IMPUGNAÇÃO PAULIANA
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
MÁ FÉ
PREJUÍZO
MATÉRIA DE FACTO
Sumário

1. Constitui dação um cumprimento, de cariz oneroso, o acto de entrega, feito pela sociedade devedora ao credor, com a aquiescência deste, de todos os seus activos, devolutos e livres de ónus ou encargos, para extinção da dívida da primeira para com o segundo.
2. A verificação do requisito da má fé, para efeitos de impugnação pauliana, basta-se com a mera representação, o conhecimento negligente da possibilidade da produção do resultado (o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor) em consequência da conduta do agente.
3. Prejuízo é vocábulo de uso corrente, e "consciência do prejuízo que o acto causa ao credor" constitui facto psicológico susceptível de quesitação.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Na presente acção intentada por A contra "B", Ldª e "C", SA, o autor pede que lhe seja reconhecido o direito à restituição dos bens cedidos pela 1ª ré à 2ª na medida do necessário à satisfação do seu crédito sobre a 1ª ré, no montante de 2.072.686$00, acrescido de juros, desde 13/2/95, calculados, à taxa legal, sobre o montante de 1.802.336$00, alegando, em síntese, que:
- foi trabalhador da ré "B", sendo dela credor no montante pedido, conforme sentença de 28/3/95;
- em virtude da escritura de dação em cumprimento, de 21/4/95, pela qual a ré "B" deu à ré "C" bens no valor de 307.300.000$00, ficou impossibilitado de obter a satisfação do seu crédito;
- as rés actuaram com o propósito de o prejudicar.
Citadas as rés (editalmente a "B") só a "C" contestou para alegar, em suma, que a escritura de dação em cumprimento foi precedida de longas negociações, tendo sido inclusivamente celebrado, em 21/12/94, um contrato-promessa de dação em pagamento, sendo, além disso, certo que não teve consciência de estar a lesar o autor, pois que desconhecia que ele era trabalhador da "B", com salários em atraso.
Na réplica, o autor ampliou o pedido no sentido da declaração da nulidade da escritura de dação em pagamento, ampliação que, com a oposição da ré "C", foi admitida.
Após vicissitudes várias que desinteressam ao desfecho do recurso, foi proferida sentença a julgar improcedente a acção, o que a Relação de Évora veio a confirmar, recusando provimento à apelação interposta pelo autor, que, inconformado, volta agora à carga pedindo a revista do acórdão da 2ª instância, formulando as seguintes conclusões:
1. A dação em pagamento é um contrato cumulativo, reunindo as características de um contrato de pagamento e uma doação de coisas destinadas a serem vendidas, prevalecendo a doação.
2. Nesta perspectiva de doação, a dação em pagamento é um contrato gratuito.
3. A credora "C" conduziu e celebrou um contrato com a "B" em seu benefício e, ostensivamente, prejudicou os restantes credores, entre os quais o ora recorrente.
4. Sendo a dação em pagamento um mandato de venda de um bem para que, com a realização do preço respectivo seja paga uma dívida, este contrato é principalmente gratuito.
5. A "C" tinha conhecimento de que a donatária "B" tinha dívidas para com os trabalhadores, onde se inclui o recorrente, que ficou impedido de executar o seu crédito por a "B" ter dado em pagamento todos os bens de que era possuidora.
6. Na verdade, em acção de falência proposta pela "C", esta reconheceu que a "B" tinha salários em atraso, tendo mesmo, na sua contestação, reconhecido que a ré "B" havia assumido o compromisso de pagamento dos salários aos seus trabalhadores.
7. Ao contrário do que pretende, a "C" tinha, confessadamente, conhecimento da existência de credores, nomeadamente de trabalhadores.
8. Por outro lado, a dação em pagamento foi celebrada na pendência duma acção de falência proposta pela "C", da qual desistiu depois de ter consumado a dação em pagamento.
9. A má fé presume-se, sendo ónus da prova em contrário da ré "C", o que esta não fez.
10. Assim, é lícito concluir que a "C" agiu conluiada com a ré "B" para satisfação do seu crédito em prejuízo dos restantes credores e do autor, ora recorrente.
11. As rés "B" e "C" tinham consciência de que com a sua atitude iam prejudicar todos os seus credores.
12. É, igualmente, elemento integrante de comportamento com má fé, o facto de a dação em pagamento ter sido celebrada na pendência de uma acção de falência promovida pela "C", o que gera mesmo nulidade do contrato nos termos do CPEREF.
13. Por último, mesmo que se conclua pela onerosidade da dação em pagamento, estão reunidos os elementos característicos da má fé.
14. Preenchidos os requisitos dos artigos 610º e 612º do CC, deve ser julgado procedente o presente recurso e substituído o acórdão recorrido por outro que julgue a acção procedente.

Contra-alegaram a "C" e o Ministério Público, propugnando o improvimento da revista.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Os factos provados são os seguintes:
1º- O autor trabalhou para a ré "B";
2º- O autor recorreu à via judicial para obter da ré "B" o pagamento de importâncias que lhe eram devidas, em consequência do contrato individual de trabalho que os ligava e obteve a seu favor sentença proferida em 28/3/95, nos autos de acção sumária de trabalho nº 32/95, que correram termos no Tribunal da Comarca de Odemira;
3º- Nessa sentença foi a ré "B" condenada a pagar ao autor a quantia de 2.072.686$00, acrescida de juros de mora;
4º- O valor atribuído em 3º é objecto de execução de sentença que, com o nº 32-A/95, corre termos no Tribunal da Comarca de Odemira;
5º- No âmbito da execução referida em 4º, foi o autor notificado de que a penhora requerida não podia ser cumprida por os bens respectivos terem sido objecto de venda à ré "C";
6º- Por escritura de dação em cumprimento, celebrada no dia 12/4/95, em Lisboa, na Av. ..., nº 63, sede da "C", a ré "B" cedeu a esta bens no valor global de 307.300.000$00;
7º- Por meio do acordo mencionado em 6º, a totalidade dos bens da ré "B" foi transferida para a ré "C";
8º- Nos bens englobados no acordo referido em 6º estava a totalidade dos que o autor nomeou à penhora na execução aludida em 4º;
9º- Em 21/12/94 foi celebrado entre as rés um contrato-promessa de dação em cumprimento, no qual ficou estabelecido que os activos da ré "B" seriam entregues à ré "C", devolutos e livres de quaisquer ónus ou encargos;
10º- Mais se referiu aí que a dívida da ré "B" e das sociedades «"D"» e «"E"» ascendia a 3.394.974.552$00;
11º- Até ao momento a ré "B" não pagou ao autor a quantia referida em 3º;
12º- A ré "B" recebeu diversas notificações do Tribunal de Odemira e foi notificada da sentença em que foi condenada ao pagamento da quantia aludida em 3º, sendo do seu conhecimento que o crédito do autor era emergente de um contrato de trabalho;
13º- A ré "C" tinha um conhecimento genérico da situação financeira da ré "B" e celebrou a escritura de dação em cumprimento;
14º- Foi na sequência do acordo de entrega dos bens livres e devolutos, referido em 9º, que a ré "B" e as sociedades «"D"» e «"E"» pagaram as quantias exequendas em diversos processos contra si movidos;
15º- Do mesmo modo pagou a ré "B" todas as dívidas ao Estado por impostos à Segurança Social;
16º- A ré "C" apenas conhecia o montante exacto do seu crédito sobre a ré "B", bem como os dos credores que tinham penhoras registadas sobre os imóveis para si transmitidos pelo acordo referido em 6º;
17º- Ao celebrar os acordos mencionados em 6º e 9º não tinha a ré "C" consciência de que causaria prejuízos ao autor, porquanto desconhecia a sua qualidade de credor da ré "B".

No sentido da procedência da acção - que ambas as instâncias rejeitaram - insiste o autor, ora recorrente, com dois argumentos, que as instâncias também não acolheram.
O primeiro é o da qualificação jurídica do contrato de dação em cumprimento, através do qual a ré "B" cedeu à co-ré "C" bens do seu activo, nos quais estavam incluídos todos os que o recorrente indicara à penhora na execução que intentou contra aquela para obter a satisfação do seu crédito laboral.
Persiste o recorrente no entendimento de que a dação em cumprimento é um contrato gratuito, o que dispensaria o requisito da má fé para a procedência da acção, atento o disposto na 2ª parte do nº 1 do artigo 612º do Código Civil.
Para a hipótese de não vingar esta tese e, portanto, de se considerar oneroso o contrato, lança mão o recorrente do argumento de que o requisito da má fé dos contraentes se encontra plenamente provado, face aos elementos constantes do processo e que não terão sido tomados na devida conta pelas instâncias.
São, portanto, estas duas questões que temos para resolver.
Vejamos então.

NATUREZA JURÍDICA DA DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
Pouco há a acrescentar ao que já se encontra explicitado, com toda a clareza e proficiência, quer na sentença da 1ª instância, quer no acórdão sob recurso sobre a patente onerosidade, que caracteriza a dação em cumprimento.
Laborando em manifesta confusão conceitual, defende o recorrente que a «dação em cumprimento (datio pro solvendo)... tem a natureza de mandato conferido pelo devedor ao credor para este liquidar o seu crédito pela disposição da coisa dada em função do pagamento» e que «com a dação não se extingue a dívida, ou melhor, poderá extinguir-se ou não conforme a coisa dada, depois de vendida, cubra o direito de crédito do credor».
Ora, é ponto assente, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que a dação em cumprimento (datio in solutum) definida no artigo 837º do Código Civil é figura jurídica completamente distinta da dação em função do cumprimento (datio pro solvendo), regulada no artigo 840º do mesmo Código.
Na dação em cumprimento o devedor pretende, através de prestação diversa da devida, extinguir imediatamente a obrigação.
Na dação em função do pagamento o devedor pretende apenas facilitar o cumprimento, fornecendo ao credor os meios necessários para este obter a satisfação futura do seu crédito. (Por todos cfr. C. Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela).
Ora, com o contrato definitivo celebrado em 12/4/1995 entre a "B" e a "C", antecedido pelo contrato-promessa outorgado entre ambas em 21/12/1994, aquela pretendeu, com a aquiescência desta, pagar-lhe parcialmente o que lhe devia, entregando-lhe todos os seu activos, devolutos e livres de ónus ou encargos.
Estamos indubitavelmente perante uma clara dação em cumprimento, pois que, com esta prestação oferecida pela "B", deu-se - como era intenção comum a ambas as partes contratantes -- a extinção parcial da obrigação pecuniária que a "B" tinha (e continua a ter quanto à parte não extinta) para com a "C".
É nítida, assim, a existência de uma correspectividade de atribuições patrimoniais própria dos contratos onerosos.
A prestação ora efectivada pela "B" é a contraprestação (embora parcial e de diferente natureza da originariamente devida) da que já lhe tinha sido prestada pela "C".
Nesta prestação da "B" não subjaz qualquer espírito de liberalidade no sentido de, com ela, pretender proporcionar à "C" uma vantagem patrimonial, sem qualquer correspectivo ou contraprestação, como é característica dos contratos gratuitos (v. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, página 286, ed. de 1973).
Por outro lado, não retira o cariz oneroso à dação em cumprimento o facto da respectiva prestação não ser, em termos quantitativos, inteiramente coincidente com a prestação já efectivada pela "C" e pela qual se tornou credora da "B".
Até porque aquela é inferior a esta.
Mas mesmo que fosse ao contrário, nem por isso se poderia qualificar o negócio de gratuito, uma vez que, conforme ensina Almeida Costa em Direito das Obrigações, 6ª edição, páginas 305 e 306, citado no acórdão em análise, «os contratos onerosos não supõem forçosamente um perfeito equilíbrio objectivo ou absoluta contrapartida económica das prestações. O que em regra importa é a equivalência subjectiva, quer dizer, a que corresponde à avaliação ou vontade dos contraentes.».
MÁ FÉ
Concluindo-se, como não podia deixar de ser, pela onerosidade da dação em cumprimento outorgada entre as duas co-rés, exige o artigo 612º, nº 1 (1ª parte) do Código Civil, para a sujeição do acto à impugnação pauliana, a verificação do requisito da má fé do devedor e do terceiro intervenientes no acto impugnando.
Nos termos do nº 2 do mesmo artigo, entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
Este conceito tem sido alvo de constante análise pela doutrina e pela jurisprudência, podendo considerar-se assente o entendimento de que ele não pode ser integrado pelas posições extremistas, ou seja, nem, por um lado, é suficiente o mero conhecimento da precária situação patrimonial do devedor, nem , por outro, se exige o conluio, o animus nocendi entre o devedor e o terceiro contra o credor.
Basta a mera representação, o conhecimento negligente da possibilidade da produção do resultado (o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor) em consequência da conduta do agente - cfr. entre outros, os acórdãos de 9/5/2002, com o mesmo relator, proferido na revista 934/02 -2ª Secção e de 10/11/1998, CJSTJ, ano VI, tomo III, página 106.
Ora, as instâncias concluíram não resultar provada a actuação de má fé por parte da "C".
E é essa, na verdade, a única conclusão que legitimamente se extrai dos factos provados, maxime da resposta ao quesito 13º, no sentido de que, ao celebrar o contrato-promessa e o contrato definitivo da dação em cumprimento, a "C" não tinha consciência de que causaria prejuízos ao autor.
Nem se diga que tal resposta não pode ser considerada por conter matéria conclusiva e, por isso, inquesitável.
Na verdade, tem este Supremo vindo a entender que prejuízo é um vocábulo de uso corrente, com significado conhecido por todos e que a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor constitui facto psicológico susceptível de quesitação - acórdãos de 15/2/2000, CJSTJ, ano VIII, tomo I, páginas 91-97 e de 20/6/2002, proferido na revista nº 1752/02 -7ª Secção.
Perante a referida resposta ao quesito 13º e as demais respostas atinentes ao requisito da má fé - restritiva ao quesito 7º, negativa ao quesito 8º e afirmativa ao quesito 11º, das quais resulta que a "C" apenas conhecia o montante exacto do seu crédito e dos credores com penhoras inscritas sobre os imóveis objecto da dação em cumprimento --, de nada vale ao recorrente vir argumentar que não foram levados na devida conta pelas instâncias determinados factos documentados nos autos, designadamente que:
- na acção de falência intentada pela "C", esta reconheceu que a "B" tinha salários em atraso e que esta assumira o compromisso de os pagar;
- a dação em pagamento foi celebrada na pendência dessa acção de falência, da qual a "C" desistiu depois de ter consumado a dação em pagamento;
- é elemento integrante de comportamento com má fé o facto de a dação em pagamento ter sido celebrada na pendência de uma acção de falência promovida pela "C", o que gera mesmo nulidade do contrato nos termos do CPEREF.
E isto porque as referidas respostas consubstanciam matéria de facto definitivamente fixada pela instâncias, escapando aos poderes do Supremo a censura dessa decisão, ainda que tenha havido erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, conforme determina o nº 2 do artigo 722º, ex vi do artigo 729º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil e ressalvados os casos excepcionais previstos na primeira norma, os quais não se verificam.
Tal como também se não verifica a necessidade da baixa do processo para ampliação da matéria de facto, ou para a sanação de eventuais contradições na decisão sobre a mesma matéria, como - também excepcionalmente - prevê o nº 3 do referido artigo 729º.
DECISÃO
Pelo exposto decide-se negar a revista, com custas pelo recorrente, sem prejuízo pelo apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2003
Ferreira Girão,
Luís Fonseca,
Eduardo Baptista.