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Sumário
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Arguido/recorrentes: A e B
1. OS FACTOS
Em data indeterminada de Julho de 1998, o arguido conheceu C, funcionária do Stand "D", situado em Matosinhos, através de um colega de trabalho, demonstrando-lhe interesse em adquirir um veículo automóvel. Aí, escolheu um veículo de marca Renault Clio e de matrícula EF, no valor de cerca de 2.100.000$00 e solicitou, por intermédio daquele Stand e a uma empresa de concessão de crédito, o financiamento necessário à concretização do negócio. Porém, este empréstimo não foi aprovado pela entidade financiadora, pois que o interessado havia sido inibido do uso de cheques. Neste contexto, o arguido decidiu adquirir o veículo em nome de E e de F, seus tios, fazendo-os acreditar que dele seriam meros fiadores. Assim, em dia indeterminado, o arguido dirigiu-se à residência deles, na Senhora da Hora, Matosinhos, e, apresentando-lhes os documentos que constam de fls. 152, 153 e 154 (emitidos pela G), pediu-lhes que os assinassem nos locais que indicou como apropriados à assinatura dos fiadores, mas que efectivamente eram os apropriados à assinatura dos mutuários e que lhe facultassem fotocópia dos respectivos bilhetes de identidade, cartões de contribuinte, um módulo de cheque e os últimos recibos de vencimento; disse-lhes que a fiança seria uma mera formalidade, já que nunca seriam incomodados, pois cumpriria pontualmente todos os encargos resultantes daquele contrato, de modo que acabou por convencê-los a aceitarem, como fiadores, tal proposta, a assinarem nos locais indicados e a entregarem-lhe aqueles documentos. De seguida, completou o preenchimento do contrato e demais documentos, colocando os nomes do E e da F no local reservado ao mutuário, o número da conta daqueles no local destinado à identificação da conta a debitar mensalmente, os números dos seus bilhetes de identidade e de contribuinte e demais documentos identificativos e, instruindo o contrato com cópias dos referidos documentos, submeteu-o à aprovação da G, que, em 23 de Julho de 1997, acreditando na regularidade daquelas assinaturas, aprovou e concedeu o crédito solicitado, disponibilizando e entregando ao Stand "D" a quantia de 2.000.000$, pelo que estes, também sem de nada desconfiarem, entregaram o automóvel ao arguido. Desta forma, o arguido conseguiu adquirir a viatura e obrigar aqueles seus tios a procederem ao seu pagamento, em 60 prestações mensais de 51.260$, no montante global de 3.075.600$00. Algum tempo depois, quando uma das prestações foi descontada na conta dos tios, o arguido começou por dizer-lhes que tinha havido um engano na preenchimento da documentação e que a situação seria regularizada no mês seguinte. O arguido entregou-lhes o montante relativo à prestação que lhes fora descontado na conta, mas a prestação do mês seguinte voltou a ser-lhes descontada na conta, tendo-se então o tio, depois de se dirigir à "D", apercebido de que, com a esposa, eram os "devedores" da quantia mutuada. Mais uma vez, o arguido entregou aos tios o montante relativo à prestação que lhes fora descontada, ficando apenas a dever-lhes 2.000$00/3.000$00. No dia 21 de Outubro de 1998, pelas 14 horas e 20 minutos, o arguido, a fim de conferir verosimilhança àquela tese e de evitar a sua responsabilização perante os seus familiares e perante a empresa financiadora, dirigiu-se às instalações da Polícia Judiciária do Porto e apresentou queixa contra a referida C (conforme consta de fls. 139 a 140) alegando, em síntese, que, em 27 de Julho de 1998 comprou no Stand "D" a viatura de matrícula, que, para seu pagamento obtivera, através da denunciada, um financiamento junto da G, que a denunciada lhe exigiu avalistas e lhe entregou todos os documentos relativos ao processo de empréstimo, que ele depois apresentou aos tios para que assinassem no local destinado ao avalista, e que mais tarde verificou que o pedido de empréstimo fora efectuado em nome dos seus tios, tendo sido falsificadas as suas assinaturas no auto de recepção, na livrança e no contrato de financiamento. Com esta conduta, o arguido queria e conseguiu que contra C fosse instaurado procedimento criminal, tendo aquele processo seguido os seus trâmites normais, até que em 22 de Fevereiro de 1999, face ao reconhecimento da veracidade das assinaturas, foi determinado o seu arquivamento (conforme consta do despacho de fls. 183). Entretanto, animado com o sucesso obtido, o arguido, agora em conjugação de esforços com a então sua namorada B, decidiu adquirir um veículo automóvel Renault Clio 1900 Diesel, de matrícula IN, em nome da arguida. Para o efeito, a fim de instruírem o pedido de financiamento e facilitar e conseguir a sua aprovação, os arguidos alteraram os seguintes documentos: - a data de nascimento da arguida constante do seu bilhete de identidade, fazendo constar 08/12/1971 onde constava 08/12/1979 (tal como resulta dos documentos de fls. 7 e 8); - o montante do vencimento por ela auferido, constante do recibo verde (modelo nº 6º - artº 107º do CIRSS), fazendo constar cento e setenta e cinco mil escudos onde constava setenta e cinco mil escudos (tal como consta dos documentos de fls. 13 e 14); - os modelos 1 e 2, anexo B, da sua declaração de IRS relativa ao ano de 1997, por forma a fazerem figurar dos mesmos rendimentos muito superiores aos reais (tal como consta dos documentos de fls. 6); e - forjaram um recibo do vencimento da mesma em nome de «..., Lda.» no montante mensal de 143.066$00 (tal como consta dos documentos de fls. 9 a 12). De seguida, munidos com os supra referidos documentos e com o cartão de contribuinte e um recibo da TV Cabo (destinado a comprovar a sua morada), os arguidos preencheram ou fizeram preencher a proposta de financiamento datada de 2/11/98, e que consta de fls. 81, que submeteram à aprovação da H, que, acreditando na veracidade e validade daqueles documentos e declarações, aprovou o crédito, tendo elaborado o respectivo contrato, que foi assinado pela arguida (conforme consta dos documentos de fls. 73 e ss.) e disponibilizou a quantia de 2.350.000$, que os arguidos entregaram na "D", recebendo em troca o veículo. Desta forma, mediante a utilização dos referidos documentos adulterados, os arguidos conseguiram que a H aprovasse e disponibilizasse aquele montante, o que não teria ocorrido se conhecesse a real situação financeira da arguida. Na mesma altura, os arguidos decidiram pedir mais um empréstimo, em nome da arguida e de sua mãe I (mas sem o seu conhecimento e consentimento) no montante de 400.000$00, destinado ao pagamento de acessórios para o veículo matrícula IN e liquidação dos 100.000$00 em falta relativos ao veículo de matrícula EF. Para o efeito, a arguida retirou de casa da sua mãe, situada no Bairro de S. Tomé, no Porto, o bilhete de identidade, o cartão de contribuinte e um recibo de vencimento. De seguida, a fim de instruírem o pedido de financiamento e facilitar e conseguir a sua aprovação, alteraram: - a data de nascimento de I constante do seu bilhete de identidade, fazendo constar 30/03/1956 onde constava 30/03/1960 (tal como resulta dos documentos de fls. 115 e 123); e - o montante do vencimento auferido constante do respectivo recibo, fazendo constar como rendimento líquido 98.207$00 onde constava 86.500$00 (tal como consta dos documentos de fls. 24 e 123). Então, munidos de tais documentos, do bilhete de identidade da arguida e um recibo do seu vencimento, alterados nos termos acima referidos, e com os respectivos cartões de contribuinte, preencheram ou fizeram preencher uma proposta de financiamento, que submeteram à aprovação da J, que, acreditando na veracidade e validade daqueles documentos e declarações, aprovou o crédito, tendo elaborado o respectivo contrato, em nome de ambas, que foi assinado pela arguida em seu nome pessoal e por um dos arguidos, com o conhecimento e consentimento do outro, com o nome da I, a simular a sua assinatura (conforme consta dos documentos de fls. 111 e ss.). A J disponibilizou, então, a quantia de 432.714$00, que os arguidos receberam e incorporaram no seu património, não a transferindo, como deviam, para a "D" e liquidação daquelas quantias. Desta foram, mediante a utilização dos referidos documentos adulterados e da utilização do nome da I sem o seu conhecimento e consentimento, conseguiram que a J aprovasse e disponibilizasse aquele montante, o que não teria ocorrido se conhecesse a real situação financeira da arguida e se soubesse que a I nada tinha pedido. Paralelamente, os arguidos decidiram negociar o veículo de matrícula EF, trocando-o por um novo por forma a liquidar aquele crédito (cujas prestações, a partir da 2ª, não tinham pago) e a substituí-lo por outro novo daquele montante global. Escolheram então o veiculo Honda Civic 1500 LST, de matrícula CC, no valor de 2.350.000$00 e decidiram pedir a quantia de 3.100.000$00 para seu pagamento e liquidação do que restava do IF. Para o efeito, munidos com os documentos de I, com o bilhete de identidade da arguida e um recibo do seu vencimento, alterados nos termos acima referidos, e com os cartões de contribuinte, os arguidos preencheram ou fizeram preencher uma proposta de financiamento, que submeteram à aprovação da G, que, acreditando na veracidade e validade daqueles documentos e declarações, aprovou um crédito no montante de 2.350.000$00, tendo elaborado o respectivo contrato, que foi assinado pela arguida em seu nome pessoal (conforme consta dos documentos de fls. 26) e disponibilizou aquela quantia, que foi entregue à "D", recebendo os arguidos, em troca, o referido veículo. Desta forma, mediante a utilização dos referidos documentos adulterados, os arguidos conseguiram que a G aprovasse e disponibilizasse aquele montante, o que não teria ocorrido se conhecesse a real situação financeira da arguida e soubesse que a I nada tinha pedido. Mais tarde, os arguidos decidiram rescindir o contrato do Honda, trocando-o por outro veiculo, marca Jeep Pagero, matrícula AU, de valor superior a 2.000.000$00. Por isso, a fim de instruírem o pedido de financiamento e facilitar e conseguir a sua aprovação, alteraram: - a data de nascimento de I constante do seu bilhete de identidade, fazendo constar 30/03/1954 onde constava 30/03/1960 (tal como resulta dos documentos de fls. 41); e - o montante do vencimento constante do respectivo recibo, fazendo constar como rendimento líquido 129.333$00 onde constava 86.500$00 (tal como consta dos documentos de fls. 46). Depois, munidos com esses documentos de I, com o bilhete de identidade da arguida e uma cópia da sua declaração de IRS, alterados nos termos acima referidos, e com os cartões de contribuinte, tal como consta de fls. 41 a 48, os arguidos preencheram ou fizeram preencher uma proposta de financiamento, que submeteram à aprovação da L, que, acreditando na veracidade e validade daqueles documentos e declarações, aprovou um crédito de 3.550.000$00, tendo elaborado o respectivo contrato e livrança anexa, que foram assinados pela arguida em seu nome pessoal e por um dos arguidos, com o conhecimento do outro, com o nome de I, a simular a assinatura desta (conforme consta dos documentos de fls. 49 e 50) e disponibilizou aquela quantia, que foi entregue à "D", recebendo os arguidos, em troca, o referido veículo. Desta forma, mediante a utilização dos referidos documentos adulterados, os arguidos conseguiram que a L aprovasse e disponibilizasse aquele montante, o que não teria ocorrido se conhecesse a real situação financeira da arguida e soubesse que I nada tinha pedido. Na mesma altura, como faltassem 250.000$ para pagar a viatura, os arguidos decidiram pedir um empréstimo em nome de M, avó do arguido, residente em Matosinhos. Por isso, a fim de instruírem o pedido de financiamento e facilitar e conseguir a sua aprovação, os arguidos alteraram: a data de nascimento de M constante do seu bilhete de identidade, fazendo constar 12/04/1946 onde constava 12/04/1926 (tal como resulta dos documentos de fls. 34 e 120; o montante da pensão, fazendo constar como rendimento líquido 61.200$ onde constava 33.000$ (tal como consta dos documentos de fls. 57), e forjaram o recibo de fls. 56, segundo o qual M era sócia gerente da "..., Lda.", auferindo mensalmente a quantia líquida de 116.880$00. Depois, foram a casa dela, onde a fizeram assinar uma proposta de crédito datada de 19/3/99, que consta de fls. 52, e, instruindo-a com os referidos documentos, submeteram-na à aprovação da N, que, acreditando na veracidade e validade daqueles documentos e declarações, aprovou o crédito, no montante de 350.000$00, tendo elaborado o respectivo contrato assinado por M, e disponibilizou aquela quantia, que foi levantada pelos arguidos e integrada no seu património. Desta forma, mediante a utilização dos referidos documentos adulterados ou forjados, os arguidos conseguiram que a N aprovasse e disponibilizasse aquele montante, o que não teria ocorrido se conhecesse a real situação financeira e pessoal de M. Algum tempo depois, quando as prestações começaram a ser descontadas na conta dos seus familiares, I e M, os arguidos disseram-lhes que tinha havido um engano no preenchimento da documentação, que a situação seria regularizada no mês seguinte e que C tinha forjado ou adulterado todos aquele documentos. De seguida, no dia 07 de Abril de 1999, pelas 12 horas e 20 minutos, a arguida, a fim de conferir verosimilhança àquela tese e de evitar a sua responsabilização e a do co-arguido, perante os seus familiares e as empresas financiadora, com o conhecimento e consentimento do arguido e de comum acordo com este, dirigiu-se às instalações da Polícia Judiciária do Porto e apresentou queixa contra C (conforme consta de fls. 3 e 4), alegando, em síntese: que negociara aquelas viaturas no Stand "D"; que, para seu pagamento, através da denunciada, obtivera um financiamento junto de empresas de concessão de créditos e que os documentos relativos aos referidos empréstimos haviam sido falsificadas. Com esta conduta, os arguidos queriam e conseguiram que contra C fosse instaurado procedimento criminal, tendo o processo seguido os seus trâmites normais, com a constituição e interrogatório da denunciada como arguida em 11 de Novembro de 1999 e sujeição da mesma a termo de identidade e residência. O arguido agiu de forma livre e consciente, induzindo E e F em erro, fazendo-os acreditar que estavam a assinar o contrato como fiadores, por forma a conseguir celebrá-lo à sua revelia, indicando-os como mutuantes e recebendo o montante respectivo, e causando-lhes assim o prejuízo patrimonial correspondente. Ambos os arguidos forjaram e alteraram os documentos supra referidos em 13 a 17, 18 a 23, 24 a 28, 29 a 33 e 34 a 39, no intuito de conseguir os referidos empréstimos, por forma a fazerem querer às empresas de financiamento que tinham capacidade financeira para proceder ao seu pagamento, querendo e conseguindo obter assim empréstimos que, de outra forma nunca conseguiriam, e provocando àquelas o correspondente prejuízo patrimonial. Para o mesmo efeito utilizaram e adulteraram os documentos de I e de M, celebrando aqueles contratos em seu nome, sem o seu conhecimento e consentimento, de modo que lhe causaram um prejuízo correspondente e enganando as entidades financiadoras, levando-as a aprovar e conceder aqueles empréstimos, que, de outra forma, nunca seriam aprovados. Para ocultarem a sua conduta, a fim de evitar a sua responsabilização perante os seus familiares e perante as referidas empresas, o arguido, primeiro, e depois ambos os arguidos, de comum acordo, apresentaram queixa contra C, acusando-a de ter forjado e adulterado aqueles documentos, no intuito de que contra ela fosse instaurado procedimento criminal, o que só conseguiram, vindo os mesmos processos a serem arquivados, por ter sido detectada toda a situação. Os arguidos, com excepção da primeira situação, agiram em conjugações de esforços, de forma livre e consciente e conheciam a proibição e punição das suas condutas. Ambos os arguidos, que actualmente são casados um com o outro, não tinham antecedentes criminais. Ambos trabalham, e têm a seu cargo um filho menor com 3 anos de idade.
2. A CONDENAÇÃO
Em 7Mar02, o tribunal colectivo do 3.º Juízo Criminal de Matosinhos (1) condenou A e B, como co-autores de dois crimes de burla simples (artº. 217º.1 do CP - pena de prisão até 3 anos), um crime de burla qualificada (artº. 218º.2.a - pena de prisão de 2 a 8 anos), um crime de falsificação simples (artº. 256º.1.a - pena de prisão até 3 anos) e dois crimes de denúncia caluniosa (artº. 365º.1 - pena de prisão até 3 anos), nas penas parcelares de 8 meses de prisão, 8 meses de prisão, 2 anos e 2 meses de prisão, 6 meses de prisão, 4 meses de prisão e 4 meses de prisão (esta apenas ao arguido) e nas penas únicas de 2 anos e 10 meses de prisão suspensa por 3 anos (o arguido) e 2 anos e meio de prisão suspensa por 3 anos (a arguida).
3. O RECURSO PARA A RELAÇÃO
Inconformados, os arguidos recorreram em 25Mar02 à Relação, pedindo o reexame da matéria de facto com a revogação do acórdão recorrido, «porque a prova produzida não foi suficiente para dar como provados todos os factos e porque não se encontram preenchidos todos os elementos do tipo de ilícito pelos quais os arguidos foram condenados».
A Relação do Porto (2), em 25Set02, requalificou como falsificação agravada os imputados crimes de burla, condenando os recorrentes, por cada um dos novos crimes, na pena de 6 meses de prisão e, em consequência, reduzindo as penas únicas, ao arguido, a 16 meses de prisão suspensa por 3 anos e, à arguida, a 14 meses de prisão igualmente suspensa por 3 anos:
Alegam os recorrentes que não se mostram preenchidos totalmente os requisitos referentes à prática do crime de burla. Vejamos. Estabelece-se no artº. 217º nº 1 do CP: "quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial". São, pois, os seguintes os elementos do referido crime: - O agente tenha a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo. - Que com tal objectivo, astuciosamente, induza em erro ou engano outrem. - Assim determinando o mesmo ofendido à prática de actos que causem a este ou a outrem prejuízos patrimoniais. Indicados os requisitos do crime, vejamos se todos eles se encontram verificados no caso dos autos. E o que desde já se dirá é que é manifesto que no caso vertente o primeiro dos referidos requisitos não se mostra preenchido. Na verdade exige-se no primeiro requisito a intenção do agente em obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo. E que se deve entender por enriquecimento ilegítimo? Como se escreve no Ac. S.T.J. 97.01.23, na determinação do enriquecimento ilegítimo importa considerar o conceito civilístico do enriquecimento sem causa: o enriquecimento de alguém com o consequente empobrecimento de outrem, o nexo causal entre a primeira a segunda destas situações, e a falta de causa justificativa de tal empobrecimento. Ora o que temos quanto a matéria de facto não permite concluir que os arguidos tenham agido com intenção de obter enriquecimento ilegítimo. Com efeito, tratando-se de um crime essencialmente doloso, só a título de dolo poderá ser imputado ao agente. Como escreve a propósito A. M. Almeida Costa "Para que se verifique o preenchimento do tipo subjectivo não basta, contudo, o dolo de causar um prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro, exigindo-se de outra parte, que o agente tenha a "intenção" de conseguir, através da conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio". É que, não havendo intenção de enriquecimento, pode o arguido com a sua actuação preencher todos os restantes elementos integradores do crime de burla, que este não se verificará. Tudo isto para dizer que no caso sub judice, não se mostra preenchido o referido requisito do dolo específico, sendo certo que a respectiva factualidade integradora do mesmo deveria ter ficado provada. É que não está provado que os arguidos não tinham a intenção de pagar as prestações referentes aos financiamentos recebidos ou que tinham a intenção de enriquecer à custa dos ofendidos. Assim sendo e porque tal factualidade já não constava do despacho de pronúncia, nunca poderiam os arguidos vir a ser condenados pelos crimes de burla por falta do referido elemento, pese embora os restantes requisitos se verificassem, como de facto se verificam. Deste modo faltando aquele elemento típico essencial ao preenchimento do tipo, os arguidos têm de ser absolvidos dos crimes de burla por que vinham condenados. Contudo, os crimes de falsificação subjacentes aos invocados crimes de burla e que o tribunal recorrido considerou terem perdido autonomia por entender que essa factualidade integrava apenas um meio para a concretização das burlas, readquirem-na agora, o que significa que a sua comprovada conduta integra a prática dos respectivos crimes de falsificação por que vinham pronunciados. Assim e relativamente ao arguido A vai o mesmo condenado pela prática de cada um dos três crimes de falsificação p. e p. pelo artº. pela prática 256º nº 1 a) e 3º CP, na pena de seis meses de prisão. Por sua vez a arguida B vai condenada por cada um dos referidos crimes de falsificação, também na pena de seis meses de prisão por cada um deles. Relativamente aos restantes crimes de falsificação igualmente p. e p. artº. 256º nº 1 a) e 3 CP e de denúncia caluniosa p. e p. no artº. 365º nº 1 CP por que foram condenados os arguidos, mostram-se igualmente preenchidos os respectivos requisitos, mostrando-se adequadas as penas respectivas que foram aplicadas. Há assim que reformular o cúmulo jurídico, nos termos do artº. 77º nº 1 CP. Assim ponderando em conjunto os factos e a personalidade dos arguidos, vai o arguido A condenado na pena única de dezasseis meses de prisão e a arguida B condenada na pena única de catorze meses de prisão, cuja execução relativamente a ambos se mantém suspensa pelo período ordenado na decisão recorrida.
4. O RECURSO PARA O SUPREMO
4.1. Ainda irresignados, os arguidos recorreram em 16Out02 ao STJ, pedindo - «por não se encontrarem preenchidos todos os elementos do tipo de ilícito» - a sua absolvição:
Os arguidos/recorrentes A e B, em sede de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, foram absolvidos da prática de três crimes de "burla" por que vinham condenados e condenados pela prática três crimes de "falsificação de documento" ps. e ps. artº. 256º n.o 1 al. a) e n.º 3. O Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos entendera que "(...) entre a falsificação dos documentos em causa nestes autos e a burla se verificava um caso de concurso aparente (consunção impura), por a falsificação ser apenas um meio ou instrumento para a realização das burlas, pelo que, e sob pena de violação ne bis idem, cometeram apenas os arguidos um crime de falsificação de documentos (...)". No entanto, o Tribunal da Relação do Porto, para onde os arguidos recorreram, veio a entender que "os crimes de falsificação subjacentes aos invocados crimes de burla e que o tribunal recorrido considerara terem perdido autonomia por entender que esta factualidade integrava apenas um meio para a concretização das burlas, readquirem-na agora, o que significa que a sua comprovada conduta integra a prática dos respectivos crimes de falsificação por que vinham pronunciados", uma vez que não se encontravam preenchidos todos os elementos do tipo de ilícito da "burla". Discordam os arguidos/recorrentes deste entendimento, sendo de manter o acórdão de 1ª instância na parte em que entendeu que no caso em apreço os crimes de "burla" consomem os crimes de "falsificação de documento". Não existe pois autonomia no que diz respeito a estes crimes, e não se verificando o preenchimento dos elementos do tipo de ilícito de "burla", que consome o de "falsificação de documento", não deveriam os arguidos ter sido condenados por este crime. Se assim se não entender, haverá sempre a dizer que os elementos dos crimes de "falsificação de documento" não se encontram todos preenchidos uma vez que não ficou provado a intenção de obter benefício ilegítimo.
4.2. Na sua resposta de 11Nov02, o MP (3) opinou pela improcedência do recurso.
5. QUESTÃO PRÉVIA
5.1. Já no STJ, a hierarquia do MP (4) foi do parecer, em 03Dez02, de que «os recursos devem ser rejeitados»:
Estando em causa processo por crime a que é aplicável pena de prisão não superior a cinco anos, ainda que em caso de concurso de infracções (5), o recurso, de acordo com o disposto no artº. 400º.1.e do CPP, não é admissível.
5.2. Os recorrentes - ouvidos a propósito - não repontaram.
5.3. Não é admissível recurso (...) de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções» (artº. 400º.1.e do CPP).
5.4. Ou seja, «mesmo em caso de concurso de infracções», não é admissível recurso - para ao STJ - de acórdãos proferidos pelas relações, em recurso, em processo por crime ou crimes individualmente puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos.
5.5. Ora, no caso, os «processos conexos» (cfr. artºs. 24º e 25º do CPP) (6) versam crimes individualmente puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos: três crimes de falsificação agravada (artº. 256º.3 do CP - pena de 6 meses a 5 anos de prisão), um crime de falsificação simples (artº. 256º.1.a - pena de prisão até 3 anos) e dois crimes de denúncia caluniosa (artº. 365º.1 - pena de prisão até 3 anos).
5.6. Daí que cada um deles valha como «processo por crime a que é aplicável pena de prisão não superior a cinco anos».
5.7. Tivessem eles sido julgados isoladamente e não haveria dúvidas de que não seria admissível recurso do(s) acórdão(s) proferido(s), em recurso, pela Relação.
5.8. Nem haveria razões substanciais - ou, sequer, processuais - para que se adoptasse um regime diverso de recorribilidade em função da circunstância de, por razões de «conexão» («de processos» - artº. 25º), terem sido conhecidos simultaneamente os crimes «concorrentes» (de cada «processo conexo»).
5.9. Aliás, para efeitos de recurso, «é autónoma a parte da decisão que se referir, em caso de concurso de crimes, a cada um dos crimes» (artº. 403º.2.b).
5.10. Por isso, o artº. 400º.1.e do CPP advertiu para que tal regime de recorribilidade (no tocante «a cada um dos crimes», ou, mais propriamente, ao «processo conexo» respeitante a cada «crime») se haveria de manter «mesmo em caso de concurso de infracções» julgadas em «processos conexos» (ou em «um único processo organizado para todos os crimes determinantes de uma conexão» - artº. 29º.1).
5.11. Ademais, se o artº. 400º.1, nas suas alíneas e) e f), pretendesse levar em conta a pena correspondente ao «concurso de crimes», teria aludido a «processo por crime ou concurso de crimes» (e não a «processo por crime, mesmo em caso de concurso»).
5.12. De resto, é nesse sentido que a melhor doutrina (7) se vem pronunciando (8):
«A expressão "mesmo em caso de concurso de infracções" suscita algumas dificuldades de interpretação. A pena aplicável no concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas e como limite máximo a soma das penas aplicadas aos diversos crimes em concurso (artº. 77º do CP). Não parece que o legislador tenha aqui recorrido a um critério assente na pena efectivamente aplicada no concurso e em abstracto é impossível determinar qual a pena aplicável aos crimes em concurso antes da determinação da pena aplicada a qualquer deles. Parece-nos que a expressão "mesmo em caso de concurso de infracções" significa aqui que não importa a pena aplicada no concurso, tomando-se em conta a pena abstracta aplicável a cada um dos crimes».
6. CONCLUSÃO
Em processo por crimes individualmente puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos, não é admissível recurso para o STJ de acórdãos proferidos, em recurso, pela Relação.
7. DECISÃO
7.1. Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência para apreciar a questão prévia suscitada no exame preliminar do relator (e, antes, no visto do Ministério Público que o precedeu), rejeita, por inadmissibilidade, o recurso interposto em 16Out02 pelos cidadãos A e B do acórdão da Relação do Porto que, em recurso, acabara de os condenar, por crimes individualmente puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos, nas penas conjuntas, respectivamente, de 16 meses de prisão suspensa e de 14 meses de prisão suspensa.
7.2. Os recorrentes pagarão as custas do recurso, com 3 (três) UCs de taxa de justiça (individual) e 1 (uma) UC de procuradoria (igualmente individual).
Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Janeiro de 2003
Carmona da Mota
Pereira Madeira
Simas Santos (com a declaração seguinte:
Votei o acórdão, pois que, não tendo por líquido o entendimento da al. e) do artº. 400º do CPP, entendo que, no caso de concurso de infracções, impera a moldura penal abstracta definida pelo nº. 2 do artº. 77º do Código Penal e que aqui é inferior a 5 anos, sendo certo que o M.P. não recorreu).
______________
(1) Juízes Isabel Cerqueira, Rui Moreira e Fernanda Amaral.
(2) Desembargadores Nazaré Saraiva, Esteves Marques, Clemente Lima e Costa de Morais.
(3) P-G Adj. Novais Machado.
(4) P-G Adj. Odete Oliveira.
(5) «Para os efeitos do disposto no artº. 400º do CPP, o que releva não é uma pena concreta imposta, mas a pena aplicável a cada crime por que se procede. Consequentemente, em caso de concurso de crimes, o elemento relevante continua na ser a pena aplicável a cada crime por que se procede, não sendo de atender à moldura penal do concurso, pois que esta pressupõe a prévia determinação das penas parcelares»
(6) «Há ainda conexão de processos quando o mesmo agente tiver cometido vários crimes cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca (...)»
(7) Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, p. 325.
(8) A jurisprudência do STJ, contudo, mantém-se, a esse respeito, algo dividida. Enquanto a 5.ª secção propende ostensivamente para a opção restritiva, a 3.ª secção tem revelado, ultimamente, alguma abertura à opção oposta:
5.ª secção: «Tendo os arguidos sido condenados em 1ª instância por infracções puníveis abstractamente com penas inferiores a cinco anos de prisão, está inequivocamente preenchida a causa de inadmissibilidade do recurso para este Supremo da decisão da Relação que julgou improcedentes os recursos para ela interpostos constante da alínea e) do n.º 1 do artº. 400º do CPP, sendo para o efeito irrelevante o facto de haver arguidos condenados por mais do que um desses crimes, porquanto, para a previsão de tal alínea, apenas importa a pena correspondente a cada um dos ilícitos, apresentando-se indiferente o concurso de crimes, tal como da letra respectiva expressamente resulta da expressão "mesmo em caso de concurso de infracções"» (STJ 21-01-2001, 956/01-5, Guimarães Dias - Carmona da Mota - Pereira Madeira). «Tendo a arguida sido condenada em 1ª instância pela prática de cinco crimes de receptação, p. e p. no artº. 231º, n.º 1, do CP, com prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias, tendo tal decisão sido confirmada por acórdão da Relação (por conseguinte, um acórdão condenatório), nos termos do artº. 400º, n.º 1, al. f), do CPP, é inadmissível recurso do referenciado acórdão da Relação para o STJ» (STJ 19-04-2001, 957/01-5, Dinis Alves - Carmona da Mota - Pereira Madeira). «Atento o princípio da cindibilidade dos recursos, o facto de o recurso interposto pelos assistentes para a Relação - de acórdão condenatório dos arguidos - ter obtido provimento, em parte específica da decisão da primeira instância, não afasta a dupla conforme condenatória prevenida na al. f) do n.º 1 do artº. 400º, do CPP. Em tal situação, sendo os crimes por que os arguidos foram condenados (burla qualificada e corrupção passiva) puníveis com penas de prisão não superiores a 8 anos, malgrado o concurso de infracções, não podem os mesmos recorrer, daquele acórdão da Relação, para o STJ» (STJ 17-05-2001,1410/01-5, Dinis Alves - Guimarães Dias - Carmona da Mota). «É inadmissível o recurso de um acórdão da Relação que confirme decisão de 1ª instância relativa a crimes a que são aplicáveis penas de prisão não superiores a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções - artºs. 400º, n.º 1, al. f), do CPP» (STJ 14-02-2002, 380/02-5, Abranches Martins - Hugo Lopes - Oliveira Guimarães). «Nos termos conjugados dos artºs. 400º, n.º 1, al. f) e 432º, al. b), ambos do CPP, é inadmissível recurso para o STJ de acórdão condenatório do Tribunal da Relação, que confirme decisão de 1.ª instância, quando a medida abstracta da pena dos crimes objecto da condenação não for superior a 8 anos de prisão, mesmo que a Relação tenha reduzido a pena imposta aos recorrentes na decisão de 1.ª instância. II - Assim, deve o recurso ser rejeitado, por ser irrecorrível a decisão sobre que incidiu» (STJ 18-04-2002, 223/02-5, Oliveira Guimarães - Dinis Alves - Carmona da Mota). «Tendo um acórdão da Relação revogado o acórdão da 1ª Instância na parte em que o arguido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física p. e p. no artº. 143º, n.º 1, do CP, e mantido a condenação pelo outro crime remanescente no processo, violação na forma tentada p. e p. no artºs. 23º, n.º 2, 73º, n.º 1, al. a) e 164º, n.º 1, do CP, uma vez que apenas desta condenação podia o arguido recorrer, sendo a pena máxima aplicável ao respectivo crime não superior a oito anos, não admite tal decisão recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, face ao preceituado no artº. 400º, n.º 1, al. f), e 432º, al. b), do CPP» (STJ 27-04-2000, 142/2000-5, Abranches Martins - Hugo Lopes - Guimarães Dias).
3.ª secção: «A expressão, "mesmo em caso de concurso de infracções", a que se refere alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, deve ser entendida como significando que no caso de prática pelo arguido de várias infracções, ainda que cada uma delas não exceda a pena abstracta de 8 anos, se o cúmulo jurídico correspondente exceder também a pena de prisão de 8 anos, o recurso é admissível. Tal entendimento coaduna-se com a terminologia e sentido usados no n.º 2 do artigo 77º, do CP, quando alude aos limites mínimo e máximo da "pena aplicável" e colhe apoio nos artigos 14º, n.º 2, alínea b) e 16º, n.º 3, ambos do CPP, e com o espírito da lei ao reservar para o STJ a apreciação dos casos de maior gravidade» (STJ 02-05-2002, 220/02-3, Lourenço Martins - Pires Salpico - Leal-Henriques - Borges de Pinho). «A expressão "mesmo em caso de concurso de infracções" a que se refere a al. f) do n.º 1 do artº. 400º, do CPP, deve ser entendida como significando que no caso da prática pelo arguido de várias infracções, ainda que cada uma delas não exceda a pena abstracta de oito anos de prisão, se o cúmulo jurídico correspondente exceder esse tecto de 8 anos o recurso é admissível» (STJ 25-09-2002, 1682/02-3, Leal-Henriques - Borges de Pinho - Franco de Sá).