LEGITIMIDADE
ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
ACÇÃO CÍVEL CONEXA COM A ACÇÃO PENAL
PARTE CIVIL
PEDIDO CÍVEL
SENTENÇA PENAL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
Sumário

I - O demandante civil, não constituído assistente, carece de legitimidade para recorrer da decisão penal que, por "arrastamento", traz a improcedência do pedido civil.
II - Não resulta da lei essa faculdade de recurso nem do sistema, na medida em que o papel do demandante civil, que não é assistente, se subordina, como regra, às posições tomadas pelos outros sujeitos processuais, salvo na parte da decisão contra si directamente proferida.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I


1. No P.º comum n.º 1/02.4TBACB, do 1.º Juízo do TJ da comarca de Alcobaça, foram submetidos a julgamento pelo Tribunal Colectivo, mediante acusação do Ministério Público:
A, B, C, todos ids. nos autos imputando-se-lhes a prática, em co-autoria e em concurso efectivo, de:

1 (um) crime de falsificação de documento, pp. pelos artigos 228º, n.º 1, als. a) e b) e n.º 2 e 229º, n.º 1, ambos do Código Penal, na redacção do D.L. n.º 400/82, de 29 de Setembro;
1 (um) crime de burla qualificada, pp. pelos artigos 313º, n.º 1 e 314º, n.º 1, al. b), ambos do CPenal, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. n.º 400/82, de 29 de Setembro;
ou, se em concreto se mostrasse mais favorável aos arguidos, atento o disposto no artigo 2º, n.º 4, do CPenal ex vi do disposto no artigo 29º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, os correspondentes crimes previstos pelas alterações subsequentes do CPenal.
D e E, deduziram pedido de indemnização civil contra os arguidos, solicitando a condenação destes no pagamento de esc. 1.990.519$00, por danos morais e patrimoniais sofridos (fls. 225 a 231).
No início da audiência de julgamento, por despacho constante da respectiva acta, foi julgado extinto, por prescrição, o procedimento criminal deduzido contra os arguidos quanto à prática do crime de falsificação de documentos, determinando-se o prosseguimento dos autos apenas para apreciação da responsabilidade criminal pela prática do crime de burla e, bem assim, para conhecimento do pedido de indemnização cível deduzido .
Por acórdão de 24 de Junho de 2002, o Colectivo julgou improcedente, por não provada, a acusação, e em consequência absolveu os arguidos A , B e C do crime de burla de que vinham acusados.
Julgou improcedente o pedido de indemnização civil deduzido contra os arguidos e do mesmo os absolveu.
2. Inconformados recorrem o D e mulher, concluindo da motivação o seguinte (transcrição):
"1ª)- Estando os arguidos pronunciados pela prática, em co-autoria e em concurso efectivo, de um crime de falsificação de documentos e um crime de burla qualificada, à luz do Assento do STJ n° 8/2000 de 23/5 verifica-se uma situação de concurso real ou efectivo de crimes que impede a decisão tomada pelo Tribunal que determinou a extinção, por prescrição, do procedimento criminal pela prática do crime de falsificação, pelo que tal despacho é nulo por contrário à Lei e deverá ser revogado.
2ª)- Concorrentemente, tendo o pedido cível deduzido pelos demandantes sido fundamentado tanto na matéria factual e provas relativas a ambos os procedimentos criminais, a extinção de um deles e o prosseguimento da audiência de julgamento apenas para apreciação do crime de burla limitou e tomou impossível o conhecimento global do pedido de indemnização civil.
3ª)- Pelas duas razões apontadas deverá ser anulado o julgamento e proceder-se a nova audiência para apreciação de toda a matéria constante da douta acusação do MP e do pedido de indemnização civil.
4ª)- Caso assim não seja entendido, tendo em conta a Jurisprudência uniformizada contida no Assento do STJ n° 7/99 de 17/6, deverá ser aceite que a relação extracontratual ou aquiliana estabelecida entre os arguidos e os demandantes/recorrentes por virtude do negócio da viatura QE que interessou exclusivamente aos primeiros, mesmo no caso duma absolvição-crime, conduz os arguidos ao dever de indemnizar os demandantes pelos prejuízos patrimoniais causados.
5ª)- O douto Acórdão recorrido violou, assim, a Jurisprudência Uniforme imposta pelos citados Assentos 8/2000 e 7/99 do STJ".
Termina pedindo o provimento do recurso.
Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público na comarca de Alcobaça, dizendo em síntese (transcrição):
"1 - A norma incriminatória em causa - falsificação de documento
- protege um interesse exclusivamente público: a segurança e credibilidade no tráfego jurídico.
2- Por outro lado, os demandantes cíveis enquanto tais, carecem de legitimidade para recorrer dos aspectos penais da decisão judicial.
3- Assim, verificada a falta de legitimidade deverá o recurso ser liminarmente rejeitado.
Caso assim não se entenda:
4- O concurso real ou efectivo de crimes tem como finalidade a condenação do agente numa única pena, não obstante as diversas infracções cometidas, desde que não tenha transitado em julgado a condenação por qualquer deles.
5- Nada impedindo - o contrário é que seria descabido - quer na lei ou na jurisprudência que, numa situação de concurso de infracções, estas possam ser analisadas individualmente, nomeadamente no tocante à extinção do procedimento criminal".
Assim, o acórdão recorrido deve ser mantido.
3. Já neste STJ, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu a sua opinião, dizendo:
"Uma das questões a decidir no recurso interposto, a questão principal visa exactamente a extinção do procedimento criminal por prescrição do crime de falsificação pelo qual os arguidos também estavam acusados (fls. 378).
Mas esta decisão proferida apenas pelo Mmo Juiz Presidente do Círculo Judicial de Alcobaça em 17 de Julho (1) podia ser visada no recurso do acórdão final, pois o recurso da decisão interlocutória poderia ser interposto exactamente até ao dia 2 de Julho (15 dias depois) - art. 432°, als. d) e e) do CPP -.
No entanto o que se pode questionar é da legitimidade da parte civil para recorrer desta decisão.
Se se tivessem constituído assistentes, bastava sustentar que tinham interesse em agir e a decisão tinha sido contra si proferida.
No entanto como partes civis não poderão vir questionar a extinção do procedimento criminal por prescrição, - questão de direito penal - mas apenas a matéria de facto que estava contida no seu pedido de indemnização civil apresentado após ter sido deduzida acusação pelo M.º P.º (fls. 225 e segts.).
As questões penais estão pois vedadas aos demandantes civis.
O douto despacho de fls. 434 que até admitiu e atribuiu efeito ao recurso não vincula o tribunal superior (art. 414º, n.º 3 do CPP).
Assim, parece-nos que o recurso interposto pelos demandantes civis D e mulher deverá ser rejeitado por falta de legitimidade dos mesmos para recorrer (arts. 401º, n° 2, 419°, n° 4, al. a) e 420º, n° 1 do CPP).
Foram os recorrentes notificados desta posição, com cópia do "parecer" do Ministério Público, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 417º, n.º 2, do CPPenal, nada tendo dito.
Em virtude de o Relator entender que o recurso deve ser rejeitado, vêm os autos à conferência.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1. A questão prévia suscitada é a da ilegitimidade dos demandantes civis para recorrerem.
De acordo com o princípio da adesão, "o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei" - artigo 71º do CPPenal.
Foi o que os ora recorrentes (tios da arguida C) fizeram, com base no prejuízo que dizem ter sofrido pela prática dos crimes de falsificação e burla atribuídos aos arguidos.
Estipula-se nos n.ºs 1 e 2 do artigo 74.º do mesmo diploma ("Legitimidade e poderes processuais"):
"1 - O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo­se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir­se assistente.
2 - A intervenção processual do lesado restringe­se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo­lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes. (...)"
No que toca ao caso julgado, "a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis" - artigo 84.º.
Dispõe-se no artigo 377.º ("Decisão sobre o pedido de indemnização civil"):
1 - A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no artigo 82.º, n.º 3.
2 - Se o responsável civil tiver intervindo no processo penal, a condenação em indemnização civil é proferida contra ele ou contra ele e o arguido solidariamente, sempre que a sua responsabilidade vier a ser reconhecida.
Todavia, importa atentar em dois outros preceitos.
Refere-se o artigo 401.º à legitimidade e interesse em agir:
"1 - Têm legitimidade para recorrer:
a) ...;
b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;

c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas; (...)".

E no n.º 2 do artigo 400º:
"Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada".
2. Nos termos da alínea c), do n.º 1, do citado artigo 401º, os demandantes civis detêm legitimidade para recorrer da parte da decisão contra si proferida, ou seja, da absolvição do pedido cível (não se entra agora em linha de conta se o seu recurso podia abranger ainda o ponto da prescrição do crime de falsificação).
Porém, segundo o Ministério Público na 1.ª Instância, na sequência de jurisprudência que invoca (fls. 441/2), e no que é acompanhado neste Supremo Tribunal, o demandante civil carece de legitimidade para recorrer da decisão no âmbito da matéria penal.
Nesta linha, se o demandante civil carece de legitimidade para atacar a decisão quanto à motivação da absolvição pela prática dos crimes de que os arguidos eram acusados, restar-lhe-ia pôr em causa os factos em que a mesma assentou.
Entendemos que o demandante civil, não constituído assistente (2) carece de legitimidade para recorrer da decisão penal que, por "arrastamento", traz a improcedência do pedido civil.
Não resulta da lei essa faculdade de recurso nem do sistema, na medida em que o papel do demandante civil, que não é assistente, se subordina, como regra, às posições tomadas pelos outros sujeitos processuais, salvo na parte da decisão contra si directamente proferida.
A jurisprudência conhecida, para além da indicada pelo Ministério Público, caminha neste sentido (3).
"A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior" - n.º 3 do artigo 414º do CPPenal.
Nesta conformidade, por falta de legitimidade, o recurso não pode prosseguir.


IV
Pelo exposto, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso interposto por D e E - artigos 414º, n.º 2, 420º, n.º 1 (2.ª parte), do Código de Processo Penal, por ilegitimidade.

Pagará o recorrente três UCs - n.º 4 do artigo 420º do CPP -, com custas e procuradoria pelo mínimo.

Processado em computador pelo relator, que rubrica as restantes folhas.

Lisboa, 30 de Abril de 2003
Lourenço Martins
Leal Henriques
Borges de Pinho
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(1) Queria dizer-se 17 de Junho.
(2) Com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2003, de 16-01-2003, foi entendido que "No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente " - D.R. I-A, n.º 49, de 27-02-2003.
(3) V. Ac. do STJ. de 12.11.97 - P.º n.º 1014/97, e ac. da RPorto, de 10.11.90, CJ 1990, 1, p. 247 sumariados apud Simas Santos/Leal-Henriques, Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, 2000, Rei dos Livros, pp. 679 e ss.