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TEMPESTIVIDADE
QUESTÃO DE DIREITO
QUESTÃO DE FACTO
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário
I - O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar. II - Havendo lugar a arguição de nulidades e (ou) pedido de esclarecimento ou reforma, a respectiva sentença só passa em julgado depois de aquela arguição ou de aquele pedido serem, em definitivo, integradas naquela, portanto, só com o trânsito da decisão que decide da arguição, esclarecimento ou reforma. III - Pressuposto fundamental da prossecução da instância extraordinária de fixação de jurisprudência é a existência de uma mesma questão-de-direito - eadam questio - antagonicamente decidida nos dois arestos em confronto. IV - Questão-de-direito, em abstracto, é a que tem por objecto a determinação do critério jurídico que haverá de orientar, e concorrer para fundamentar, a solução jurídica do caso decidendo; em concreto, é o problema do próprio juízo concreto que há-de decidir o caso. V - Na questão-de-facto, do que se trata é de delimitar, na globalidade da situação histórica em que o problema jurídico concreto se situa, o âmbito e o conteúdo da relevância jurídica dessa situação problemática. VI - Se os recorrentes, expressamente, erigem em tema central do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, a questão de saber «se o excesso de velocidade face à manobra de mudança de direcção para a esquerda, deve ser entendida ou não, como causal do acidente», aportam para decidir, não, como se impunha, uma questão-de-direito, antes, a solução de uma mera questão-de-facto, já que não há norma alguma que possa, com a generalidade e abstracção que são da sua essência, dar uma resposta a tal questão. VII - Com efeito, ninguém poderá, com fundamento bastante, afirmar a priori se, perante um qualquer «excesso de velocidade», conjugado com uma qualquer «manobra de mudança de direcção para a esquerda», alguma delas exclui a causalidade ou concausalidade da outra, mantendo a própria, se se excluem mutuamente, ou se, ambas, confluem para o resultado. VIII - O estabelecimento de uma relação objectiva de causa-efeito - de causalidade, portanto - entre dois ou mais factos ou eventos, naturalisticamente considerados, podendo reclamar o contributo de variadas áreas científicas, não reclama, no essencial, a intervenção do Direito, não podendo, por isso, deixar de figurar como mera questão-de-facto. IX - A menos que o nexo causal se resuma a eventual inobservância de normas legais e (ou) regulamentares, pois, em tal caso, a sua definição envolve a apreciação de matéria de direito. X - De todo o modo, no caso sujeito, sempre seria de verificação praticamente impossível a reclamada identidade dos quadros de facto envolvidos nos dois acórdãos em confronto - art.º 437.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal - nomeadamente, o concreto «excesso de velocidade» a concreta alegada «manobra temerária» de mudança de direcção à esquerda, como causantes do acidente.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21 de Novembro de 2001, de que foi arguida nulidade, decidida por acórdão do mesmo tribunal superior, proferido em 3 de Abril de 2002, transitado em julgado a 24 do mesmo mês e ano, foi concedido parcial provimento ao recurso do arguido ali identificado assim o tendo absolvido do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º do Código Penal e da contra-ordenação ao artigo 30.º do Código da Estrada, de 1994; foi mantida a condenação do arguido pela contra-ordenação ao artigo 87.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Código da Estrada; foi negado provimento ao recurso da assistente RCOT e seus filhos S e RC e foi concedido provimento ao recurso da demandada "Axa Seguros Portugal, Companhia de Seguros, S.A", a qual foi absolvida do pedido cível contra si deduzido.
Inconformados, a assistente e demandantes cíveis interpuseram este recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, expressamente erigindo como objecto central do seu recurso a questão de saber «se o excesso de velocidade face à manobra de mudança de direcção para a esquerda, deve ser entendida ou não, como causal do acidente» questão esta que, segundo alega, recebeu respostas diversas, quer no acórdão recorrido, quer no acórdão da mesma Relação, de 15/4/98, recurso n.º 9710141, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 476, 482.
O MP junto do tribunal recorrido, assentando em que a questão em causa releva da matéria de facto, manifesta-se pela rejeição do recurso.
A seguradora demandada afirma, sem concretizar, que o recurso é extemporâneo, na medida em que foi interposto mais de trinta dias contados após o trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2. Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
Impõe-se que se comece pela questão da tempestividade do recurso, por se tratar de questão prévia à suscitada pelos recorrentes como tema de fundo.
Não é preciso dizer muito para se concluir pela sem razão da invocação da alegada intempestividade.
Se é certo que o acórdão que negou provimento às pretensões dos recorrentes foi proferido em 21 de Novembro de 2001, não é menos verdade que esse acórdão foi alvo de arguição de nulidade, decidida apenas por acórdão de 3 de Abril de 2002, transitado em julgado a 24 do mesmo mês.
Nos termos do direito subsidiário aqui aplicável, ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal, «a decisão considera-se passada ou transitada em julgado, logo que não seja susceptível de recurso ordinário, ou de reclamação nos termos dos artigos 668.º e 669.º» - artigo 677.º do Código de Processo Civil.
Ora, os artigos 668.º e 669.º citados respeitam, respectivamente, às causas de nulidade da sentença e aos pedidos de esclarecimento e reforma da sentença, o que significa que, naqueles casos de arguição de nulidades ou de pedido de esclarecimento ou reforma, a sentença só passa em julgado, depois de aquela arguição ou de aquele pedido serem, em definitivo, integradas na sentença, nos termos do artigo 670.º, n.º 2, do mesmo diploma subsidiário.
No caso sujeito, portanto, o acórdão proferido pela Relação em 21 de Novembro de 2001 só transitou com o trânsito do que decidiu da arguição de nulidades, ou seja, em 24 de Abril de 2002.
Portanto, quando, em 15 de Maio de 2002, os recorrentes interpuseram o recurso sobre que nos debruçamos, estavam em tempo, já que, como resulta do disposto no artigo 438.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «o recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar» e naquela data não haviam ainda decorrido os falados trinta dias após o trânsito da decisão recorrida.
Improcede, assim, a falada questão prévia.
Assim sendo, urge indagar se o recurso é de rejeitar, tal como defende o MP, ante o entendimento de que, ao invés do que é pressuposto fundamental para prossecução da instância extraordinária fixação de jurisprudência, exigido pelo artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal - a existência de uma questão-de-direito antagonicamente decidida nos dois arestos em confronto - o recorrente aporta ao Supremo Tribunal como tema central do seu recurso a solução de uma questão-de-facto, afinal consistente na discussão sobre a existência ou não de nexo causal do acidente.
Ora, não restando dúvidas, face ao que supra se relatou, sobre ser esse o objecto central do recurso, resta saber se a questão do nexo causal é ou não uma questão-de-direito.
É que se o não for, outro destino não poderá ter o recurso que a sua rejeição imediata, já que, quanto mais não fosse, pela via do artigo 434.º do Código de Processo Penal, sempre ao Supremo Tribunal estaria vedado imiscuir-se em questões-de-facto que se situem para além do conhecimento oficioso dos vícios a que alude o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.(1)
Sem preocupação de esgotamento do tema, lançar-se-á mão de alguns subsídios doutrinais mais acessíveis, capazes de darem algum contributo para o fim em vista.
Questão-de-direito é (...) tudo o que depende do raciocínio, de um juízo de valor. (2)
Será ainda questão-de-direito, toda aquela que se resolve pela aplicação de uma norma jurídica. (3)
E sê-lo-á também a qualificação feita usando um ou mais conceitos e temos jurídicos. São conceitos e termos jurídicos aqueles que são próprios da ciência do direito, cujo sentido a mesma ciência fixa ou procura fixar. (4)
Numa súmula muito clara, escreveu Karl Larenz (5): "À questão de direito pertence, em particular, a qualificação do ocorrido com ajuda daqueles termos cujo conteúdo significativo no contexto dado resulta apenas do ordenamento jurídico, especialmente com base numa coordenação tipológica, numa «ponderação» de pontos de vista divergentes ou numa valoração jurídica nos quadros de uma pauta carecida de concretização".
Já, segundo este mesmo autor, "se A causou um acidente por ter patinado numa curva numa estrada molhada, a questão de facto é o estado do pavimento e a velocidade com que A conduzia na curva; se o seu modo de condução foi, nestas circunstâncias, «negligente» é questão de direito. Portanto, sobre esta questão (...), não pode exigir-se prova no processo. Em contrapartida, pode e deve exigir-se sempre prova sobre todas as circunstâncias factuais de cuja existência depende a resposta à questão de direito."
A questão de direito em abstracto, tem por objecto a determinação do critério jurídico que haverá de orientar, e concorrer para fundamentar, a solução jurídica do caso decidendo. A questão de direito em concreto é o problema do próprio juízo concreto que há-de decidir esse caso.(6)
Já são questões-de-facto, conceitos e termos não jurídicos aqueles cujo sentido é atribuído pela linguagem vulgar ou pela linguagem de outras disciplinas científicas que não a jurídica. (7)
"(...) O primeiro momento da «questão-de-facto» consiste no problematizar, para submeter a um controle criticamente metodológico, a relevância jurídica daquela situação histórico-concreta do caso com que nos deparamos. Esse momento é assim função da intenção problemática que «pré-reflexivamente» se dirige ao caso no juízo autónomo que objectivou o caso como caso jurídico; e no seu resultado teremos o pressuposto objectivo da realização do direito nesse caso. Pressuposto objectivo já em si de sentido jurídico, já que o critério da sua relevância, é, naturalmente, o sentido normativo-problemático que começou por compreender-se no juízo de objectivação do caso jurídico. Do que se trata, pois, [na questão de facto] é de delimitar, na globalidade da situação histórica em que o problema jurídico concreto se situa, o âmbito e o conteúdo da relevância jurídica dessa situação problemática" (8).
Pois bem.
No caso, os recorrentes erigem em problema central do recurso, não uma questão-de-direito, como seria mister, antes, verdadeiramente, uma mera questão-de-facto.
Com efeito, consistindo explicitamente a questão posta em saber «se o excesso de velocidade face à manobra de mudança de direcção para a esquerda, deve ser entendida ou não, como causal do acidente», torna-se evidente que não haverá norma alguma que possa, com a generalidade e abstracção que são da sua essência (9), dar uma resposta a tal questão.
Como facilmente se intuirá, ninguém poderá, com fundamento bastante, afirmar «a priori», se, perante um qualquer excesso de velocidade, conjugado com uma qualquer manobra de mudança de direcção para a esquerda, qualquer delas exclui a causalidade ou concausalidade da outra, mantendo a própria, se se excluem reciprocamente, ou se ambas confluem para o resultado.
Só em face de cada caso concreto se logrará, porventura, obter uma resposta.(10)
Mesmo que a questão-de-facto se resumisse à mera contemplação ou enunciação de factos naturais, despidos de toda a carga ou intenção jurídica - e já se viu supra que assim não é - nunca a questão posta poderia revestir os contornos de questão-de-direito, porquanto a resposta a dar-lhe não depende da interpretação de normas jurídicas.
O estabelecimento de uma relação de causa-efeito, de causalidade, portanto, entre dois ou mais factos ou eventos, naturalisticamente considerados, poderá depender do contributo de muitas áreas científicas, nomeadamente da física. Mas não reclama, nem pode reclamar a intervenção do direito a não ser no estabelecimento do falado pressuposto objectivo como critério da sua relevância jurídica, mas sem por isso deixar de figurar como mera «questão-de- facto».
Por mais que o direito possa intervir na vida do Homem, há limites que nunca poderá ultrapassar. E as leis da física, constituem, obviamente, ao menos por enquanto ... um desses limites.
É certo que, como tem decidido este Supremo Tribunal (11), se «o nexo de causalidade constitui, em regra, matéria de facto cujo conhecimento se encontra fora do âmbito do recurso de revista. Todo o juízo conclusivo, positivo ou negativo, acerca da causalidade naturalisticamente considerada, integra matéria de facto, pois do que se trata é somente de saber se, na sequência e desenvolvimento do iter naturalístico dos factos, estes funcionam ou não como condição concretamente detonadora do dano», já, em certas casos, a fixação dessa componente da responsabilidade importa a solução de uma questão-de-direito, isto é, « só assim não será, [o nexo de causalidade não será mera questão-de-facto] no que respeita à culpa, se esta decorrer da inobservância de preceitos legais e regulamentares pois que, neste caso, a sua definição envolve apreciação de matéria de direito»(12).
Mas esta última hipótese está claramente afastada do caso em análise, já que, como ficou bem expresso na posição dos recorrentes que acima se transcreveu (13), é a consideração naturalística das coisas, em termos de mera causalidade, ou falta dela, de ambas as manobras, que os preocupa, (saber «se o excesso de velocidade face à manobra de mudança de direcção para a esquerda, deve ser entendida ou não, como causal do acidente») e não, qualquer ponderação jurídica, em termos de culpa, sobre a eventual irrelevância da condição objectiva criada, para a produção do resultado.
Daí que, movendo-se nos confins da questão-de-facto, os recorrentes não logrem encontrar no Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, por excelência, que é, solução para a questão que os preocupa.
E, de todo o modo, sempre seria de verificação praticamente impossível, a repetição, num e noutro dos acórdãos ora em confronto, da mesma situação de facto - a reclamada identidade dos factos - exigida pelo artigo 437.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal. Nomeadamente, o concreto excesso de velocidade invocado em cada um deles, a concreta «manobra temerária», enfim, as concretas circunstâncias de facto, tornadas imprescindíveis para fundarem a emissão de um fundado juízo de direito, como pressuposto de fixação de jurisprudência.
3. Termos, em que, pelo exposto, por inexistência de relevante oposição de julgados, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, rejeitam o recurso.
Os recorrentes pagarão pelo decaimento, taxa de justiça que se fixa em 5 unidades de conta.
Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Janeiro de 2003
Pereira Madeira (relator)
Simas Santos
Abranches Martins
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(1) E, mesmo com este campo limitado, vão surgindo algumas tomadas de posição no sentido de que, depois da Reforma de 1998, ante a instituição de um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, o Código de Processo Penal teria subtraído ao Supremo Tribunal essa incumbência, devolvendo-a pura e simplesmente às instâncias - cfr., v.g., a declaração de voto de vencido do Conselheiro Abranches Martins, no acórdão do Supremo Tribunal, de 17/10/02, proferido no recurso n.º 3224/02-5, sumariado em SASTJ, págs. 119-120 e também disponível na internet, site do STJ, jurisprudência criminal, boletim interno, mês de Outubro de 2002.
(2) Barbosa de Magalhães, A distinção entre matéria de facto e de direito, 19; Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, 501
(3) Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, 2.º-38 e 41; Palma Carlos, Direito Processual Civil, Dos Recursos, 1956, 120.
(4) Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1968, 2.º,-71.
(5) Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, tradução de José Lamego, 1997, págs. 435.
(6) Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, Problemas fundamentais, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1993, págs. 165.
(7) Castro Mendes, ob. e loc. cits.
(8) Castanheira Neves, ob. cit., págs. 163.
(9) Cfr. sobre tal ponto, J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, págs. 92.
(10) E isto mesmo que se considerasse a «doutrina» a final proposta pelos recorrentes para a solução do caso:
«I - Impende sobre o condutor que pretende voltar à esquerda o dever de não iniciar a manobra quando, em sentido contrário se aproxima outro veículo.
II - O excesso de velocidade não deve ser considerado causal do acidente ainda que a velocidade do veículo seja superior à legal, se a manobra de viragem à esquerda foi iniciada de forma temerária pelo sinistrado.»
Por um lado, porque a primeira proposição, a ser consagrada em «assento», constituiria uma autêntica aberração jurídica, a impor, no limite, praticamente, a proibição a qualquer condutor de mudar de direcção à esquerda, já que, mormente nos meios urbanos, é raro não se aproximar outro veículo... quando o pretende fazer.
Depois, porque, também a segunda proposição sugerida, é de todo insufragável, já que, como se compreenderá, não será uma manobra temerária (?), qualquer que ela seja, que tem, por si só, o condão de retirar a velocidade excessiva - qualquer que ela seja também - do número dos vivos, isto é, das causas ou concausas possíveis de todo e qualquer acidente.
(11) Nomeadamente, entre muitos outros que seria ocioso citar, (e, de resto são citados pelo MP na sua resposta), nos acórdãos de 28/10/99, de 11/5/2000, de 6/6/2000, proferidos, respectivamente, nos recurso n.º 812/99, e 202/00 e 251/00, disponíveis na base de dados do ITIJ.
(12) Cfr., entre muitos outros, o Ac. STJ de 30/9/99, proferido no recurso n.º 1140/99-2.
(13) Complementada com o conteúdo da nota de rodapé n.º 10.