respeito, o tribunal a quo não podia dar como provada a referida matéria de facto, uma vez que os fundamentos que invocou não a podem sustentar por não serem legalmente admissíveis os respectivos meios de prova;
4. Em todo o caso, mesmo que fossem admitidos por lei esses meios de prova que serviram de fundamento para a decisão da matéria de facto, e não são, sempre se encontrava afastada a possibilidade de se darem como provados os factos que o foram, tendo o tribunal recorrido, considerando esta hipótese, incorrido em nulidade da sentença, por se encontrar insuficientemente fundamentada a decisão da matéria de facto, ou, quando outro for o entendimento, em erro notório na apreciação da prova;
5. Assim, no que respeita ao depoimento da testemunha D…, esta é clara em referir que não conhece o arguido e que foram dois indivíduos a referir-lhe que era “o professor”;
6. O depoimento desta testemunha é manifestamente indirecto, não tendo qualquer valor probatório, por não servir como meio de prova, uma vez que não está provado que a inquirição desses dois indivíduos: não era possível por morte dos mesmos; ou por terem sofrido anomalia psíquica superveniente; ou por impossibilidade de serem encontrados;
7. Com efeito, tais indivíduos podiam ser ouvidos se tivesse procurado saber-se, na altura própria, de quem se tratava e se fossem indicados como testemunhas, o que não aconteceu, não podendo agora o arguido suportar uma condenação com base nos depoimentos indirectos em que vem condenado;
8. Como não foram ouvidos, podendo sê-lo, o depoimento prestado, nesta parte, pela testemunha D… não tem valor probatório, não podendo, como tal, fundamentar a decisão de facto, incorrendo assim, o douto acórdão em vício de erro notório na apreciação da prova;
9. De igual modo, o depoimento da testemunha, E…, soldado da GNR, também é um depoimento indirecto, por lhe ter sido dito que se tratava do professor B1…, por informação dos referidos indivíduos que trabalhavam na casa do dito H…;
10. Não vale, pois, do mesmo modo, como meio de prova, por ser depoimento indirecto, o depoimento desta testemunha, pelas razões já invocadas;
11. Deste modo, o tribunal recorrido violou o disposto no artº 129º, segunda parte do nº 1 do C.P.Penal e incorreu em erro notório na apreciação da prova, conforme disposto no artº 410º nº 2 alínea c) do mesmo diploma;
12. Assim, a admissibilidade dos depoimentos indirectos das referidas testemunhas põe em causa os mais elementares princípios de direito em processo penal, designadamente o princípio da imediação e do contraditório e de um processo equitativo;
13. Além disso, o tribunal recorrido, ainda que assim não fosse e é, valorou incorrectamente a prova produzida, de tal sorte que incorreu em erro notório na apreciação da prova;
14. Deste modo, importa ter em conta os depoimentos das já referidas testemunhas, D…, F… e E…, na parte em que é possível transcrever tais depoimentos;
15. Ora, como se pode depreender do depoimento da testemunha, D…, não foi ela quem identificou o indivíduo que viu junto ao foco de incêndio à GNR, mas sim os tais indivíduos que se encontravam a trabalhar na obra de H…, conforme transcrição feita sobre o depoimento desta testemunha, na parte em que é audível, que se dá aqui como reproduzido para todos os efeitos legais;
16. Essa imparcialidade e falta de isenção revela-se, a título exemplificativo, no confronto que se pode estabelecer entre o seu depoimento acima transcrito, a correcta análise do que revelam as fotografias juntas aos autos, a fls. 16 a 18 e o relatório de ocorrência de fls. 47;
17. Quer as referidas fotografias, quer este relatório serviram para o Tribunal recorrido formar a sua convicção, que consta do douto acórdão;
18. O depoimento da testemunha contradiz o que nos mostram as fotografias e o que se afirma no dito relatório;
19. De facto, a testemunha referiu que se queimaram quatrocentos pinheiros, e procurou demonstrar que esses pinheiros valiam, em escudos, 4000 contos; ao contrário, as fotografias mostram que apenas ardeu mato e no relatório afirma-se, também, ter ardido mato;
20. O depoimento e postura desta testemunha apresentam-se mais como parte interessada no resultado da acção do que como testemunha!
21. Como se pode apreender do depoimento da testemunha E…, que serviu também ele, de meio de prova para a formação da convicção do Tribunal recorrido, o recorrente negou a autoria dos factos à testemunha;
22. Pois que, os depoimentos indirectos não servem de meio de prova, e a testemunha, F…, não é isenta, revelando-se mais como parte interessada do que como testemunha;
23. Nem as declarações pelo arguido prestadas em sede de inquérito podem, por forma alguma, servir como fundamento de uma sentença condenatória;
24. De facto, o que disse o arguido no inquérito nunca podia, nem devia, objectiva e subjectivamente, servir de trampolim para o condenar, ou ajudar a condenar, pela prática do crime por que foi acusado;
25. Desde logo, porque o que o arguido disse no inquérito não tem qualquer valor probatório, pelo facto das declarações por si prestadas não serem meio de prova;
26. Além disso, conforme depoimento transcrito precedentemente em XII, que se dá aqui por reproduzido para os devidos efeitos legais, o arguido afirmou peremptoriamente à testemunha E… que não foi o autor do incêndio, tendo prestado declarações no inquérito quando estava muito fragilizado, após detenção e após dormir durante toda a noite; não sendo, também, despiciendo, ser o arguido uma pessoa muito vulnerável, com sérios problemas de depressão, como resulta do relatório psiquiátrico forense, junto aos autos, a fls. 75 e ss.;
27. Não se vislumbram, pois, razões ou fundamentos para a condenação do arguido pela prática do crime de que vinha acusado, nem, consequentemente, para a sua condenação no pedido cível;
28. O Tribunal a quo violou, entre outros, os artigos 129º, 340º, 355º, todos do Código de Processo Penal.
Conclui pela revogação do acórdão recorrido e pela sua absolvição do crime de que foi acusado e do pedido cível formulado.

*
Na 1ª instância, o Sr. Procurador da República respondeu às motivações de recurso, alegando que o mesmo deverá ser rejeitado por não especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
Caso assim se não entenda, então deverá ser rejeitado por manifestamente improcedente, uma vez que não foram prestados depoimentos indirectos, nem se verifica o apontado vício de erro notório na apreciação da prova.
*
Neste Tribunal da Relação o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, pelos fundamentos constantes de fls. 338 a 341, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
*
Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
*
Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
*
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
«1) - No dia 9 de Julho de 2007, por volta das 14h, o arguido dirigia-se para o café” I…”, situado em … e próximo da sua residência;
2) - No caminho para o referido café, no …, área desta Comarca. o arguido com um objecto não concretamente apurado, ateou fogo à vegetação rasteira que ali havia, junto à berma da estrada que ladeia a mata ali existente, no propósito de que o fogo se propagasse ao mato, pinheiros e demais vegetação envolvente;
3) - Em consequência dessa actuação do arguido, o fogo alastrou à vegetação circundante e arderam cerca de 500 metros de povoamento constituído, essencialmente, por mato e alguns pinheiros de pequeno porte, pertencente a herdeiros de J…, que sofreram prejuízos em montante não concretamente apurado;
4) - Não fora a pronta intervenção de alguns populares que de imediato ocorreram ao local e dos bombeiros voluntários …, que extinguiram o incêndio entre as 14.30h e as 15.00h, este ter-se-ia propagado ao demais mato e arvoredo ali existentes e a várias casas da povoação do … no valor de várias dezenas de milhares de euros mercê da continuidade arbustiva existente no local e das condições meteorológicas - tempo quente e seco próprio da época que se faziam sentir;
5) - Aliás, o fogo ainda lavrou até muito próximo de três casas de habitação da povoação do …, situadas nas imediações do terreno ardido, nomeadamente até cerca de 5 metros da casa de K…, no valor de mais de 100.000€ e só não se propagou a estas habitações, por factores alheios à vontade do arguido, devido à pronta intervenção de populares e dos bombeiros já que existia no local mato seco, até muito próximo dessas casas;
6) - Ao actuar da forma descrita, o arguido sabia que o fogo se propagaria por todo o mato e pinhal e quis que tal sucedesse, o que só não conseguiu por razões alheias à sua vontade;
7)- Sabia igualmente que o fogo que ateava poderia assumir enormes proporções e propagar-se por uma extensa área de mato e por casas de habitação que se encontravam nas proximidades, no valor de largas dezenas de milhares de euros, destruindo-as, com o que se conformou;
8) - Agiu nas circunstâncias descritas voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
9) - O prédio mencionado em 3 é denominado estrada e encontra-se inscrito na matriz rústica da freguesia de Cinfães sob o n.° 152;
10) – J… faleceu em 16/07/2006;
11) – Sucederam-lhe como únicos e universais herdeiros, a sua mulher L… e a filha M…, casada com F…;
12) - O arguido é professor reformado;
13) - A esposa é doméstica;
14) - Vive com a mulher e um filho ainda a seu cargo;
15) - Reside em casa própria:
16) - O arguida na altura dos factos apresentava um quadro clínico de perturbação de adaptação com humor depressivo;
17) - Devido a tal o arguido andou a ser seguido em consultas de psiquiatria e foi medicado com terapêutica antidepressiva e ansiolítica;
18) - Tal quadro depressivo não implica, contudo, qualquer comprometimento na capacidade de entendimento nem na capacidade de autodeterminação, sendo em termo clínicos considerado imputável na data da prática dos factos;
19) - Encontra-se quer familiarmente, quer socialmente inserido, sendo apreciado pelos colegas e na comunidade onde vive.
20) - Do seu CRC não constam quaisquer antecedentes.

Para além dos factos referidos, com relevância para a decisão a proferir, não se provaram mais quaisquer factos, nomeadamente:
- Que o arguido para atear o incêndio tenha utilizado um isqueiro (não se conseguiu apurar qual foi o objecto que o mesmo utilizou para atear o fogo;
- Que os pinheiros ardidos tenham sido 400 com cerca de 10 anos

Não foram considerados factos que não têm relevância para a decisão a proferir».

A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
«A convicção do Tribunal no que respeita aos factos provados resultou da conjugação de toda a prova produzida, a que não foram alheias as regras da experiência, nomeadamente:
- Do teor do depoimento da testemunha D… e que referiu, em audiência de julgamento, nomeadamente, que no dia em que ocorreu o incêndio em causa nestes autos, a seguir ao almoço, por volta das 14h andava a trabalhar com uma máquina muito próximo do local, onde o fogo deflagrou, encontrando-se a máquina com que andava a trabalhar, mesmo em frente ao local, onde não havia ninguém. Referiu, ainda, a testemunha que foi “urinar”, atrás da máquina e quando saiu de trás da mesma, apercebeu-se de um foco de incêndio que tinha acabado de deflagrar, e isto na berma junto à estrada e de um indivíduo na estrada, mesmo ao pé do referido foco, a olhar para esse foco, indivíduo esse que, de seguida, continuou o seu percurso pela estrada. Esclareceu a testemunha que nunca tinha visto o referido sujeito e que logo de imediato gritou por dois indivíduos que andavam numa obra mais à frente, mas que não se tinham apercebido da situação, e que de imediato se deslocaram ao local e começaram a tentar apagar o fogo, tendo pouco depois aparecido os bombeiros no local.
Com interesse referiu, ainda, a testemunha que os tais indivíduos, que ele não conseguiu identificar, depois de lhes ter perguntado se conseguiam o indivíduo que tinha acabado de passar por eles, e que era o mesmo que tinha visto ao pé do foco de incêndio, referiram que era o “professor”.
Esclareceu ainda que o tal individuo lhe parece o ora arguido, embora sem o poder garantir e que logo após os factos viu um sujeito no posto da GNR que, na altura, também lhe tinha parecido ser o indivíduo que viu ao pé do foco do incêndio e que será o ora arguido.
A testemunha foi ainda peremptória ao afirmar que no local não passou mais ninguém, nem viu mais ninguém, próximo do foco de incêndio.
Com interesse a referida testemunha esclareceu, ainda, o Tribunal das características do local, e da área aproximada que ardeu, referindo que, essencialmente, ardeu mato e alguns pinheiros pequenos, mas que se não fosse a pronta intervenção das pessoas e dos bombeiros teria ardido muito mais, pois por ali acima existiam pinhais e casas, nomeadamente uma casa que fica mesmo ao lado do foco de incêndio e que tem uma serralharia por baixo, referindo, ainda, que o foco nunca se extinguiria sozinho.
Tal depoimento, mereceu a credibilidade do Tribunal, tendo a testemunha no essencial mostrado um depoimento claro e coerente, depoimento esse que se mostrou desinteressado, não tendo a testemunhas em causa, objectivamente, qualquer interesse nos autos, nem nada contra o arguido que nem sequer conhecia e contra quem nada tem. Antes pelo contrário referiu de forma isenta que apesar da pessoa que tinha visto lhe parecer o arguido não o podia garantir.
- Do depoimento da testemunha F…, genro do falecido J…, proprietário do prédio ardido, e que referiu, em audiência de julgamento, que estava no seu estabelecimento comercial quando foi avisado que tinha ardido parte de um prédio da sogra, motivo pelo qual se deslocou ao local, onde já estava a GNR, que na altura apenas lhe disseram que tinha sido um indivíduo de camisa branca que depois de atear o incêndio se deslocou para o café “I…”. Esclareceu, assim, a testemunha que na altura ninguém lhe falou em nomes.
Referiu igualmente a testemunha que ainda nesse dia, e depois de lhe terem dito que o indivíduo já tinha sido detido, questionou às autoridades sobre a identidade do autor dos factos, que lhe respondeu que se quisesse saber quem era teria de se deslocar ao Tribunal no dia seguinte, local onde o indivíduo seria presente ao Juiz. Por tal circunstância, referiu a testemunha, que se deslocou ao Tribunal no dia seguinte, onde deparou com o arguido que mal o viu proferiu a seguinte expressão: “Sr. F… eu pago-lhe todo o prejuízo que lhe causei”.
Esclareceu a testemunha que, na altura, ficou espantadíssimo, pois conhecia o arguido, de quem se considerava amigo e nunca o imaginou capaz de tal.
Quando questionada sobre quais seriam os motivos do arguido, a testemunha referiu que, embora desconhecesse os motivos, o arguido pediu-lhe dinheiro emprestado, empréstimo, esse, que lhe recusou.
Esta testemunha esclareceu ainda as características do local onde deflagrou o incêndio, referindo que se não fosse a intervenção dos bombeiros os prejuízos teriam sido de milhares e milhares de euros, até porque na zona existem casas e campos de cultura que na altura estavam cheios de palha seca.
- Do teor do depoimento da testemunha E…, soldado da GNR, que esclareceu o Tribunal da forma como chegou ao arguido, o qual interceptou no café I…, pouco depois dos factos, referindo que foi a testemunha D…, que lhe falou no nome do professor B1….
Esta testemunha esclareceu ainda o Tribunal das características da área ardida, essencialmente mato, e alguns pinheiros pequenos, bem como da área circundante.

Em face de tais depoimentos, e conjugando os mesmos com as regras da experiência, bem como com outros elementos de prova tais como o auto de ocorrência de fls. 47, não teve o Tribunal qualquer dúvida em concluir que o arguido foi o autor dos factos em apreço, e isto, com a certeza jurídica que se impõe em sede de julgamento.
De facto, não obstante, a principal testemunha dos factos, D…, não ter garantido em Tribunal que a pessoa que viu ao pé do foco de incêndio é o arguido, apesar de lhe parecer, o certo é que o arguido, perante a testemunha F…, confessou a autoria dos factos quando ao vê-lo no Tribunal, de forma espontânea, profere a seguinte expressão: “Sr. F… eu pago-lhe todo o prejuízo que lhe causei”.
Ora, tal expressão só tem sentido, se o arguido for o autor dos factos, parecendo-nos obvio que se não fosse ele o autor dos factos, não assumiria, perante o genro do proprietário do prédio em causa, o pagamento dos prejuízos. A isto acresce a circunstância de nada obstar à valoração, por parte do Tribunal, de tal expressão sujeita à livre convicção do julgador, não sendo um meio proibido de prova, ao que acresce a circunstância do depoimento da testemunha F…, nesta parte, não obstante o seu interesse na causa, na medida em que é casado com uma filha do falecido proprietário do prédio em causa, mostrou-se credível, sendo certo que não foi infirmado por quaisquer outros elementos de prova, antes pelo contrário, a autoria dos factos por parte do arguido foi corroborada por outros elementos de prova a que já aludimos.

No que tange à área ardida, tipo de vegetação e área circundante, o Tribunal teve em conta não só os depoimentos a que já aludimos e o auto de ocorrência, apesar de neste auto não constar que arderam alguns pinheiros, embora de pequeno porte, o que resultou dos depoimentos das testemunhas, mas ainda a deslocação ao local feita pelo Tribunal, onde constatou as características do local, ficando o mesmo convicto que se não fosse a pronta intervenção dos bombeiros e de particulares que de imediato ocorreram ao local, a área ardida teria sido muito superior, inclusive poderiam ter ardido casas de habitação, sendo que uma das casas, a casa do Sr. K…, se situa mesmo ao lado do local ardido, existindo apenas um muro a separar o prédio ardido do prédio onde está a referida casa, situada a não mais de cinco metros do local ardido, como aliás, se extrai das fotografias de fls. 16 a 18.
Aliás, no local, o Tribunal limitou-se a constatar aquilo que já resultava dos depoimentos das testemunhas e das fotografias de fls. 16 a 18.
É certo que a defesa a certa altura tentou, nomeadamente com o depoimento da testemunha N…, bombeiro, e que na altura esteve no local, fazer crer ao Tribunal que aquilo não passou de uma queimada e que a mesma se teria extinguido sem a intervenção dos bombeiros, não colocando em perigo a área circundante.
No entanto, não logrou a defesa convencer o Tribunal de tal tese, antes pelo contrário, como já referimos ficou demonstrado o contrário. De facto, o que se apurou é que o fogo foi ateado num prédio rústico com uma área muito superior à ardida, com mato e pinheiros e eucaliptos, prédio esse que confina não só com prédios urbanos, mas ainda com campos de cultivo que, na altura, se encontrava cheios de palha seca. A isto acresce a circunstância do fogo ter sido ateado no Verão, num dia de tempo seco. Logo, parece evidente, decorrendo tal das regras da experiência, que se não fosse a intervenção dos populares e dos bombeiros as consequências certamente que teriam sido outros, parecendo-nos ainda evidente que alguém que deita fogo nas circunstâncias descritas só pode ter como intenção que o fogo deflagre no prédio onde o ateou, sabendo igualmente que pode propagar-se ainda a outros prédios e casas, conformando-se com esse resultado.
O Tribunal valorou ainda os depoimentos das testemunhas de defesa, O…, P…, Q… e S…, todos amigos dos arguidos no que tange às condições pessoais do mesmo.
Teve ainda em conta o relatório pericial de fls. 75 exclusivamente na parte que tange ao seu estado de saúde.
No que tange à ausência de antecedentes o Tribunal valorou o CRC do arguido.
No que tange aos factos não provados, tal deveu-se à manifesta insuficiência de prova sobre os mesmos produzida.
Desde logo, no que tange ao número de pinheiros ardidos não provou a assistente o número de pinheiros ardidos, sendo o alegado manifestamente excessivo, resultando apenas, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas que ardera alguns pinheiros pequenos.
Igualmente o Tribunal não conseguiu apurar com que objecto é que o arguido deflagrou o incêndio».
*
*
III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Considerando que, da leitura da decisão recorrida não resulta, em nossa opinião, que a mesma padeça de qualquer daqueles vícios, as questões que o recorrente submete à apreciação deste Tribunal resumem-se em saber se:
- se os fundamentos invocados pelo tribunal recorrido não podem sustentar a matéria de facto provada por serem legalmente inadmissíveis os respectivos meios de prova;
- se o acórdão recorrido padece de erro notório na apreciação da prova, por se ter baseado em depoimentos indirectos e, por isso, sem valor probatório;
- se as declarações prestadas pelo arguido em inquérito podem servir como fundamento de uma sentença condenatória.
Vejamos:
O objecto da prova é constituído por todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do agente e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis (art. 124º do C. Processo Penal).
Fixado um determinado objecto (thema), que corresponde aos factos a provar, as provas são os instrumentos utilizados para demonstrá-lo, segundo as regras do processo[3].
No campo das provas também vigora o princípio da legalidade, enformador de todo o nosso processo penal (art. 2º, do C. Processo Penal). Assim, estabelece o art. 125º do C. Processo Penal que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. A legalidade dos meios de prova, as regras da sua produção e as «proibições de prova», são condições de validade processual da prova e por isso, critérios da verdade material[4].
O Cód. Processo Penal consagra no seu art. 340º nº 1 o princípio da investigação, também designado por princípio da verdade material, segundo o qual compete ao juiz investigar e esclarecer oficiosamente o facto sujeito a julgamento, por forma a atingir a descoberta da verdade. Mas a verdade processual de que falamos não é uma verdade absoluta ou ontológica mas uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida[5]. Ou seja, a busca da verdade não é nem pode ser um valor absoluto, que atropele tudo o que lhe surja como obstáculo, antes tem que ser procurada e obtida através dos meios legalmente admissíveis.
E um dos meios de que a lei se serve para, protegendo os cidadãos, impedir as práticas abusivas na produção de prova é através do estabelecimento de proibições de prova. A este propósito escreveu o Prof. Costa Andrade[6] “Como Gossel acentua, as proibições de prova são «barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem objecto do processo». Mais do que a modalidade do seu enunciado, o que define a proibição de prova é a prescrição de um limite à descoberta da verdade. Normalmente formulada como proibição, a proibição de prova pode igualmente ser ditada através de uma imposição e, mesmo, de uma permissão. É que, e como Gossel pertinentemente assinala, «toda a regra relativa à investigação dos factos proíbe ao mesmo tempo as vias não permitidas de averiguação». Assim e por exemplo, ao prever e regulamentar as formas admissíveis de depoimento indirecto, o artigo 129º do CPP aponta e prescreve eo ipso as formas proibidas de hearsay evidence.”. E mais adiante (fls. 188) escreve o mesmo Mestre, “Mais do que garantias processuais face à agressão e devassa das instâncias da perseguição penal, os direitos e interesses que emprestam sentido axiológico e racionalidade teleológica às proibições de prova, emergem como direitos fundamentais erigidos em autênticos bens jurídicos.”
No que respeita à prova testemunhal, dispõe o artº 128º nº 1 do C. Proc. Penal que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova.
Ora, a testemunha tem conhecimento directo dos factos, quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos. Já no âmbito do testemunho indirecto, “a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos”(…) “é o vulgarmente designado testemunho de ouvir dizer”[7].
Ora, a regra é que o testemunho indirecto só serve para indicar outro meio de prova directo. Por isso que o art. 129º nº 1 do C. Processo Penal disponha:
“Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.”.
Daqui resulta, em primeiro lugar, que a regra é a do testemunho directo. Mas, por outro lado, a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos.
O que o código proíbe é a valoração de tais depoimentos, se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal. No entanto, o depoimento indirecto pode ser valorado sempre que a inquirição da fonte não seja possível, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.
Assim, chamando o juiz a fonte a depor, o depoimento indirecto pode ser valorado, mesmo nos casos em que a aquela se recusa, lícita ou ilicitamente, a prestar depoimento ou, por exemplo, diz de nada se recordar já[8]. É que nesta situação é possível o exercício do contraditório na audiência de julgamento, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte, assim se assegurando o respeito pela estrutura acusatória do processo criminal, imposto pelo art. 32º, nº 5, da CRP. E a conformidade do art. 129º nº 1 do C. Proc. Penal, ao admitir, nas circunstâncias aí previstas, a valoração do hearsay evidence, com a Lei Fundamental tem vindo a ser afirmada pelo Tribunal Constitucional, nos seguintes termos: “Ora, entende-se que a regulamentação consagrada na norma do nº 1 do artigo 129º do Código de Processo Penal se revela como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law). (…)
Tão-pouco se pode afirmar que a estrutura acusatória do processo criminal, que impõe que a audiência de julgamento e mesmo os actos instrutórios determinados por lei estejam subordinados ao princípio do contraditório, ponha em causa a regulamentação do segmento da norma em causa. A lei processual penal veda, em princípio, a admissibilidade do testemunho de ouvir dizer, impondo que seja chamada a depor a pessoa determinada invocada no testemunho prestado, assegurando-se a imediação, relativamente ao tribunal criminal e aos sujeitos processuais”[9].
Pese embora a lei não fixe as regras de valoração do depoimento indirecto, quando tal valoração é admissível, deve entender-se, face ao princípio geral da livre apreciação da prova estabelecido no art. 127º do C. Proc. Penal, que o depoimento deve ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o correspondente depoimento directo, quando tenha sido prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum portanto, sem qualquer hierarquia de valoração entre um e outro[10].
Feitas estas breves considerações e volvendo ao caso sub judice, vejamos se o tribunal recorrido, ao valorar o depoimento das testemunhas D… e F…, violou as disposições contidas nos artºs. 129º e 355º do C.P.P., como defende o recorrente.
A respeito do depoimento prestado pela testemunha D… pode ler-se na motivação de facto da decisão recorrida: “A testemunha (…) referiu, em audiência de julgamento, nomeadamente, que no dia em que ocorreu o incêndio em causa nestes autos, a seguir ao almoço, por volta das 14h andava a trabalhar com uma máquina muito próximo do local, onde o fogo deflagrou, encontrando-se a máquina com que andava a trabalhar, mesmo em frente ao local, onde não havia ninguém. Referiu, ainda, a testemunha que foi “urinar”, atrás da máquina e quando saiu de trás da mesma, apercebeu-se de um foco de incêndio que tinha acabado de deflagrar, e isto na berma junto à estrada e de um indivíduo na estrada, mesmo ao pé do referido foco, a olhar para esse foco, indivíduo esse que, de seguida, continuou o seu percurso pela estrada. Esclareceu a testemunha que nunca tinha visto o referido sujeito e que logo de imediato gritou por dois indivíduos que andavam numa obra mais à frente, mas que não se tinham apercebido da situação, e que de imediato se deslocaram ao local e começaram a tentar apagar o fogo, tendo pouco depois aparecido os bombeiros no local.
Com interesse referiu, ainda, a testemunha que os tais indivíduos, que ele não conseguiu identificar, depois de lhes ter perguntado se conseguiam (certamente pretendia dizer-se “se conheciam”) o indivíduo que tinha acabado de passar por eles, e que era o mesmo que tinha visto ao pé do foco de incêndio, referiram que era o “professor”.
Esclareceu ainda que o tal individuo lhe parece o ora arguido, embora sem o poder garantir e que logo após os factos viu um sujeito no posto da GNR que, na altura, também lhe tinha parecido ser o individuo que viu ao pé do foco do incêndio e que será o ora arguido.
A testemunha foi ainda peremptória ao afirmar que no local não passou mais ninguém, nem viu mais ninguém, próximo do foco de incêndio (…)”.
Contrariamente ao sustentado pelo recorrente, entendemos que o depoimento prestado por esta testemunha, constitui parcialmente um depoimento directo, uma vez que os factos essenciais por ela descritos foram percepcionados pelos próprios sentidos do depoente, sem qualquer mediação. Foi a própria testemunha que visualizou o indivíduo em questão junto ao foco de incêndio que tinha acabado de deflagrar junto à berma da estrada e a olhar para esse foco, não se encontrando mais ninguém no local (próximo do foco de incêndio), o que o levou a concluir ter sido ele a atear o fogo.
É certo que a testemunha refere que, logo de imediato, gritou por dois indivíduos que andavam numa obra mais à frente e que logo tentaram apagar o fogo, tendo num segundo momento a testemunha declarado que perguntou a esses indivíduos se conheciam a pessoa que tinha acabado de passar por eles e que tinha visto ao pé do foco de incêndio, tendo aqueles respondido que era “o professor”.
Ora, só no que respeita à identificação do agente dos factos presenciados pela testemunha como sendo “o professor” se poderá afirmar que se trata de um depoimento indirecto.
Com efeito, a melhor interpretação da formulação legal conduz a que só se considere depoimento indirecto, v.g. se a pessoa que faz o relato, não assistiu ou presenciou a ocorrência. O critério operativo da distinção entre depoimento directo e indirecto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade o seu depoimento é directo, se não, é indirecto[11].
Como se diz no citado aresto, “o que o legislador quis afastar foi o «depoimento em segunda mão»: o C vem a tribunal dizer que o A lhe disse que o B fez ou aconteceu. São estes, mas não apenas estes, os depoimentos indirectos que o legislador quis vetar como meio de prova, salvo se chamar o «intermediário» a depor”.
Na situação em apreço, não foram os dois indivíduos de identidade desconhecida que transmitiram à testemunha D… terem visto um indivíduo a atear o fogo. Contudo, foram essas pessoas que informaram a testemunha sobre a identidade do indivíduo que viram passar e que ela própria (testemunha) avistara no local do foco do incêndio e onde ninguém mais se encontrava. Quem presenciou os factos foi a própria testemunha e não aqueloutros, no entanto, o depoimento da testemunha no que respeita à identificação do autor desses factos como sendo “o professor”, mais propriamente, o aqui arguido, constitui efectivamente um depoimento indirecto e, nessa medida não poderia ser valorado pelo Tribunal recorrido, uma vez que, por se tratar de pessoas desconhecidas (não identificadas pela testemunha) ficou o tribunal impedido de as fazer comparecer para as confrontar com a referida afirmação da testemunha inquirida.
Entendemos porém, que o recorrente labora em manifesto erro quando alega que o acórdão recorrido se baseou em depoimentos indirectos e, por isso, sem valor probatório.
Como se extrai da leitura da motivação da decisão recorrida, o Tribunal estabeleceu a conjugação da prova produzida em audiência com as regras da experiência comum, para extrair a conclusão sobre a matéria de facto provada, sendo que, relativamente à prova testemunhal, refere: «Em face de tais depoimentos, e conjugando os mesmos com as regras da experiência, bem como com outros elementos de prova tais como o auto de ocorrência de fls. 47, não teve o Tribunal qualquer dúvida em concluir que o arguido foi o autor dos factos em apreço, e isto, com a certeza jurídica que se impõe em sede de julgamento. De facto, não obstante, a principal testemunha dos factos, D…, não ter garantido em Tribunal que a pessoa que viu ao pé do foco de incêndio é o arguido, apesar de lhe parecer, o certo é que o arguido, perante a testemunha F…, confessou a autoria dos factos quando ao vê-lo no Tribunal, de forma espontânea, profere a seguinte expressão: “Sr. F… eu pago-lhe todo o prejuízo que lhe causei”.
Ora, tal expressão só tem sentido, se o arguido for o autor dos factos, parecendo-nos obvio que se não fosse ele o autor dos factos, não assumiria, perante o genro do proprietário do prédio em causa, o pagamento dos prejuízos. A isto acresce a circunstância de nada obstar à valoração, por parte do Tribunal, de tal expressão sujeita à livre convicção do julgador, não sendo um meio proibido de prova (…)».
Ou seja, relativamente ao depoimento da testemunha D…, o tribunal não valorou a parte do depoimento que, como atrás referimos, constitui efectivamente um depoimento indirecto. Contudo, não desvalorizou a parte restante (enquanto prova indiciária), conjugando-a com a restante prova produzida.
Não se mostra, assim, violado o disposto no artº 129º do C.P.P.
*
Quanto ao depoimento da testemunha F…:
Alega o recorrente que também o depoimento desta testemunha, por ser um depoimento indirecto, põe em causa os mais elementares princípios de direito em processo penal, designadamente o princípio da imediação e do contraditório e de um processo equitativo, para além de que a afirmação que aquela testemunha atribui ao arguido não tem o significado de uma confissão da prática do crime.
Refere-se o recorrente à afirmação, constante da motivação do acórdão na parte em que alude ao depoimento da testemunha F…, que terá sido proferida pelo arguido quando, no dia seguinte à ocorrência dos factos, se deslocou ao Tribunal, deparando com o arguido que, mal o viu, proferiu a seguinte expressão: “Sr. F…, eu pago-lhe todo o prejuízo que lhe causei”.
Antes de mais, importa referir que o depoimento em causa não pode ser qualificado como depoimento indirecto sujeito à disciplina do artº 129º do C.P.P.
Com efeito, quando em audiência uma testemunha afirma o que ouviu ao arguido, que está presente e que fez uso do seu direito ao silêncio, não colocando em crise a afirmação da testemunha acerca do que afirmou lhe ter ouvido, o depoimento, não deixa, nessa parte, de poder ser valorado.
Não é prova proibida e, como qualquer outra, deve ser apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal –art. 127º do CPP.
O art. 129º do CPP admite o testemunho de ouvir dizer, somente impõe que as pessoas referenciadas no depoimento, sejam chamadas a depor (ressalvando as excepções aí previstas e já referidas).
No caso, estando o arguido presente e escusando-se a prestar declarações, verifica-se a impossibilidade de ouvir a “pessoa indicada como fonte”.
Assim, como salienta o Ac. do T.C. nº 440/99 de 8.7, aquele depoimento de ouvir dizer deve ser valorado como meio de prova, “desde logo, porque não há diferença substancial entre a situação do arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu direito ao silêncio para não depor”.
Nesse Acórdão tirou-se a seguinte conclusão: ”Há, assim, que concluir que o artigo 129°, n° 1 (conjugado com o artigo 128°, n° 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido”.
Também o STJ. tem aceite tais depoimentos de ouvir dizer, valorando-os como meio de prova, nomeadamente no Ac. de 30.09.1998, in BMJ 479-414, aí se têm como válidas as declarações da queixosa/demandante civil sobre matéria que lhe foi oralmente transmitida pelo arguido, o qual se negou a prestar declarações em audiência de julgamento. “Não estamos, contudo, perante depoimento indirecto proibido. A queixosa/demandante civil prestou declarações dizendo o que ouviu directamente da boca do arguido e fê-lo na presença deste, que estava assistido pelo respectivo defensor”. “Por conseguinte, a posição assumida in casu pelo arguido – no uso de direito que não se põe em causa - de optar pelo silêncio, de forma alguma pode obstar à admissão e valoração das declarações da queixosa/demandante civil”.
Aliás, a génese do direito ao silêncio não assenta num intuito de beneficiar o arguido, condicionando a prova testemunhal, antes decorrendo do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que lhe são imputados, facultando ao arguido um comportamento que, em última análise, poderá obstar a que se auto-incrimine.
Estando o arguido presente em audiência, pode sempre contraditar plenamente a testemunha que relatou aquilo que lhe ouviu dizer, requerer as diligências que entenda pertinentes, tendentes a demonstrar a sua falta de idoneidade, a contraditar a sua razão de ciência, a impossibilidade do seu testemunho.
É indiscutível que o arguido mantém intocado o seu direito ao silêncio, art.º 343º n.º1 do Código de Processo Penal. Agora, o que não pode o arguido pretender é que o exercício desse direito ao silêncio inviabilize o depoimento de ouvir dizer.
Como expressivamente se refere no Ac. desta Relação do Porto de 05.05.2010[12] “Nesta matéria bem sabemos que jurisprudência existe que entende que as declarações de uma testemunha relatando conversa mantida com o arguido constituem depoimento indirecto, portanto proibido, a menos que o arguido corrobore tais declarações. Salvaguardando o devido respeito por tal posição, temos uma opinião diferente: considerando que o depoimento indirecto é uma comunicação, com função informativa, de um facto de que o sujeito teve conhecimento por um terceiro (Acórdão da Relação de Lisboa de 11-10-2006, processo 5998/2006), parece-nos razoavelmente claro que não constitui depoimento indirecto – portanto não enquadrável no art. 129º do C.P.P. e, portanto, não constituindo prova proibida -, o depoimento de uma testemunha que relata o que ouviu o arguido dizer, isto mesmo que o arguido não preste declarações na audiência, no exercício do seu direito ao silêncio. Para além disso, estando o arguido presente na audiência – quando o estiver -, pode sempre contraditar um tal depoimento (Neste sentido citam-se, a título meramente exemplificativo e para além do já citado, os acórdãos desta relação de 4-11-2009, proferido no processo 91/04.5GBPRD, de 25-6-2008, processo 0742789, de 27-2-2008, processo 0810050 e de 9-2-2005, processo 0445066)”.
Esta interpretação não viola o artigo 32º/1 e 5 da Constituição da República, pois, conforme se decidiu no Ac. do Tribunal Constitucional de 8/7/99, in DR, II S, de 9/11/99, aquele artigo 129º/1, “interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatam conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido”, entendimento que veio a ser reafirmado através do citado Ac. do TC nº 440/99 de 8.7.
Refira-se ainda que o Tribunal recorrido não valorou apenas o depoimento desta testemunha, nem somente o depoimento da testemunha D…. Valorou toda a prova produzida em audiência em obediência ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do C.P.P., mostrando-se a motivação da decisão de facto devidamente alicerçada na análise conjugada de toda a prova produzida e de acordo com as regras da experiência comum, fazendo jus ao princípio de que “a rainha das provas é a lógica humana”.
Como resulta da mera leitura da fundamentação fáctica do acórdão, a avaliação conjunta da prova produzida é que permitiu ao Tribunal concluir da forma que o fez e com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, não merecendo qualquer censura.
Não se verifica, desta forma, a valoração de prova inadmissível, a merecer a censura do tribunal de recurso, nem se mostram violados os invocados princípios da imediação, do contraditório e de um processo equitativo, improcedendo por isso o fundamento alegado pelo recorrente.
*
Quanto ao invocado erro notório da apreciação da prova:
Da leitura das motivações de recurso depreende-se que, como vem sendo frequente, mais uma vez se confunde o vício do erro notório na apreciação da prova a que alude o artº 410º nº 2 al. c) do C.P.P., com o erro de julgamento, ou seja, com eventual incorrecta valoração da prova por parte do tribunal a quo.
Aquele vício (aliás de conhecimento oficioso por este tribunal de recurso) constitui o erro ostensivo, de tal modo evidente, que não passa despercebido ao comum dos observadores ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta[13]. Ou, na expressão comentada de Simas Santos e Leal Henriques[14], “...trata-se de uma falha grosseira e ostensiva, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si; (...) que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis).
O erro notório na apreciação da prova a que se refere o art. 410º, n.º 2 al. c) do Cód. Proc. Penal só existe, quando a convicção do julgador (fora dos casos de prova vinculada) for inadmissível, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum. Deve assim tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Não existe tal erro quando a convicção do julgador é plausível, ou possível, embora pudesse ter sido outra.
Já o erro de julgamento constitui um problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.
No caso em apreço, não tendo o recorrente dado cumprimento do disposto no artº 412º nº 3 e 4 do C.P.Penal, designadamente quanto ao elenco dos factos que considera incorrectamente julgados e às provas que, em sua opinião impõem decisão diversa da recorrida, está este tribunal impedido de reapreciar a prova produzida em 1ª instância.
Considerando porém, que o recorrente estabelece ligação entre a violação do disposto no artº 129º do C.P.P. e o vício de erro notório na apreciação da prova, importa analisar se se verifica, nessa perspectiva o apontado vício da decisão recorrida, pese embora o que já atrás se disse sobre o depoimento indirecto, faça prever o sentido da nossa decisão.
Como realçam Simas Santos e Leal Henriques[15] “o erro notório na apreciação da prova não ocorre apenas quando da factualidade provada se extraiu uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária ou notoriamente violando as regras da experiência comum, mas também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis”. Segundo Miguel Teixeira de Sousa[16] “é o erro sobre a admissibilidade e a valoração dos meios de prova”.
Por outro lado, o vício tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo assim permitida a consulta a outros elementos constantes do processo.
Quer dizer, que o erro notório tem apenas de resultar da própria sentença e não de factos que não se encontram aí vertidos. É pois com base no que consta da sentença e não naquilo que dela não consta, que se pode invocar o referido vício.
Ora, no caso em apreço, a oposição do recorrente assenta na sua discordância relativamente à valoração que o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento das testemunhas D… e F…. Como se viu, o recorrente entende que se trata de depoimentos indirectos que não poderiam ter sido valorados por não se ter observado o disposto no artº 129º do C.P.P.
Ora, como já atrás analisámos com a profundidade que entendemos justificada, os depoimentos em causa (na parte em que foram valorados pelo tribunal recorrido) não se enquadram na figura do depoimento indirecto, pelo que não se verifica in casu erro notório na apreciação da prova, na vertente da violação das regras sobre o valor da prova vinculada.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
*
Alega ainda o recorrente que as declarações que prestou em sede de inquérito não podem, de forma alguma servir de fundamento de uma sentença condenatória.
Considerando que da leitura da motivação da decisão recorrida não se vislumbra em que momento o tribunal recorrido valorou as declarações prestadas pelo arguido em sede de inquérito, nem o recorrente as situa, mostra-se completamente destituído de fundamento o argumento invocado.
*
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo consequentemente o douto acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC’s.
*
Porto, 09 de Fevereiro de 2011
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
Lígia Ferreira Sarmento Figueiredo
______________________
[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 4ª edª., pág. 118.
[4] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1ª edª., 1974, Reimpressão, pág. 197.
[5] Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 194.
[6] In “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, pág. 83.
[7] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit., II, 4ª edª., pág. 180.
[8] V. neste sentido, o Ac. Desta Relação do Porto de 07.11.2007, proferido no Proc. nº 0714613, relatado pelo Des. Manuel Braz e disponível em www.dgsi.pt.
[9] Cfr. Ac. nº 213/94, de 2 de Março de 1994; no mesmo sentido, Ac. nº 440/99, de 8 de Julho de 1999, ambos in http://www.tribunalconstitucional.pt).
[10] Cfr., neste sentido, Acs. do STJ de 20.11.2002, CJ, X, III, 232; Ac. desta R. do Porto de 07.11.2007, já citado e Ac. da R. de Évora de 30.01.2007, proc. nº 2457/06-1, disponíveis em www.dgsi.pt. Em sentido contrário, Prof. P.P.Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UEC, 3ª edª. actualizada, pág. 344, nota 2.
[11] Neste sentido, v. Ac. desta Relação do Porto de 24.09.2008, relatado pelo Des. António Gama, disponível em www.dgsi.pt
[12] Relatado pela Des. Olga Maurício e disponível em www.dgsi.pt
[13] Cfr. Germano M. Silva, ob cit., pág. 326 e Ac. do STJ de 31.1.90,CJ,1990, Tomo I, pág. 24.
[14] In Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 4ª edª.
[15] In Código de Processo Penal Anotado, 1996, 2º Vol., pág. 515.
[16] In Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 438.