ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
CESSÃO DE EXPLORAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
Sumário

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"Associação A" propôs contra B acção a fim de ser declarada a caducidade da cessão de exploração, ilegal e insubsistente a posse do réu relativamente à 'Casa do ...' situada em Silves junto à Barragem do Arade, reconhecendo-se-a como sua legítima possuidora, e se o condenar a lho restituir de imediato com os móveis e utensílios que existiam à data da celebração do contrato e a indemnizá-la, em quantia a liquidar em execução de sentença, dos prejuízos causados.
Contestando, o réu excepcionou a ilegitimidade da autora e a «prescrição» do direito a requerer a rescisão do contrato, impugnou qualificando de arrendamento para comércio o contrato em causa e, em reconvenção, pediu, caso proceda a acção, se a condene a lhe pagar, a título de benfeitorias e obras de reparação e beneficiação por si efectuadas, a quantia de 11.100.000$00.
Respondendo, requereu a autora a intervenção acessória da Câmara Municipal de Silves, incidente que foi admitido.
Por sentença, o contrato foi qualificado de cessão de exploração e procedeu parcialmente a acção e a reconvenção.
Apelando autora e réu, a Relação julgou procedente a deste, qualificando de arrendamento para comércio e do pedido absolvendo o réu, e prejudicada a daquela.
Por pretender a confirmação da sentença, pediu revista a autora concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações -
- foi de concessão de exploração o contrato querido celebrar e celebrado, cujo objecto foi a exploração do restaurante instalado na 'Casa do ...' - o "Restaurante C", mais tarde designado "Restaurante D" -, cujas cláusulas, reciprocamente aceites, são próprias daquele e onde ficou bem explícito que ao contrato se não aplicavam as normas do arrendamento comercial;
- por existir o estabelecimento de restaurante, o réu aceitou ser depositário do imóvel e dos respectivos utensílios nele existentes, assinando o inventário e comprometendo-se a fazer a sua devolução no final do contrato;
- à qualificação do contrato não interessa saber se, no momento da sua celebração, estava ou não em funcionamento o estabelecimento - basta que ele exista ou tenha aptidão funcional;
- nem a terminologia usada na documentação junta aos autos nem as obras realizadas pelo réu, sem autorização da autora, nem o apetrechamento do estabelecimento pelo réu alteram a qualificação que deva merecer o contrato em causa;
- o réu não se limitou a receber um espaço para nele instalar um restaurante, recebeu sim um estabelecimento de restaurante a explorar, onerosa e temporariamente, devendo devolvê-lo no termo do prazo estabelecido (juntamente com o gozo temporário e oneroso do prédio, a Câmara Municipal de Silves transferiu para o réu a exploração do estabelecimento de restaurante nele instalado);
- foi um contrato de concessão de exploração que a autora se responsabilizou a cumprir quando, por protocolo estabelecido com a Câmara Municipal de Silves, esta lhe devolveu aquele imóvel, que tinha em seu poder, mais o estabelecimento de restaurante nele instalado desde antes da celebração do contrato com o réu;
- violado o disposto nos arts. 238º CC, 111º R.A.U. e 659º CPC.
Contra-alegando, pugnou o réu pela confirmação do acórdão.

Colhidos os vistos.
Matéria de facto que as instâncias consideraram provada -
a)- a autora é uma pessoa colectiva de Direito Público que também foi designada por "Associação A";
b)- do inventário dos bens imóveis entregues à autora pelo Estado Português, para a obra de rega das Campinas de Silves, Lagoa e Portimão, constam edifícios destinados à exploração dos quais a Associação ficou fiel depositária, continuando os mesmos propriedade da Administração Central;
c)- dos referidos edifícios faz parte um imóvel situado em Silves, junto à Barragem do Arade, que era habitualmente destinado à morada do engenheiro residente e que era designado Casa da ...;
d)- a utilização do referido imóvel, entregue pelo Estado Português à autora, foi cedida verbal, gratuita e precariamente à CM Silves, que teve assim a posse do mesmo durante alguns anos;
e)- na vigência de tal cedência, a CM Silves celebrou com o réu, 82.01.04, um contrato dito concessão para a exploração de restaurante municipal existente junto à Barragem do Arade;
f)- o restaurante instalado na Casa do ..., objecto do referido contrato, era designado por "Restaurante C", passando depois a ter o nome "Restaurante D";
g)- em 85.03.12, CM Silves e a autora celebraram entre si um protocolo do qual resultou a devolução do direito de posse (da Casa do ..., onde está instalado o "Restaurante D") à "Associação A", e o reconhecimento desta dos compromissos assumidos (entretanto) com o actual arrendatário do restaurante, nomeadamente (quanto ao) contrato de exploração celebrado entre B e a Câmara;
h)- o réu, de Abril a Dezembro 85, pagou prestações na sede da autora, e nos escritórios desta, como lhe foi indicado pela CM Silves;
i)- por carta registada, de 86.03.31, enviada ao réu para a sua empresa ..., Loulé, a autora comunicou-lhe que havia sido deliberado conceder-lhe o prazo de 30 dias, a partir da data, a fim de o seu concessionário no restaurante da Barragem regularizar o contrato de arrendamento, a estabelecer, e o aluguer das referidas instalações, pertencentes à "Associação A";
j)- ainda pela mesma carta a autora informou o réu de que interpretaria o seu silêncio como desinteresse do arrendatário cessante, ficando a partir da data sem efeito qualquer compromisso assumido anteriormente pela CM Silves, e que a autora se obrigara a respeitar;
k)- a CM Silves enviou ao réu, em 86.06.19, este oficio: em virtude de até à presente data, a empresa (... a/c B, Barragem do Arade ), não ter regularizado a sua situação legal com a "Associação A", conforme ficou acordado em reunião nesta edilidade, e a continuação da sua exploração autárquica, a qual vai colidir com os interesses municipais, bem como dos seus cidadãos e do bem público ...,considerando que (1) tendo sido destruído o parque natural da zona da ilha, sem qualquer autorização, (2) tendo já falecido nestes últimos anos alguns cidadãos nacionais e estrangeiros, sem qualquer norma de segurança e responsabilidade, (3) continuando a situação do Bar ilegal, (4) e a gestão e utilização abusiva de toda a zona envolvente da Barragem (corte de árvores, barcos sem licença, pranchas aquáticas ...), vai esta edilidade diligenciar no sentido do encerramento da dita exploração, junto das entidades competentes;
l)- em resposta à carta do réu, 86.06.27 (propunha negociações para compra do edifício do restaurante na Barragem do Arade e a aplicação legal do estipulado pela lei em vigor no que concerne à transmissão de bens de senhorios na defesa dos interesses dos respectivos arrendatários), a autora enviou-lhe, em 86.08.26, uma carta registada com a.r.: como é do seu conhecimento o contrato celebrado com a CM Silves terminou em 12.95, pelo que se torna necessário acertarmos novo contrato, tendo como base os seguintes pontos - (1) do arrendamento apenas constarão o edifício onde se encontra instalado o restaurante e o respectivo logradouro, excluída a utilização das ilhas, (2) o arrendamento será por dois anos com início em 86.01.04, prorrogável por períodos de um ano, mediante requerimento do arrendatário, com antecedência mínima de 30 dias do termo do contrato, ficando essa prorrogação sujeita a revisão de preço e condições, (3) a renda mensal será de 20.000$00, quanto à proposta de compra ... está fora de causa, não podendo servir de base para negociações, em virtude de se tratar de património do Estado;
m)- em 86.10.07, a autora enviou à Administração de ..., ao cuidado do réu esta carta: da reunião havida...no dia 23.09 último...ficou acordado aguardar-se contra-proposta vossa às nossas condições de arrendamento, até final da semana anterior, como até à presente data nada nos foi comunicado, infere-se desinteresse da vossa parte.... em conformidade ... não se sente esta Comissão Administrativa obrigada a continuar conversações. ...a partir desta comunicação fica interdita a navegação de qualquer tipo de barco na albufeira do Arade;
n)- não obstante o "Restaurante D" haver sido alvo de um despacho de encerramento por parte do Governo Civil de Faro, 87.02.23, a que foi dado cumprimento, 87.03.10, o réu recusou-se a fazer entrega da Casa do ... à autora;
o)- o réu jamais entregou à autora a chave da mesma, que continuou a ocupar, bem como continuou a enviar cartas à autora manifestando o interesse da prorrogação do contrato, por exemplo, datada de 89.11.29, a que a mandatária da autora respondeu dizendo, mais uma vez ter o dito contrato há, muito caducado, sem ter sido renegociado;
p)- foi o réu quem obteve das autoridades competentes, e designadamente da CM Silves, o licenciamento e o alvará sanitário (nº 11) do estabelecimento;
q)- a CM Silves remeteu ao réu, e este recebeu o seguinte oficio: informo que esta Câmara Municipal assinou com a "Associação A", o protocolo da entrega da casa da Barragem, de que V.Exa. é arrendatário, pelo que deverá proceder ao pagamento da renda respeitante ao mês de Abril nos escritórios da referida "Associação A", em Silves; mais informo ainda, que a renda respeitante ao mês de Março, se encontra a pagamento na Tesouraria desta Câmara;
r)- em 86.07.02, o réu depositou na CGD a quantia de 35.000$00 relativa às rendas dos meses de 01/06/86 do Restaurante sito na Barragem do Arade, não tendo pago qualquer outra prestação;
s)- tendo em vista a eventual prorrogação do prazo, que deveria ter início em 86.01.04, a autora tentou chegar a acordo, para esse efeito, com o réu, o que não foi possível;
t)- o réu jamais apresentou qualquer proposta com vista à celebração de um contrato com a autora;
u)- a autora, através de mandatária, enviou ao réu uma carta, 87.06.09, lembrando mais uma vez que o contrato celebrado com CM Silves caducara há muito, e que não tinha sido celebrado qualquer outro; solicitou por isso ao réu que comparecesse no mencionado restaurante, 19.06.87, 11.00 h, a fim de fazer a devolução da respectiva chave;
v)- na Casa da ..., não tinham a CM Silves nem a autora qualquer estabelecimento a funcionar, explorado comercialmente por uma ou por outra;
x)- o réu apetrechou a referida Casa do ... ou Casa da ... com o equipamento, máquinas e utensílios necessários e adequados à instalação do restaurante, que passou a denominar "Restaurante D";
y)- o réu criou a sua própria clientela, de nacionais e estrangeiros, conferindo ao local interesse turístico;
w)- em 82.11.26, a Repartição de Empresas e Actividades Turísticas da DGT exigiu ao réu a realização, em 90 dias, as seguintes obras: (1) melhorar, de um modo geral, as instalações sanitárias de clientes (revestimentos, equipamentos...); (2) subir até ao tecto as paredes das cabines sanitárias; (3) iluminar os espelhos colocados sobre os lavatórios; (4) melhorar as instalações destinadas a pessoal, principalmente as sanitárias; (5) rever as zonas de cozinha, por forma a torná-las funcionais, revestidos os tampos das mesas, bancadas e prateleiras ali existentes com material impermeável, resistente, liso e de cor clara, que permita uma fácil lavagem e inspecção do asseio, a não acumulação de detritos; (6) instalar lava-loiças em aço inoxidável ... ou outro material apropriado, em substituição dos actuais alguidares de plástico;
z)- o réu executou tais obras;
a-1)- todas as obras foram levadas a efeito com investimentos exclusivos do réu, sem qualquer comparticipação, mínima que fosse, da autora, da CM Silves, do Estado, ou de qualquer ou entidade pública;
b-1)- o réu efectuou obras de ampliação da área útil do edifício, melhoramentos na cozinha e casa de banho, obras de recuperação da esplanada e jardins, obras de consolidação da falésia e reparação de esgotos, reparação da instalações eléctrica e canalização de água, tendo sido proferida pela CM Silves sobre as obras de ampliação da área útil do edifício a seguinte informação e deliberação: após deslocação ao local para verificação das dimensões e características das obras a efectuar conclui-se que o requerente (B) pretende fechar a marquise coberta e o pátio descoberto existentes nos alçados laterais do edifício; as características dos materiais e elementos decorativos bem como as cores a utilizar estão em consonância com a tipologia arquitectónica do exterior do edifício, integrando-se estética e visualmente na paisagem, permitindo aumentar a área útil do restaurante com beneficio das potencialidades do local; Del.: concordamos com a informação, CMS, 82.02.25;
c-1)- o edifício onde se acha instalado o estabelecimento "Restaurante D" era de construção antiga;
d-1)- o réu procedeu às seguinte alterações e beneficiações: (1) na divisão, que inicialmente era uma sala, beneficiou a decoração através de elementos de madeira, numa das paredes enquadrando o brasão concelhio existente, e noutra parede colocou um painel em ferro, alusivo à nova denominação do restaurante, constando de um veado no canto, em que se faz sobressair a silhueta através de iluminação colocada por detrás; neste salão colocou mobiliário novo constituído por maples revestidos a veludo vermelho; (2) procedeu ao fecho da varanda N., com o tecto em vigas e revestimento em madeira de forro, sendo o telhado de telha idêntica à já existente; em toda a extensão, e proporcionando uma vista panorâmica sobre a albufeira, colocou janelas com as estruturas também em madeira;
e-1)- esta ampliação foi efectuada com o propósito de aí instalar a sala de jantar, permitindo capacidade para 35 pessoas;
f-1)- numa outra divisão constituiu o réu uma sala de dança, cujo revestimento interior foi forrado a alcatifa com jogos de espelhos sobrepostos e tendo anexo uma cabine de som e luz;
g-1)- o réu procedeu ainda a beneficiações na decoração e mobiliário do hall de entrada, aproveitando-o para a instalação de uma loja de artesanato e recordações, em que o balcão e prateleiras foram feitas de madeira;
h-1)- o réu procedeu à construção de casas de banho para senhoras e para homens;
i-1)- o réu procedeu à reparação e beneficiação da cozinha, com os arranjos necessários e possíveis ao seu bom funcionamento;
j-1)- a esplanada foi equipada com uma churrascaria;
k-1)- o edifício foi beneficiado com condições de ventilação, passando a ter em todo o perímetro janelas que permitem uma renovação do ar, a par de ar condicionado na sala de refeições e na sala de dança;
l-1)- a partir de 12.85, a autora propôs ao réu a celebração de novo contrato e com cláusulas novas;
m-1)- o réu recusou as cláusulas novas do novo contrato pretendido pela autora;
n-1)- o réu manifestou propósito e interesse nas sucessivas prorrogações do contrato;
o-1)- pelo menos na reparação da instalação eléctrica de todo o edifício, incluindo sala de dança, com a respectiva mão-de-obra despendeu o réu 900.000$00;
p-1)- pelo menos com obras de consolidação da falésia e reparação de esgotos despendeu o réu a quantia de 1.027.000$00;
q-1)- a autora jamais autorizou o réu a proceder a quaisquer obras.

Decidindo: -
1.- Única questão - a qualificação do contrato celebrado entre o réu e a Câmara Municipal de Silves, que a autora veio a receber e a se comprometer cumprir, se arrendamento para comércio se cessão de exploração. A solução do pleito depende da qualificação que ao caso couber.
Coincidem as instâncias na caracterização e definição de um e outro, apenas divergindo na transposição da teoria para a vida real. O cerne desta divergência está na fronteira espaço/estabelecimento, o saber se in casu o contrato incidiu sobre aquele se sobre este.
Por isso mesmo não se justificam grandes nem elaborados considerandos jurídicos sobre a questão mas antes breves apontamentos e olhar à realidade dos factos em presença.
2.- Em ambos os casos há uma transferência onerosa e temporária, mas o regime a que um e outro estão submetidos é diverso (RAU- 100º e 111º-1).
Enquanto no contrato de arrendamento para comércio, o senhorio cede o gozo e fruição do imóvel (espaço) para nele o arrendatário instalar um estabelecimento comercial, já na cessão de exploração ou locação de estabelecimento a cedência é não do espaço mas do estabelecimento.
A jurisprudência e doutrina afirmam que não é essencial a organização comercial estar em movimento, basta que a estrutura organizativa esteja potencialmente apta à funcionalidade ou ao destino, que tenha aptidão para entrar em movimento (vd., por todos, ac. STJ de 02.04.18, rec. 538/02).
Nessa sequência afirma-se que para haver cessão de exploração não é necessário que o estabelecimento comercial esteja a ser explorado, podendo tal negócio ter lugar mesmo que a exploração não se tenha ainda iniciado ou esteja interrompida (vd., por todos, ac. STJ de 02.05.14, rec. 1.154/02).
É o perspectivar do estabelecimento como uma unidade de fim, é o vê-lo a organização em si como um valor novo, é o considerá-lo na organização dos seus elementos essenciais integradores (e não se exige a presença de todos eles, v.g., o aviamento, etc) para os fins da produção.
2.- O apuramento da vontade real não se confunde com interpretação da declaração de vontade (fixação do sentido juridicamente decisivo da declaração).
Aquele constitui matéria de facto enquanto esta, quando normativa, sempre que estejam em causa critérios jurídicos definidos nos arts. 236º a 239º CC, constitui matéria de direito.
Na sentença, o tribunal partiu da análise dos termos do contrato e conjugando-os com a restante matéria de facto provada concluiu que o réu e a CM quiseram transferir e efectivamente transferiram, por determinado tempo, renovável, e mediante uma concreta e certa remuneração mensal, a exploração de um estabelecimento comercial da CM para o réu, juntamente com o gozo do local.
A Relação prescindiu da análise do contrato em si e parte da extrapolação, não consentida, de um facto não sem que, contudo, deixasse exarado - «o que parece certo, em face da matéria comprovada, é ter o R. recebido o encargo de concretizar um certo desenvolvimento turístico da zona, desígnio para o qual a Autora lhe facultou as instalações, e lhe outorgou o direito de explorar comercialmente um restaurante aí, onde o seu interesse se satisfazia com o chamamento de clientes para desfrutarem a beleza natural e a potencialidade económico-social da barragem» (fls. 265).
Se a passagem transcrita condensar a motivação subjacente própria a cada outorgante e os conduziu à celebração do contrato, serve ela para apoiar qualquer das teses em confronto. É equivoca, pois.

Provou-se que na Casa da ..., não tinham a CM Silves nem a autora qualquer estabelecimento a funcionar, explorado comercialmente por uma ou por outra. Todavia, a Relação lê o facto não como ficou assente mas extrapolando para o que nele se não contém - o réu apenas recebeu uma mera casa já que nem a autora nem a CM Silves tiveram na Casa do ..., antes de a terem cedido ao réu, qualquer estabelecimento comercial a funcionar; isto é, retirou do facto provado uma conclusão, mas esta não era nem é uma conclusão de facto mas sim de direito e constituindo o que juridicamente havia a discutir - ter sido cedido apenas um espaço ou antes um estabelecimento.
Tendo antes afirmado que importa para se concluir que determinada organização constitui um estabelecimento comercial a prova da sua aptidão para entrar em funcionamento (fls. 263), a conclusão que retirou não tem, se nada mais houver nesse sentido, apoio no que de direito definira.
Não é o facto de o réu ter apetrechado a 'Casa do ...', criado clientela, obtido o licenciamento e o alvará sanitário e a realizado obras de adequação que contraria o que de direito definira e autoriza a concluir que apenas fora cedido o gozo e fruição do espaço. Estes factos, de per si ou conjugados entre si, não são inequívocos.
Aquele facto constitui a resposta restritiva ao quesito 7º, matéria alegada pelo réu, e o ser restritiva revela que o clausulado no contrato se mantém na sua materialidade e realidade.
Quesito 7º - «Na 'Casa do ...', não tinha a Câmara Municipal de Silves, nem a Autora, a funcionar qualquer estabelecimento por si explorado comercialmente, nem maquinaria e móveis indispensáveis ao exercício de qualquer actividade comercial, e muito menos de restaurante?»
Resposta - «na Casa da ..., não tinham a CM Silves nem a autora qualquer estabelecimento a funcionar, explorado comercialmente por uma ou por outra».
Do contrato, reduzido a escritura (cfr., fls. 19), consta antes da fixação do clausulado que a CM Silves, através do seu Presidente, declarou - «que a Câmara Municipal de Silves, que representa, administra o estabelecimento designado por '"Restaurante C", sito junto à Barragem ...», declaração esta que então não mereceu qualquer impugnação, tendo o réu tudo o que no contrato foi exarado (fls. 18).
Teor da 1ª condição especial do contrato - «O objecto da concessão é a exploração da indústria hoteleira e similar no chamado '"Restaurante C", sem embargo do direito ...»;
e da 2ª - «o concessionário constitui-se fiel depositário do edifício e de todo o mobiliário, louças, vidros, talheres e demais utensílios e recheio municipais existentes, constante de um inventário, assinado pelos dois outorgantes»;
e ainda da 3ª - «o concessionário compromete-se, a manter o interior do edifício e todo o mobiliário, louças, vidros, talheres e demais utensílios na condição anterior em perfeito estado de ...».
A fls. 20 encontra-se o aludido inventário «Relação dos móveis e utensílios existente no "Restaurante C" Propriedade Municipal», tendo todos esses artigos sido entregues ao réu, artigos esses que são todos próprios de um estabelecimento do ramo de restauração (mesas, cadeiras, fogão, baldes para gelo, frigideiras, panela, tachos, travessas, bandejas, grelhador, candeeiro).
Pormenorizando estes factos não está o STJ a imiscuir-se em esfera que lhe não é própria, a da fixação da matéria de facto - são os factos constantes das als. e) e f) e do outro (o inventário) que se deve considerar adquirido desde a 1ª instância por não impugnado e documentalmente provado (aliás, o inventário foi expressamente referido na sentença - fls. 186).
O clausulado é todo ele dirigido à cessão de um estabelecimento comercial, do concreto estabelecimento comercial que existia. É clausulado próprio de um contrato de cessão de exploração.
Havia um estabelecimento comercial, embora no momento da celebração do contrato não estivesse a funcionar. Todavia, mantinha a potencialidade para entrar em movimento, tinha essa aptidão.
Não é a circunstância de nalguns documentos terem, mais tarde, surgido expressões como 'arrendamento' e 'arrendatário' que pode, a posteriori, descaracterizar o realmente querido e celebrado, como que convertendo, a partir de certo momento, a locação de estabelecimento em arrendamento (além de nem tal hipótese ter sido aflorada, a sua viabilidade era manifestamente nula na medida em que foram empregues em momento em que nem contrato havia, apenas e quando muito negociações com vista a eventual renovação).
Quiseram os outorgantes a transferência da exploração do estabelecimento sediado nesse imóvel e não a pura cedência do gozo e fruição daquele para nele ser instalado ex novo um estabelecimento.
Contrato de locação de estabelecimento, portanto.

3.- Também sobre o regime jurídico, há unanimidade entre jurisprudência e doutrina.
O contrato de locação de estabelecimento é um contrato inominado e rege-se pelo que as partes tenham estipulado e, subsidiariamente, pelas disposições do contrato típico mais afim e, na falta de umas e outras, pelas regras comuns a todos os contratos.
No contrato em causa estipularam os outorgantes (2ª condição geral) que «o prazo da concessão é de três anos ... podendo ser prorrogado por períodos de um ano, mediante requerimento do concessionário, mediante requerimento do concessionário, ..., ficando essa prorrogação sujeita a revisão de preço e das respectivas condições».
Como teve início (citada cláusula) no dia da assinatura do contrato (82.01.04) e não houve prorrogação alguma, caducou conforme a autora declarou ao réu.
Não era suficiente ao cessionário manifestar interesse em o ver prorrogado - a renovação estava subordinada a renegociação do preço e mais condições, ou seja, tinha de haver acordo na revisão do contrato.
Caduco o contrato de cessão de exploração, a ocupação pelo réu não tem apoio legal, tem de restituir o estabelecimento à autora.
4.- A Relação não conheceu da apelação da autora uma vez que ficara prejudicada pela procedência do recurso do réu.
Como não é de manter essa procedência, além de se revogar o acórdão, baixará o processo à Relação para aí, se possível pelos mesmos Exmºs. Juízes Desembargadores que intervieram no julgamento, ser conhecida a apelação da autora (se conhecido fosse pelo STJ haveria supressão de um grau de jurisdição).

Termos em que se concede a revista, revogando-se o acórdão para subsistir a sentença na parte decisória relativa à acção, e se ordena a remessa à Relação para aí, se possível pelos mesmos Exmºs. Juízes Desembargadores que intervieram no julgamento, ser conhecida a apelação da autora.
Custas pelo réu.

Lisboa, 3 de Abril de 2003
Lopes Pinto
Pinto Monteiro
Reis Figueira