Sumário

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A"-Fabricação de Peúgas, Ld.ª, com sede em Martim de Além, Barcelos, instaurou acção declarativa com forma de processo comum ordinário contra a Companhia de Seguros B, com sede na Rua ...., Lisboa, hoje ..., SA, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 75.490.000$00, respeitante a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por ela suportados, acrescida de juros vincendos a partir da citação.
Para o efeito alegou:
- ter realizado um contrato de seguro incidente sobre o extravio de mercadorias suas, transportadas em veículo TIR para França pela transportadora C, Ld.ª, com sede em Valpaços,
- ter o veículo transportador sido objecto de furto já em território francês,
- e, com esse furto, terem também sido furtadas as respectivas mercadorias,
- não querendo, no entanto, a Ré pagar à A. o preço das mercadorias seguras, não obstante para tanto instada.

A Ré contestou, alegando factos donde se concluía pela impossibilidade de terem sido transportadas no veículo utilizado as quantidades indicadas de mercadorias em risco e outros que sustentavam a tentativa de burla em matéria de seguros, executada por simulação de roubo de mercadoria; teria, ainda, a Autora ocultado à Ré elementos importantes para a aceitação do grau de risco.
Concluiu pela improcedência da acção, com a absolvição da Ré no pedido, ou, se porventura tal não viesse assim a ser entendido, então que a condenação não ultrapassasse os limites decorrentes do preço de custo da mercadoria.

A Ré requereu ainda o chamamento à autoria de "C", alegando que se porventura for condenada na acção tem direito de regresso contra a chamada, devido à forma negligente como efectuou o transporte e guarda das mercadorias.
Este incidente foi admitido, vindo a chamada a pedir apoio judiciário e a negar parte da versão da matéria alegada pela A. e R. relativa ao circunstancialismo que envolveu o contrato de transporte e quanto à culpa no desaparecimento da mercadoria.

Saneado, condensado e instruído o processo, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova e decisão da matéria de facto perguntada no questionário, após o que o Ex.mo Juiz proferiu sentença que, na ausência de prova dos factos constitutivos do direito exercitado pela A. julgou improcedente a acção e absolveu a Ré do pedido, condenando ainda A. e chamada em multas de 500.000$00 e 250.000$00, como litigantes de má fé, respectivamente.
Inconformada, apelou a A., afirmando que a prova produzida pela A., que não mereceu qualquer contradita pela Ré, e que foi apresentada de forma coerente, imparcial e honesta, impõe a procedência da acção, além de que a A. não litigou, por isso, de má fé, muito menos praticou qualquer acto de "terrorismo processual".
A Relação manteve inteiramente a decisão sobre a matéria de facto, depois de considerar que, como é sabido, a sindicação da matéria de facto só pode ser exercida pelo Tribunal da Relação nos termos indicados no art. 712.º do CPC.
No caso em presença, a sindicação da prova por este Tribunal pode ser exercida uma vez que temos ao nosso alcance todos os elementos de que o Tribunal de 1.ª instância lançou mão, já que ocorreu a gravação da prova.
No entanto, importa não esquecer que esse esforço sindicante não significa que tenha de seguir-se inexoravelmente o que as testemunhas disseram ou não disseram, porque o importante é a convicção criada pelo julgador a respeito da credibilidade sobre o mérito ou demérito das provas, designadamente a respeito da credibilidade dos depoimentos. Ora esse credibilidade tem de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que a convicção criada há-de assentar não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores.
Como dissemos no Acórdão deste Tribunal da Relação de 99.02.08, em recurso de apelação do processo n.º 1/99, do Tribunal de Círculo de Chaves,
"(...) A actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão.
Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhe sejam oferecidos. Há-de por isso a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto socio-cultural, a linguagem gestual - inclusive a dos olhares, a dos rubores - , e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para se poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que muitas vezes, não intencionalmente.
As respostas aos quesitos hão-de pois ser o resultado de todas as operações intelectuais, integradoras de todas as provas oferecidas e que tenham merecido a confiança do Juiz, pelo que, não raras vezes se constata que o julgamento do Juiz possa não ter a correspondência directa nos depoimentos concretos (ou falta destes), mas seja o resultado lógico da conjugação de alguns outros dados, sobre os quais os seu sentido crítico se exerceu, muitas vezes em resultado de elementos circunstanciais fornecidos a propósito de matérias diferentes, em assuntos não directamente objecto de controvérsia.
Como então aí referimos,
"Esta percepção só é perfeitamente conseguida com o imediatismo das provas.
A reanálise das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção criada pelo Juiz da 1.ª instância, traduzida nas respostas aos quesitos, e determinar a alteração dessas respostas, em casos pontuais e excepcionais, quando, não se tratando de confissão ou de qualquer facto só susceptível de prova através de documento, se verifique que as respostas dadas não têm qualquer fundamento face aos elementos de prova trazidos ao processo ou estão profundamente desapoiados face às provas recolhidas(...)"

O objectivo da gravação da prova funciona assim mais como uma válvula de escape para situações pontuais em que seja inaceitável a possibilidade da resposta dada, do que como um meio desejado para reanálise sistemática de toda a prova. Desta forma, só está em perfeitas condições de poder satisfazer a eventual alteração das respostas aos quesitos em situações limite, ou seja, se resultar inequivocamente que a resposta ao quesito não podia ser aquela, mas tinha que ser outra. (1) .
O próprio legislador, no preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12 /12, assumiu clara posição que pretende assegurar o princípio do imediatismo das provas.
Em nenhum ponto do enunciado diploma vemos que tenha sido intenção do legislador acabar com ele!
O que pretendeu fazer-se foi controlar as situações insustentáveis.
A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado;
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.

Ora, no caso concreto, nada disto acontece para que possa haver alteração.
Para as respostas negativas aos quesitos 2.º, 3.º, 6.º e 7.º, o Tribunal apoiou-se na ausência de prova convincente acerca dos respectivos factos, fundamentando o porquê na falta de credibilidade das testemunhas arroladas pela Ré.
É que não basta a existência de depoimentos num sentido. É necessário analisar se esses depoimentos merecem credibilidade face aos demais elementos trazidos à prova, e depois sopesar se terão eles peso suficiente para que esses depoimentos se imponham como correspondentes à tradução da verdade dos factos.

Na fundamentação da matéria de facto o M.º Juiz explanou de forma modelar por que razões não ficou convencido para responder afirmativamente aos quesitos em causa. Dissecou tudo, retirando a base que poderia levar a sustentar a seriedade dos depoimentos das testemunhas apresentadas pela A. e pela chamada "C".
Essa fundamentação não está posta em causa, razão pela qual não vemos necessidade de aqui voltar a repetir a mesma argumentação, mas não resistimos ao facto assinalado da quase falência da A. à data dos factos, à não apresentação de prova documental quanto à aquisição da mercadoria pela A. a D ou a "D, Lda.", e deste à entidade de quem é suposto tê-las havido recebido em dação de pagamento (alegadamente "Têxteis .......", de Vila do Conde, em situação de falência).
Sintomático é também, no sentido de retirar credibilidade aos depoimentos invocados o facto de não ter sido junto qualquer documento destinado a comprovar que tivesse sido apresentado a pagamento o cheque emitido pela A. em favor do alegado fornecedor das peúgas (D ou D, Ld.ª"), chamado a depor e que, embora não sendo parte na causa, disse que o não apresentara a pagamento por causa do furto ocorrido em França!)
Por outro lado, a forma dissonante dos diversos depoimentos quanto ao carregamento da mercadoria em Portugal face aos depoimentos relativos à capacidade do veículo transportador, mais convicção nos criou quanto à bondade da decisão tomada pelo M.º Juiz.
E tudo isto, sem necessidade sequer de atendermos à versão rocambolesca - senão grotesca - como as testemunhas da chamada "C" pretendem justificar a normalidade da actuação do motorista desta (!!!) (2).
E por aqui nos ficamos...concluindo que foi feito correcto julgamento da matéria em crise, não havendo assim razões plausíveis para que seja alterada a matéria de facto tal como julgada na primeira instância, que por isso se considera aqui definitivamente fixada.

Inalterada a matéria de facto, improcedeu a apelação, mantendo-se a absolvição da Ré do pedido e a condenação por litigância maldosa.
Ainda irresignada, pede a Autora revista com revogação do acórdão recorrido que terá infringido o estabelecido no art. 712º do CPC.
Como se vê da alegação que coroou com as seguintes conclusões

1 - A Autora levou ao processo prova documental e testemunhal suficiente para sustentar a sua tese;
2 - A Ré nem sequer contraditou tal prova;
3 - A decisão baseou-se apenas na mera e livre convicção do Juiz, de uma eventual fraude, que, de resto, só foi alegada após o julgamento;
4 - O douto acórdão não decidiu de harmonia com o artigo 664º do C. P. Civil que impõe que o Juiz só pode servir-se dos factos alegados pelas partes.
5 - O mesmo douto acórdão infringiu o estabelecido no art. 712º do CPC.

A Recorrida Seguradora respondeu em defesa do decidido, afirmando não se verificarem os pressupostos exigidos pelos art. 721º e ss do CPC para que a decisão da Relação seja alterada por este Supremo Tribunal.

Colhidos os vistos de lei e nada obstando, cumpre decidir as questões submetidas à nossa apreciação, as de saber se
- a decisão recorrida se serviu, contra o comando do art. 664º do CPC, de factos não alegados pelas Partes (conclusão 4ª),
- tendo infringido o disposto no art. 712º do CPC quando não alterou a decisão sobre a matéria de facto da 1ª Instância (5ª)
- que se baseou apenas na mera e livre convicção do Juiz, de uma eventual fraude, que, de resto, só foi alegada após o julgamento (3ª)
- a que a A. levou prova documental e testemunhal suficiente para sustentar a sua tese (1ª),
- prova que a Ré nem sequer contraditou (2ª) .

Para tanto e primeiramente é mister ver que a Relação manteve inteiramente a decisão sobre a matéria de facto tomada pela 1ª Instância, julgando, pois, assentes os seguintes
Factos:
1 - A autora dedica-se ao fabrico de peúgas para exportação - al. A).
2 - Em 14.11.95, no exercício de tal actividade, a autora acordou com a empresa francesa "E", com sede em ZalaPiche, 31.800 Seysses, Toulouse, França, fornecer-lhe 38.000 dúzias de pares de peúgas, pelo preço de 60 francos franceses cada dúzia, nas condições constantes do fax junto a fls. 6, tendo emitido a respectiva factura com data de 24.11.95, no valor de 2.280.000,00 francos franceses (cfr. docs. de fls. 6 e 8) - al. B).
3 - Mediante contrato de seguro do ramo «transporte de mercadorias» celebrado em 24.11.95 e titulado pela apólice n.º 030007140, assumiu a ré "B, S.A.", o risco pelo extravio da mercadoria supra descrita, até ao valor de 2.508.000 francos franceses (cfr. doc. de fls. 7) - al. C.
4 - Em 12.12.95 a autora participou à ré que o camião que transportava a referida mercadoria havia sido roubado e posteriormente descoberto e restituído sem tal mercadoria (cfr. doc. de fls. 12) - al. D.
5 -F, motorista de "C, Lda.", conduziu o tractor de marca "Volvo" com a matrícula BG e o semi-reboque da marca "Van Hoolen", modelo S 338/27, com a matrícula P, até ao parque de estacionamento do Hotel "Formule 1" situado em ...., França, local onde chegou às 02.30 horas do dia 28.11.95 e onde estacionou tal veículo - al E.
6 - Tal parque de estacionamento não é guardado, situando-se junto à estrada, a cerca de 5 km de ZalaPiche, local dito em 2 - Al. I.
7 - O referido F deixou as chaves na ignição e toda a documentação relativa ao veículo e à mercadoria que transportava dentro do mesmo, e não ligou qualquer sistema de alarme - al. F e G.
8 - Pelas 09.50 horas do mesmo dia participou à policia francesa o desaparecimento (furto) do referido camião (cfr. doc. de fls. 10) - al. H.
9 - No percurso percorrido pelo referido F existem vários parques de estacionamento para camiões TIR.
10 - Na sequência da participação referida em 8 a polícia francesa comunicou, em 04.12.95, ter encontrado o camião "Volvo F 12" de cor vermelha com a matricula BG, que foi restituído em 05.12.95 a F, com domicílio em ...., Valpaços, Portugal, pela Surete Urbaine de Toulouse (cfr. resposta ao quesito 5º e doc. de fls. 11).

Como se vê da decisão sobre a matéria de facto, os quesitos 1º a 4º e 6º a 14º mereceram a resposta de não provado, resposta que, como é sabido, significa que nada se provou do que neles se perguntava.
O quesito 5º - onde se inquiria se o camião foi, em 4.12.95, descoberto e restituído sem a mercadoria - teve a resposta restritiva e explicativa agora vertida no facto 10.
Ou seja e como se disse na decisão de 1ª Instância, a A. ora Recorrente apenas provou ter celebrado com a Ré aqui Recorrida o contrato de seguro dos danos para si resultantes do eventual extravio das mercadorias discriminadas na apólice de fs. 7 quando, nos termos do art. 342º do CC, lhe competia a prova dos restantes factos constitutivos do direito à indemnização que reclamava, designadamente, a remessa das mercadorias para o cliente francês por aquele camião, furtado em pleno transporte e restituído dias depois, mas sem a mercadoria cujo valor pede à Seguradora.
Em suma, a A. não logrou fazer prova da eclosão do sinistro que lhe daria direito à pedida indemnização, pois a entrega da mercadoria à Transportadora, o furto do camião com essa mercadoria e o consequente prejuízo da A. resultaram não provados com os quesitos 1º, 2º a 4º e 6º a 14 que tal matéria acolhiam.

Mas foi justamente contra esta decisão da matéria de facto pelo Tribunal da sua comarca que a A. se insurgiu no recurso para a Relação do Distrito, concluindo que a remessa das peúgas para França e o seu extravio - e consequente desembolso do preço da mercadoria e custo do transporte - resulta da prova que foi produzida pela A. que não mereceu qualquer contradita pela Ré, e que foi apresentada de forma coerente, imparcial e honesta. É isso que se obtém dos depoimentos prestados em audiência de julgamento - ut conclusões 6ª e 8ª da apelação.
Como se viu, não foi essa a convicção do Julgador de facto, certo sendo, por outro lado, que a prova produzida se reduziu à junção com os articulados - ou apresentação posterior - de documentos particulares e a depoimentos de testemunhas que foram gravados.
Também ficou dito que a Relação concluiu que foi feito correcto julgamento da matéria em crise, não havendo assim razões plausíveis para que seja alterada a matéria de facto como tal julgada na primeira instância, que por isso se considera aqui definitivamente fixada.

É, ainda, contra a decisão sobre a matéria de facto agora confirmada pela Relação que a Recorrente se insurge, como se vê das conclusões em que resumiu a sua discordância com o decidido.
Salvo o respeito devido, a Recorrente bate a porta errada, pois, como se dispõe no n.º 2 do art. 729º do CPC, a decisão proferida pelo Tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada salvo no caso excepcional previsto no n.º 2 do art. 722º, ou seja, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, pois só neste caso o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa pode ser objecto de recurso de revista.
Seria o caso prevenido no n.º 1 do art. 364º do CC - «quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior» - ou, na segunda excepção, o disposto no n.º 1 do art. 371º do mesmo CC: «os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora».
Fora destes casos de prova vinculada ou plena, sempre que a lei não exija para a existência ou prova de facto jurídico qualquer formalidade especial que, então, não pode ser dispensada, o tribunal colectivo - o julgador de facto - aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto - art. 655º do CPC.
É que os documentos particulares, com autoria reconhecida, apenas provam plenamente as declarações atribuídas ao seu autor na medida em que os factos compreendidos na declaração forem contrárias aos interesses do declarante - art. 376º, n.os 1 e 2, do CC.
Como não pode deixa de ser. Se os documentos - e falamos só dos particulares - provassem tudo quanto deles se fez constar, designadamente as declarações favoráveis aos declarantes seus autores, estava encontrada a forma de simples afirmações escritas valerem mais que uma escritura, tornarem certo o que em cada momento convinha ao declarante documentador. E se a parte contrária elaborasse documento com declarações contrárias? Como se decidiria?
Por outro lado, a força probatória dos depoimentos das testemunhas, qualquer que seja o seu número, é apreciada livremente pelo Tribunal - art. 396º do CC.

Aquelas disposições constantes do n.º 2 dos art. 722º e 729º do CPC estão em consonância com o determinado no art. 712º do CPC.
Depois de se disciplinar os casos em que a Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, com reapreciação ou, até, renovação das provas em que assentou a parte impugnada da decisão (n.os 1 a 3), quando pode anular tal decisão (n.º 4) e determinar a respectiva fundamentação (n.º 5), o n.º 6 do art. 712º, aditado pelo Dec-lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro, dispõe expressamente que das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal.
Porém, o Supremo pode ex officio exercer tacitamente censura sobre o não uso por parte da Relação dos poderes de alteração ou anulação da decisão de facto, sempre que entenda dever esta decisão ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, ante o estatuído no n.º 3 do art. 729º (3) .
Fora desta hipótese, o Supremo pode exercer censura sobre o uso que a Relação fez dos seus poderes de anulação contidos no art.. 712º do CPC, mas já lhe está vedada a possibilidade de efectuar qualquer controle sobre o não uso desses poderes pela Relação (4) .

«Constitui jurisprudência dominante que o Supremo não pode censurar o não uso pela Relação dos poderes que lhe são conferidos pelo ar-tigo 712º do Código de Processo Civil (cfr. acórdãos deste Supremo de 2 de Fevereiro de 1993, Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo I, págs. 117 e segs.; de 14 de Junho de 1995, Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano III, tomo II, pág. 127; e de 18 de Novembro de 1997, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 132º, pág. 76).
É que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa duma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência de facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artigo 722º, n.º 2, do Código de Processo Civil). Por outro lado, a decisão da 2ª instância quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 2 do artigo 722º (artigo 729º, n.º 2, do Código de Processo Civil) ....(5)»

Voltando ao nosso caso, é seguro que, dada a natureza dos factos a apurar e da prova produzida (por documentos particulares e testemunhas), não se vê - nem a Recorrente concretiza - qualquer ofensa de disposição de lei que exija certa espécie de prova para a existência de qualquer daqueles factos nem que fixe a força de algum destes meios de prova, assim como a matéria factual apurada não carece de ser ampliada, nos termos dos n.os 2 e 3, do art. 729º do CPC.
Portanto, este Supremo Tribunal não pode alterar a decisão proferida pela Relação quanto à matéria de facto. E inalterada a factualidade apurada, é manifesta a improcedência do recurso por não ter a A. Recorrente provado, como lhe competia, os factos constitutivos do direito à pedida indemnização.

Mas a quem entenda, com o Prof. Teixeira de Sousa (6), que «a apreciação da prova é matéria de facto e está excluída da competência decisória do Supremo (excepto no caso previsto no n.º 2 do art. 722º), mas as condições que justificam a alteração da decisão da 1ª instância são matéria de direito e, por isso, são susceptíveis de ser apreciadas no recurso de revista», diremos que, ainda assim, carece de razão a Recorrente.
A prova documental levada ao processo não prova plenamente qualquer daqueles factos constitutivos do alegado direito da Recorrente e os depoimentos foram, como tinham de ser, apreciados livremente pelo Julgador de facto.
O Juiz não está obrigado a aceitar por bom quanto lhe dizem uma ou várias testemunhas, não é mero gravador/reprodutor de depoimentos, antes lhe cumpre analisar e apreciar o conjunto da prova produzida à luz do senso comum, das regras da experiência, do conhecimento da vida e dos homens que depuseram perante si.
Ora, no caso em apreço, o Julgador de facto baseou as respostas negativas aos quesitos 1º a 4º e 6º a 14º na ausência de prova convincente acerca dos respectivos factos e concretizou, especificou largamente as razões desta sua convicção (fs. 152 a 154) em termos que não deixam margem a dúvidas.
A Relação, tudo reapreciando nos termos do n.º 2 do art. 712º, concluiu (fs. 264/265) pelo correcto julgamento da matéria de facto, conclusão que temos de respeitar.

Ao contrário do que conclui a Recorrente,
- a A. não produziu prova - documental ou outra - bastante, ao menos aos olhos das Instâncias, para sustentar a sua tese - conclusão 1.
- a Ré produziu prova documental e ouviu sete testemunhas à matéria dos quesitos cuja contraprova lhe convinha, pelo que não se pode dizer que a Ré não contra-ditou a prova da A - conclusão 2.
- A convicção dos Julgadores de facto mostra-se devidamente fundamentada, em obediência ao disposto nos art. 653º, n.º 2, 690ºA, n.º 5 e 712º, n.º 2, do CPC, certo sendo, por outro lado, que não foi dada como provada a fraude alegada logo na contestação - conclusão 3.
- É manifesto que tanto a 1ª Instância como a Relação se serviram, apenas, de factos alegados pelas Partes. O naufrágio da acção ficou a dever-se à falta de prova desses alegados factos e não à existência de outros que não tenham sido alegados e que se não concretizam (nem a fs. 271 nem a fs. 276), pelo que se não mostra violado o comando fixado no art. 664º do CPC - conclusão 4.
- Ao manter a decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto, decisão que apreciou e julgou correcta, a Relação houve-se no exercício da sua exclusiva competência e ou por forma que nos não merece censura, pelo que não infringiu o disposto no art. 712º do CPC - conclusão 5.

Decisão
Termos em que se decide
a) - negar a revista e
b) - condenar a Recorrente nas custas - art.. 446º, n.os 1 e 2, do CPC.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2003
Afonso Correia
Afonso de Melo
Fernandes Magalhães
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(1) No mesmo sentido, a Jurisprudência citada na contra-alegação da Ré, referindo A. Abrantes Geraldes, Revista "Sub Judice"-Ideias n.º 8-CEJ, e Américo Marcelino, in Correio da Manhã, de 97.08.29.
(2) .... Mas alguém pode convencer-se que seja normal qualquer camionista, num país estrangeiro, durante a noite, em parque não guardado (quando existem outros parques guardados a pouca distância), deixar a chave na ignição quando estaciona a viatura, carregada de mercadoria para entrega ao importador logo pela manhã do dia imediato?
(3) - Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2ª ed., 194 e 237; R. Bastos, Notas ao CPC, III, 287, nota 4 ao art. 289º.
(4) - Ac. do STJ (Vítor Deveza), de 12.7.2000, no BMJ 499-248.
(5) - Ac. do STJ (Tomé de Carvalho), de 11.1.2000, no BMJ 493-320.
No mesmo sentido, com apoio, ainda, no art. 26º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, o Ac. do STJ (Silva Paixão), de 11.1.2000, no BMJ 493-387, e com indicação de larga cópia de jurisprudência, o Ac. do mesmo Supremo Tribunal (Araújo Barros), de 11.10.2001, na Col. Jur. (STJ) 2001-III-71.
(6) - Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., 448