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TRESPASSE
CASA DE HÓSPEDES
LICENÇA SANITÁRIA
LIBERDADE CONTRATUAL
Sumário
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Na presente acção ordinária intentada por A contra B é pedida a nulidade do contrato de trespasse de um estabelecimento comercial (C), celebrado entre ambas, com a consequente restituição à autora do montante de 5.500.000$00, correspondente ao preço que pagou à ré, sem que aquela tenha de devolver a esta o estabelecimento, porque inexistente.
Como fundamento alega, em síntese, a falta de alvará e da licença sanitária, o que motivou o encerramento do estabelecimento cerca de seis meses após a celebração da escritura.
A ré contestou, alegando, no essencial, que a autora tinha perfeito conhecimento da falta de licença sanitária, estando a correr um procedimento administrativo para a sua obtenção. Terminou o seu articulado, pedindo a condenação da autora em multa e indemnização não inferior a 250.000$00, como litigante de má fé.
A autora replicou, reiterando o petitório.
Ultimada a tramitação normal do processo, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente, decisão confirmada pela Relação do Porto, sob recurso da autora, que insiste agora na defesa da sua tese, pedindo revista do acórdão da 2ª Instância, com as seguintes conclusões:
1. A perfeição negocial «in casu», ou seja, o trespasse de um estabelecimento comercial, C, nunca foi conseguido, devido à falta de um elemento essencial ao negócio: a inexistência de licença de sanidade do dito estabelecimento.
2. Sem tal licença, «ex vi legis», o referido estabelecimento não pode funcionar e, consequentemente, não existe juridicamente, pois não pode ser transaccionável como C, tal como o foi.
3. Como tal requisito fundamental, licença de sanidade, não existia ao tempo da realização do negócio, este é nulo porque legalmente impossível, pois não pode ser prosseguido nos seus fins, por ausência de um elemento essencial, como a realidade veio a demonstrá-lo.
4. Ao não dar relevo à supra referida falta de elemento indispensável e considerar o negócio efectuado como juridicamente são, o douto acórdão, ora em crise, é violador dos artigos 280 do C.C., 115, nº 2, al. a) do RAU e 74 do DL 328/86, de 30 de Setembro.
Contra-alegando, a recorrida pede a confirmação do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Os factos considerados provados são os seguintes:
1º Por escritura pública, outorgada no 6º Cartório Notarial do Porto, em 3 de Janeiro de 1994, a ré, na qualidade de dona e legítima possuidora do estabelecimento comercial de C, instalado no prédio urbano sito na Rua Oliveira Monteiro, nº .., Porto, «declarou que...pelo preço de Esc. 5.500.000$00, já recebido, trespassa à autora o mencionado estabelecimento, com todos os elementos que o integram, inclusive o direito ao arrendamento alvarás e licenças, com o pessoal que se encontra ao serviço do estabelecimento e livre de passivo»;
2º A autora pagou a referida quantia de 5.500.000$00 à ré, por meio de cheque nominativo, que entregou ao sr. D, mandatário da ré;
3º Aquando da celebração da escritura referida em 1º, o estabelecimento objecto dessa escritura não tinha alvará e licença sanitária;
4º E esse facto era do conhecimento da autora;
5º Em consequência directa e necessária do referido em 3º, o referido estabelecimento comercial foi encerrado, em 27 de Julho de 1994, por decisão do Governo Civil e após ter sido vistoriado pela P.S.P.;
6º A escritura referida em 1º foi antecedida da celebração, entre autora e ré, do escrito que se encontra junto aos autos a fls. 42 e 43, cuja cláusula 1ª consta do seguinte teor: «O 1º outorgante é dona e legítima possuidora do estabelecimento comercial designado por C da Rua ...., que está instalada na Rua ..... nº .., na cidade do Porto, conforme se vê do Alvará de Licença nº 242 - V/88, passado pelo Governo Civil do Porto, em 89.02.03;
7º A autora começou a explorar o aludido estabelecimento em seu exclusivo benefício e proveito logo aquando da celebração desse escrito;
8º E nessa altura foi-lhe entregue:
- o original do alvará mencionado em 6º, cuja cópia se encontra junto aos autos a fls. 44;
- o alvará de licença nº 202, de funcionamento de estabelecimento com licença única, emitido pelo Governo Civil do Porto, em 09/’02/88, cuja cópia se encontra junto a fls. 45 dos autos ;
- e o alvará de licença nº 85, de funcionamento de estabelecimento com licença única, emitido pelo Governo Civil do Porto, em 31/8/89, cuja cópia se encontra junta a fls. 46;
9º Ao consignarem na escritura aludida em 1º que a ré trespassava à autora o estabelecimento «com todos os elementos que o integram, inclusive...alvarás e licenças», autora e ré estavam a referir-se, única e exclusivamente, aos alvarás e licenças aludidas em supra 8º;
10º Em data não posterior à data da celebração do escrito referido em 6º, a autora foi avisada de que não estava emitida a licença sanitária para o estabelecimento em causa e tomou conhecimento que estava em curso um processo administrativo tendente à obtenção dessa licença;
11º Não obstante ter tomado conhecimento dos factos referidos em 10º, a autora quis celebrar o escrito referido em 6º e, posteriormente, a escritura aludida em 1º.
A questão única a resolver na presente revista é a de saber se está ferido de nulidade um contrato de trespasse de um estabelecimento «C» que, na altura do contrato, não tinha o alvará ou licença de sanidade exigido por lei (DL 328/86, de 30/9).
Prima facie, parece que a resposta não poderá ser outra que não seja a afirmativa.
Na verdade, é apodítico que a licença de sanidade constitui um elemento indispensável à legal funcionalidade de qualquer estabelecimento comercial destinado a hospedar pessoas.
No entanto, a resposta correcta já terá de ser a contrária, coincidente com a dada pelas instâncias, se tivermos em conta o circunstancialismo concreto do negócio, apreciado à luz do principio da liberdade contratual (artigo 405 do Código Civil), de decisivo relevo no caso que nos ocupa.
Como se sabe, a lei não nos dá o conceito de trespasse.
A doutrina e a jurisprudência, porém, têm procurado deduzi-lo quer do revogado artigo 1118 do Código Civil, quer do vigente artigo 115 do RAU (aprovado pelo DL 321-B/90, de 15 de Outubro).
Assim, Antunes Varela defende que «o trespasse é tomado pela legislação civil vigente como a transferência do estabelecimento comercial ou industrial, dando à expressão estabelecimento comercial o sentido específico, global ou unitário (de verdadeira universitas iuris) que os tratadistas do direito mercantil há muito lhe atribuem e acrescenta que «o trespasse consiste essencialmente na transferência do estabelecimento», fixando que não há trespasse quando se verifiquem as hipóteses previstas nas duas alªs do nº 2 do art.º 1.118 (do artigo 115 do RAU, actualmente) -- RLJ 102º-75 e sgs..
Para Vaz Serra «o que é essencial, para haver trespasse..., é que se transmita o estabelecimento como universalidade, isto é, como complexo ou unidade económica, como um todo destinado ao fim próprio dessa unidade.» -- RLJ 102º-103.
Por seu turno, Orlando de Carvalho, opondo-se à tese de Antunes Varela, entende que «a transmissão do estabelecimento continua a ser a condição necessária e suficiente para a dispensa da autorização do senhorio, no caso da cessão da posição do arrendatário, de acordo com o art.º 1.118, nº 1 do actual Código Civil. As duas alªs do nº 2 deste artigo não constituem senão índices semióticos da inexistência efectiva da transmissão do estabelecimento, o que é dizer, do trespasse tout court, segundo a terminologia que adoptou a nossa lei», mas, continua, «se as alíneas do art.º 1.118, nº 2 são meros índices de valor semiótico para a avaliação em concreto da transmissão do estabelecimento - sendo esta transmissão o único critério decisivo para a aplicação do art.º1.118, nº 1 - é claro que esses índices não só não são automáticos, como não são independentes ou suficientes de per si», por tal forma que «os requisitos implícitos nas alªs a) e b) não são, por isso, dois requisitos distintos, dois requisitos que tenham de cumulativamente preencher-se para que o trespasse concretamente se verifique. Se a prova de que existe transmissão do estabelecimento veio a ser feita por um só dos requisitos, com a densidade e a amplitude de que viemos falando, não é a falta aparente do outro que põe em causa essa mesma transmissão. Como tão pouco o é a falta dos dois, se a transmissão do estabelecimento se provar de outra maneira.» -- RLJ 110º-102 e sgs.
Enfim e de uma forma sintética poderemos definir o trespasse como a transmissão inter-vivos definitiva, unitária e onerosa do estabelecimento comercial, entendido este como a realidade jurídica complexa, heterogénea e dinâmica, constituída pelos bens corpóreos e incorpóreos que o integram.
No entanto, e por um lado, para se falar em trespasse não é necessário que a transferência abarque todos os elementos que, na altura, integram o estabelecimento.
É, assim, admissível o trespasse parcial, desde que os elementos transmitidos tenham autonomia funcional, ou seja, desde que a transmissão abranja aquele mínimo de elementos essencial à existência e ao funcionamento do estabelecimento - cfr. Rui Alarcão, Sobre a Transferência da Posição de Arrendatário no Caso de Trespasse, págs. 19-20 e Ac. do STJ, de 28/3/2002, BMJ 495º-- 301.
Por outro lado, também não se torna necessário à noção de trespasse que, aquando do respectivo contrato, o estabelecimento se encontre a funcionar.
O que releva é que estejam reunidas as condições para esse funcionamento - ac. do STJ, de 1/3/2001, proferido no agravo nº 463/00-2ª Secção.
Feita esta breve resenha sobre os princípios fundamentais que regem a figura jurídica do trespasse, vejamos agora se o contrato dos autos celebrado entre as partes é um contrato válido, como defende a recorrida e decidiram as instâncias, ou se está inquinado de nulidade, por falta da licença de sanidade, como insiste em defender a recorrente.
Conforme já se deixou antever, cremos que a resposta tem de ser no sentido da validade.
Efectivamente, pela escritura pública de 3 de Janeiro de 1993, a recorrida, legítima proprietária do estabelecimento de C, identificado nos autos, transmitiu à recorrente o dito estabelecimento na totalidade.
Incluindo os alvarás que, na altura, detinha.
E só esses se obrigou a transmitir, como claramente ficou provado (supra nº 9 da matéria de facto).
O que não detinha - e por isso não o transmitiu (nemo dat quod non habet) -- era o alvará ou licença de sanidade, situação que se verificava já desde o contrato-promessa, celebrado entre as partes antes da outorgarem a escritura de trespasse.
A trespassária, ora recorrente, foi avisada - em data não posterior à da celebração do referido contrato-promessa - pela trespassante, ora recorrida, da falta da licença de sanidade e de que corria um processo administrativo para a sua obtenção.
Não obstante este conhecimento, a trespassária-recorrente quis celebrar os dois contratos -- o contrato-promessa e o contrato definitivo de trespasse (supra nº 10).
Acresce que a trespassária-recorrente começou a explorar o estabelecimento, por conta e proveito próprio, desde a data da celebração do contrato-promessa até que o estabelecimento foi mandado encerrar por decisão de 24 de Julho de 1994 do Governo Civil do Porto, como fundamento na falta da dita licença.
De tudo isto se extrai, por um lado, que o negócio formalizado pela escritura de 3 de Janeiro de 1994 é um válido contrato de trespasse de estabelecimento comercial (C), uma vez que, através dele, a recorrida transmitiu para a recorrente, definitiva e onerosamente (pelo preço de 5.500.000$00, que recebeu), todo o complexo organizativo, a tal universitas iuris de que falam os tratadistas, apto a funcionar e que funcionou mesmo, sob o impulso e em proveito da recorrente, logo após o contrato-promessa que celebrou com a recorrida e até ter sido proferida a decisão administrativa de encerramento por falta de licença de sanidade.
Por outro lado, a falta de licença de sanidade não constituiu obstáculo nem ao funcionamento do estabelecimento - provavelmente porque pendia o procedimento administrativo destinado à sua obtenção -- nem à vontade da recorrente-trespassária em celebrar quer o contrato-promessa, quer o contrato definitivo do trespasse.
Significa isto que a recorrente quis -- sem qualquer acto ou omissão por parte da recorrida que viciasse a sua vontade -- assumir o risco do eventual indeferimento do processo administrativo para obtenção da licença de sanidade do estabelecimento.
Este processo e o aludido concomitante risco faziam, assim, parte do tal complexo acervo consubstanciador do estabelecimento e foi transmitido, com todos os mais elementos componentes dessa universitas iuris, através do contrato de trespasse, para o universo jurídico da recorrente.
Transmissão esta perfeitamente válida, atento o disposto no nº 1 do artigo 405 do Código Civil, porque livremente acordada e não ofensiva de qualquer imperativo ditame legal.
DECISÃO
Por todo o exposto nega-se a revista, com custas pela recorrente.
Lisboa, 24 de Abril de 2003.
Ferreira Girão
Luís Fonseca
Eduardo Batista