SOCIEDADE ANÓNIMA
ASSEMBLEIA GERAL
DELIBERAÇÃO SOCIAL
SÓCIO
CONSELHO FISCAL
ORGÃO SOCIAL
CONVOCATÓRIA
NULIDADE
LEGITIMIDADE
Sumário

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
Razão da revista
1. "A", intentou na comarca de Castelo de Paiva, a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra "B, S.A.", com sede em ..., Castelo de Paiva, pedindo:
- que sejam declaradas nulas as deliberações sociais tomadas na Assembleia da R., referentes à aprovação dos documentos de prestação de contas relativos ao exercício do ano civil de 2000, contidas na acta com data de 11 de Junho de 2001.
Alega em síntese que:
A Ré é uma sociedade anónima, cujo capital é detido por uma única accionista, a sociedade "C, Lda.";
o capital social desta última, no valor de 100.000.000$00 está distribuído por 22 sócios, um dos quais é o A., que detém duas quotas, no valor global de 19.44 7.500$00.
No dia 11 de Junho de 2001, teve lugar uma assembleia geral de sócios da R., que não foi precedida da necessária convocatória, onde estiveram presentes dois sócios-gerentes da "C, Lda.", em representação dessa sociedade, sem que lhes tivessem sido concedidos poderes para o efeito; acresce que os assuntos constantes da ordem de trabalhos referida nessa acta não podiam ter sido decididos numa assembleia universal;
o balanço e contas referentes ao exercício de 2000, aprovados na referida assembleia geral não merecem qualquer credibilidade, por não revelarem a verdadeira situação patrimonial da R. em 31.12.00, antes se inserem num objectivo ofensivo dos bons costumes, já que os administradores da R. que intervieram naquela assembleia pretendem propor a redução do seu capital social, com o pretexto de que todas as sociedades dominadas pela "C, Lda." se encontram numa situação de falência técnica, para depois apresentarem um balanço da sociedade dominante com uma situação líquida negativa; tudo com a finalidade de, posteriormente, proporem novo aumento do capital social da R, pois que dois dos administradores da R. celebraram, em Fevereiro de 2000, um contrato promessa de cessão de quotas da sociedade dominante a favor dum terceiro, em condições que visam dificultar ou mesmo impedir o exercício do direito de preferência dos demais sócios da "C, Lda." nessa aquisição, direito que lhes assiste nos termos do respectivo pacto social.

2. A R. contestou, excepcionando a ilegitimidade do A e a caducidade do direito de propor a presente acção, impugnando a factualidade por este aduzida na petição.
Alega ainda que é verdadeira a acta donde constam as deliberações ora em crise, quer quanto às assinaturas, quer quanto à vontade da accionista, quer quanto às deliberações tomadas, e que as contas aprovadas reflectem a realidade da empresa.
Mais alega que os vícios apontados pelo A. não podem conduzir ao efeito jurídico por si pretendido.
Alega também que a accionista da R., sendo a única, estava regularmente representada sem necessidade de poderes especiais, tanto mais que à data, o conselho de gerência da "C, Lda." e o conselho de administração da R. eram compostos pelas mesmas pessoas.

3. O A. apresentou réplica, na qual ampliou o pedido e a causa de pedir formulado nos presentes autos, pois que além da declaração de nulidade das deliberações sociais tomadas na assembleia da R., contidas na acta com a data de 11.06.01, de acordo com o pedido formulado na p.i., pretende também, agora, ver declarada a nulidade das deliberações locais tomadas pela R., constantes da n.º 16, datada de 12.07.2001, ou subsidiariamente que sejam anuladas tais deliberações.
Tal ampliação não foi admitida pelo Sr. Juiz a quo.
Inconformado, veio o Autor agravar de tal despacho, apresentando alegações e respectivas conclusões.
Nas contra-alegações a Ré pugna pela confirmação do decidido.
O Sr. Juiz sustentou o seu despacho.

4. Na fase do saneador decidiu-se:
- pela legitimidade do autor:
- pela improcedência da excepção de caducidade do direito de acção;
- pela procedência da acção, e em consequência:
- declararam-se nulas as deliberações tomadas na assembleia da R., contidas na acta, com data de 11 de Junho de 2001, referentes à aprovação dos documentos de prestação de contas relativos ao exercício do ano civil de 2000.

5. A Ré apelou e a Relação do Porto negou provimento ao agravo do autor e confirmou a sentença (fls. 330 e 335).
A sociedade/ré pede revista.
II
Objecto da revista
O objecto da revista é traçado pelas conclusões relevantes do recurso.
São as seguintes:
1) O recorrido (é o autor - claro) é parte ilegítima para instaurar este processo, mas, mesmo que tivesse legitimidade, à data da instauração da acção, já tinha ocorrido a caducidade para a instauração do processo;
2) O recorrido não é sócio da recorrente/ré, nem tem qualquer interferência directa ou indirecta com a realização de assembleias gerais da recorrente, nem com as deliberações sociais tomadas em assembleia geral da recorrente;
3) A consideração de que qualquer interessado poderia invocar a nulidade da deliberação por aplicação do artigo 286º do Código Civil regime específico do Código das Sociedades Comerciais, que contém a lei aplicável às sociedades comerciais, e viola o disposto no artigo 2º deste Código de que apenas nos casos que aquele não preveja e que não constituam casos análogos é que podem ser aplicáveis tão só as normas do Código Civil sobre o contrato de sociedade;
4) No caso há que aplicar o artigo 57º do Código das Sociedades Comerciais e porque a recorrente dispõe de órgão de fiscalização e o recorrido não é sócio da recorrente, o recorrido carece de legitimidade para a acção;
5) O artigo 56º do Código das Sociedades Comerciais indica os casos em que são nulas as deliberações dos sócios e nenhum dos casos apontados integra os elementos que o A-recorrido verte do seu articulado inicial.
6) A aprovação de contas está sujeita "por natureza" e legalmente a deliberação dos sócios, no pacto social da recorrente prevê-se expressamente que a Assembleia Geral reúne nos três primeiros meses de cada ano para deliberar sobre o relatório de gestão e contas de exercício, e as contas apresentadas nesta assembleia geral da Ré, foram aprovadas por unanimidade;
7) É notório que a única accionista da recorrente, a "C, Lda.", sabia que a Assembleia Geral de 11/06/2001, ia reunir, sem observância de formalidades prévias e que era por virtude da única e exclusiva vontade que a "C, Lda." ia manifestar, necessariamente através dos seus representantes para o efeito mandatados, que a Assembleia ia deliberar , pelo que é patente que os representantes da "C, Lda." estavam expressamente autorizados a votar as deliberações tomadas naquela assembleia, nos termos do nº 3 do artigo 54º do C.S.C., não havendo fundamento para considerar nula a deliberação, por alegada falta de representação da única accionista;
8) De qualquer forma essa questão está prejudicada, pois como resulta do documento que se junta a "C, Lda." deu, por escrito, o seu assentimento às deliberações tomadas na Assembleia Geral da recorrente de 11/06/2001, pelo que, ainda que se considerassem nulas as deliberações, tal não seria invocável nos termos do artigo 56º, nº 3, do C.S.C.;
9) O conteúdo das deliberações tomadas, não é ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais;
10) As deliberações tomadas na assembleia geral da Ré de 11-06-2001 não são nulas, nem são anuláveis, pois não violam disposições da lei, nem do contrato de sociedade, não são apropriadas para satisfazer o propósito ou vantagens de um dos sócios para si ou para terceiros em prejuízo dos outros sócios, pois a sociedade tem um único sócio e foram precedidas do fornecimento ao sócio dos elementos mínimos de informação, pois o único sócio da sociedade ao aprovar por unanimidade as deliberações, teve que o fazer por estar e sentir-se informado.
11) O Acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 54º, 57º, 373º, 376º, do C.S.C e 26º do Código do Processo Civil.
Concluindo: Deve ser revogada a decisão recorrida.
III
Matéria de facto
Os factos apurados que têm utilidade para conhecer do objecto da revista, tal como acaba de ser exposto, são os seguintes:
1 - A R. "B, S.A." é uma sociedade anónima, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Castelo de Paiva, sob o n.º 6/740902, com o capital social de 50.000.000$00, cujo objecto é o exercício da indústria de transportes;
2 - Esse capital é integralmente detido por uma única accionista, a sociedade comercial por quotas "C, Lda.", cujo objecto social é a aquisição e gestão de empresas e projectos a elas pertencentes, prestação de serviços e exploração da indústria de transportes de passageiros e cargas, turismo e agências de turismo.
3 - Esta sociedade está matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Baião sob o n.º 137/940404, e tem um capital social de 100.000.000$00, distribuído por 22 sócios;
4 - O A/recorrido possui duas quotas no capital social da "C, Lda.", sendo uma no valor de 14.062.500$00 e outra no valor de 5.385.000$00, correspondentes a 19,447% do capital;
5 - Em 11.06.01, a R. dispunha de um Conselho de Administração, composto por 5 membros, um dos quais era o A., e de um Conselho Fiscal, composto por 3 membros;
6 - Na mesma data, a gerência da "C, Lda." era exercida por sete elementos, um dos quais era o A., que era titular de um direito especial à gerência;
7 - No dia 11.06.01, entre as 09 h e 30 m e as 12 h e 25 m, o A., na qualidade de administrador da R. e de gerente da "C, Lda.", participou numa reunião do conselho de gerência desta última, durante a qual foi analisado o relatório de gestão e demais documentos de prestação de contas, não só da R., como de outras sociedades Participadas pela "C, Lda.";
8 - Dessa reunião, foi lavrada uma acta, donde consta o seguinte:
"O Sr. A vota contra a nomeação de qualquer gerente para representar esta empresa na Assembleia Geral de Aprovação de Contas das empresas (...) "B, S.A.", pelas razões invocadas no texto que se anexa.
O Sr. D disse que vota no Sr. E para o efeito e que se propõe a ele próprio.
O Sr. F e o Sr. G subscrevem igual votação;
Ficam assim nomeados, por maioria, o Sr. E e o Sr. D para representar esta empresa para o efeito mencionado no ponto 1."
9 - Do livro de actas da R., consta uma delas - a acta n.º15 - com o seguinte teor:
Aos onze dias do mês de Junho do ano de dois mil e um, pelas quinze horas. (...) reuniu a Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Anónima "B, S.A.", (...), encontrando-se presente a única accionista "C, Lda.", aqui representada pelos seus gerentes Sr. E e pelo Sr. D, nomeados para o efeito conforme a acta do Conselho de Gerência de 11.06.2001, a mesma manifestou expressamente a vontade de, sem observância das formalidades legais prévias, ao abrigo do preceituado nos artigos cinquenta e quatro, número um, in fine, e dois, e trezentos e setenta e três, número um, ambos do Código das Sociedades Comerciais, constituir a Assembleia Geral Anual e deliberar sobre a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto Primeiro: Deliberar sobre o Relatório de Gestão e as Contas do Exercício de 2000;
Ponto Segundo: Deliberar sobre a proposta de aplicação do Resultado Líquido do Exercício de 2000;
Ponto Terceiro: Proceder à apreciação geral da Administração e Fiscalização da Sociedade.(...).
A Presidente, verificando os factos anteriormente descritos - presença da única accionista da Sociedade e vontade, efectivamente manifestada de constituir a Assembleia Geral Anual e deliberar sobre os mencionados pontos - declarou-a constituída e, na imediata sequência, aberta a sessão.
Presentes ainda os membros do órgão de Fiscalização da Sociedade.
De seguida, a Presidente submeteu imediatamente à apreciação e discussão, no quadro do primeiro ponto da ordem de trabalhos (...).
A Presidente,(...), pôs à votação o Relatório de Gestão e as Contas do Exercício de 2000, o qual votado, foi aprovado por unanimidade.
Passando-se ao segundo ponto da ordem de trabalhos, ou seja, deliberar sobre à proposta de aplicação do Resultado Liquido do Exercício de 2000.
Também por unanimidade foi aprovada a proposta feita pelo Conselho de Administração no Relatório de Gestão, como segue: Resultados Transitados: 18.518.342$00.
Relativamente ao terceiro ponto da ordem de trabalhos, ou seja, proceder à apreciação geral da Administração e Fiscalização da Sociedade, por unanimidade foi aprovado um voto de louvor a estes dois órgãos sociais.
Nada mais havendo a tratar a Presidente (...), declarando pelas quinze horas e vinte e cinco minutos encerrada a reunião.
Para constar se lavrou a presente acta que, depois de lida pelos membros da mesa, (...) vai ser por eles assinada, bem como pelos representantes da accionista única.(...)";
10 - A assembleia realizada no dia 11.06.2001, não foi precedida de qualquer convocatória;
11 - O conselho de administração da R. não solicitou a convocação da referida assembleia.
IV
Direito aplicável
1. A revista coloca duas questões jurídicas essenciais:
- a legitimidade do autor para requer a acção que propôs e de onde emergiu a decisão recorrida;
- A nulidade das deliberações da Assembleia Geral da sociedade ré, realizada em 11 de Junho de 2001.

2. Por razões metodológicas e de compreensão normativa de ambas as questões enunciadas, começaremos por salientar o quadro legal de referência comum ao tratamento das duas.
Não seguiremos uma ordem numérica sequencial dos artigos pertinentes, do Código das Sociedades Comerciais, mas uma ordem sequencial da sua compreensão lógica e pedagógica (ora resumindo o texto legal, ora transcrevendo-o), facilitando, por este caminho, a percepção e o entendimento da análise e o resultado a que ela conduz.
Assim:
Artigo 376º, n.º 1: A assembleia geral (da sociedade anónima) anual deve reunir nos primeiros três meses, de cada ano, para: a) Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas do exercício, quando a assembleia seja o órgão competente para isso;
b) Deliberar sobre a proposta de aplicação dos resultados;
c) proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade....
d) Proceder às eleições que sejam da sus competência.
n.º 2: «O conselho de administração ou a direcção deve pedir a convocação da assembleia geral referida no n.º anterior e apresentar as propostas e a documentação necessárias para que as deliberações sejam tomadas».
Artigo 451º, n.º 1: «A assembleia geral referida no artigo 376º deve proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade».
N.º 2: «Essa apreciação deve concluir ou por uma deliberação de confiança em todos ou alguns órgãos de administração e de fiscalização e respectivos membros, ou destituição de algum ou alguns destes...»
Artigo 379º (participação na assembleia), n.º 4: «Devem estar presentes nas assembleias gerais de accionistas, os administradores, ou directores, os membros do conselho fiscal ou conselho geral e, na assembleia anual, os revisores oficiais de contas que as tenham examinado».
Artigo 422º (Deveres dos membros do conselho fiscal), n.º 1: Os membros do conselho fiscal têm o dever de participar nas reuniões do conselho e assistir às assembleias gerais em que se apreciem as contas do exercício».
A assembleia geral é convocada pelo Presidente da mesa da assembleia geral, e nos casos previstos na lei, pelo conselho geral, pelo conselho fiscal ou pelo tribunal, segundo o artigo 377º-1, não deixando a lei espaço para os estatutos fixarem outra forma de convocação.
A convocação pela assembleia geral ou pelo conselho fiscal só pode fazer-se, depois de haver sido solicitado, sem êxito, a convocação ao Presidente da Mesa da assembleia geral o qual tem competência originária e exclusiva para a convocação.
A convocação pelo tribunal só tem lugar no caso limite de falharem as convocações anteriormente referidas (artigo 378º).
A convocatória está sujeita a requisitos de forma, conteúdo e publicidade, segundo os artigos, 56º-2; 375º-4; 377º-2, 3, 4, 5 e 8; e 378º-2 e 3. (1)
A forma pode ser uma carta ou aviso convocatório, segundo os artigos 377º-8 e 56º-2.
O conteúdo mínimo vem indicado no artigo 377º-5 e 8.
Além das menções referidas pelo artigo 171º, devem constar da ordem do dia, o elenco das matérias a tratar e constar claramente os assuntos a deliberar; tratando-se de alteração ao contrato deve constar a menção das clausulas propostas para modificação (artigo 377º-8).
A convocação enganosa - aquela onde constam informações contrárias à verdade - é punível com prisão e multa (artigo 520º).
Quanto à publicidade: a convocatória deve ser publicada no D.R., no Jornal Oficial das Regiões Autónomas; e no jornal da localidade da sede, ou em um dos jornais aí mais lidos etc, segundo as várias modalidades por que prescrevem os artigos 377º-2 e 166º e 167º, que não importa agora especificar.
A publicidade da convocatória deve ser promovida pelo Presidente da mesa da assembleia geral, no prazo de 15 dias a contar da recepção do pedido (artigo 375º-4).
A assembleia deve ser designada de modo a poder reunir no prazo máximo de 45 dias a contar da publicação da convocatória, com mediação pelo menos de uma mês entre a última publicação e a data de reunião, que pode ser reduzido para 21 dias, na modalidade prevista pelo artigo 377º-4.
Estes prazos visam naturalmente assegurar a adequada preparação da assembleia e a participação hábil, a benefício social, dos intervenientes.
Por forma que, a ofensa das regras que acabam de ser sintetizadas, pode dar lugar a vícios da convocatória ou das próprias deliberações que lhe são consequentes, conforme determina o artigo 56º-1 e 2, que adiante se transcreve.
Há situações de emergência e de oportunidade em que pode haver assembleia sem prévia convocação.
É o que dispõem os artigos: 54º (Deliberações unânimes e assembleias universais): «Podem os sócios, em qualquer tipo de sociedade, tomar deliberações unânimes por escrito, e bem assim reunir-se em assembleia geral, sem observância de formalidades prévias, desde que todos estejam presentes e todos manifestem a vontade de que a assembleia se constitua e delibere sobre determinado assunto». (n.º1).
E o artigo 56º (Deliberações nulas) n.º 1: «São nulas as deliberações dos sócios:
a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados;....
d) Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos, que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios».
Finalmente, quanto às sanções e acções correspondentes:
Artigo 58º (Deliberações anuláveis); n.º1, a): «São anuláveis as deliberações que violem disposições, quer da lei, quando não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56º, quer do contrato de sociedade».
Tanto a acção de declaração de nulidade, como de anulação, são propostas contra a sociedade (artigo 60º-1);
A sentença que declarar nula ou anular uma deliberação é eficaz contra e a favor de todos os sócios e órgãos da sociedade, mesmo que não tenham sido parte ou não tenham intervindo na acção (artigo 61º-1).

3. Salientadas as disposições legais que acodem mais directamente ao caso, vejamos agora como se aplicam, quanto aos aspectos enunciados relativos à legitimidade do autor e à nulidade da deliberação.
Colhe proficiência começar pela nulidade, pois o resultado que provem da análise deste tema, serve de modo proficiente, à questão da legitimidade do autor.

Comecemos, então, pela deliberação.
Cremos que a deliberação é nula.
E é nula porque não houve convocação prévia para a assembleia geral donde emergiu a deliberação.
Vamos tentar explicar criticamente a questão.
Tratou-se de uma assembleia geral anual da sociedade anónima para cumprimento da obrigação prevista pelo artigo 376º-1, a que também reporta o artigo 19º do estatuto da sociedade ré.
Como assim, sujeita ao prazo de realização, á necessidade de convocação formal dentro de certo prazo, feita com certa antecedência, assinalando os objectivos da reunião da assembleia, conforme às indicadas disposições, relativas à forma da convocatória, conteúdo e publicidade.
Este procedimento visa a transparência, o chamamento público dos sócios, conforme à ordem associativa, convocada por quem tem o poder legal e originário de chamar (convocar) - o presidente da mesa da assembleia geral, e só ele, em primeiro grau.
É absolutamente necessário que a convocação seja feita pelo próprio presidente, e não em nome dele ou por ordem dele.
A "assembleia geral" é constituída pela massa dos sócios da colectividade; mas só se concretiza, e existe, depois de estes terem sido "convocados" para a formarem "reunindo-se". (2)
O que não pode é a reunião fazer-se de forma oculta, ou relativamente secreta, e de surpresa, porque neutraliza o interesse público de ordem associativa reclamado pelos objectivos da própria reunião, pelo interesse dos sócios (e ainda sócios dos sócios - como era o caso), credores, trabalhadores, fornecedores, entidades financiadoras, órgãos de administração e de fiscalização social da pessoa jurídica sociedade (de que a assembleia é outro dos órgãos); e atinge o próprio interesse público do Estado no bom funcionamento das sociedades comerciais que constam dos seus Registos (artigos 3º e 15º do Código de registo Comercial).

4. Contra a postura exposta do dever ser, o que fez a sociedade ré?
Simplesmente, reuniu, em 11 de Junho de 2001, na parte da manhã, o seu conselho de gerência.
Durante a reunião foi analisado o relatório de gestão e demais documentos de prestação de contas, não só da R., como de outras sociedades participadas pela "C, Lda.";
Dessa reunião, foi lavrada uma acta, donde consta o seguinte:
"O Sr. A vota contra a nomeação de qualquer gerente para representar esta empresa na Assembleia Geral de Aprovação de Contas das empresas (...) "B, S.A.", pelas razões invocadas no texto que se anexa.
O Sr. D disse que vota no Sr. E para o efeito e que se propõe a ele próprio.
O Sr. F e o Sr. G subscrevem igual votação;
Ficam assim nomeados, por maioria, o Sr. E e o Sr. D para representar esta empresa para o efeito mencionado no ponto 1."
Na parte da tarde , desse mesmo dia, como consta do Livro de Actas reuniu a Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Anónima "B, S.A.", (...), encontrando-se presente a única accionista "C, Lda.", aqui representada pelos seus gerentes Sr. E e pelo Sr. D, nomeados para o efeito conforme a acta do Conselho de Gerência de 11.06.2001 (é a reunião assinalada atrás).
A sócia (através dos seus dois representantes) manifestou expressamente a vontade de, sem observância das formalidades legais prévias, ao abrigo do preceituado nos artigos cinquenta e quatro, número um, in fine, e dois, e trezentos e setenta e três, número um, ambos do Código das Sociedades Comerciais, constituir a Assembleia Geral Anual e deliberar sobre a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto Primeiro: Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas do Exercício de 2000;
Ponto Segundo: Deliberar sobre a proposta de aplicação do resultado Líquido do Exercício de 2000;
Ponto Terceiro: Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade.(...).
A seguir:
A Presidente, (?) verificando os factos anteriormente descritos - presença da única accionista da sociedade e vontade, efectivamente manifestada de constituir a Assembleia Geral Anual e deliberar sobre os mencionados pontos - declarou-a constituída e, na imediata sequência, aberta a sessão.
Presentes ainda os membros do órgão de fiscalização da Sociedade.
Finalmente:
A Presidente (?) submeteu imediatamente à apreciação e discussão, no quadro do primeiro ponto da ordem de trabalhos; pôs à votação o relatório de gestão e as contas do exercício de 2000, o qual votado, foi aprovado por unanimidade.
Passando-se ao segundo ponto da ordem de trabalhos, ou seja, deliberar sobre à proposta de aplicação do resultado liquido do exercício do ano 2000.
Também por unanimidade foi aprovada a proposta feita pelo conselho de administração no relatório de gestão, como segue: Resultados Transitados: 18.518.342$00.
Relativamente ao terceiro ponto da ordem de trabalhos, ou seja, proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da Sociedade, por unanimidade foi aprovado um voto de louvor a estes dois órgãos sociais.
Nada mais havendo a tratar a Presidente (...), declarando pelas quinze horas e vinte e cinco minutos encerrada a reunião.
Para constar se lavrou a presente acta que, depois de lida pelos membros da mesa, (...) vai ser por eles assinada, bem como pelos representantes da accionista única.(...)";

5. Foi quanto se passou. Aparentemente tudo em ordem!
Mas não pode, nem deve ser assim!
A assembleia geral de uma sociedade (anónima ou não) não é a sociedade.
Nem os órgãos sociais se reduzem à assembleia, não obstante ser esta a expressão maior da vontade colectiva social.
Há ainda o órgão de administração e o órgão de fiscalização (artigo 374º), cada qual actuando na esfera de poderes e responsabilidades próprias a observar, sob pena de sanções.
A convocação, na forma, conteúdo e publicidade que ficaram indicadas explica-se por razões de ordem pública e de protecção dos interesses dos credores que a própria vontade unânime dos sócios não pode superar, (alínea d), do artigo 56º) sobretudo quando os objectivos da reunião obrigatória da assembleia são indicados no artigo 376º, que coincidem substancialmente, com os indicados na acta da reunião, alegadamente da assembleia geral da sociedade ré.
Objectivos que, reportados ao essencial de uma síntese, fazem avultar nesta, o chamado acertamento anual da situação económico-financeira da sociedade, para o qual depõe a imperatividade dos interesses dos sócios, dos credores, de terceiros interessados (como, por exemplo, o sistema bancário), enfim, do Estado, em geral, como promotor de condições legais e institucionais de empresas economicamente sadias, geradoras de trabalho e riqueza, e, em especial, como beneficiário tutelar do Fisco. (3)
Quando uma assembleia geral de uma sociedade anónima se faz do "modo oculto" correspondente ao procedimento enunciado em 3, frustrando os fins sociais e de interesse público que acabam de salientar-se, então outra sanção civil não lhe pode caber que não seja a nulidade da deliberação tomada "às escondidas".
Daí a nulidade da deliberação correspondente, impeditiva da transparência, da clareza e da verdade no acertamento da situação das sociedades comerciais e de que o próprio Código Civil não desdenha a propósito das sociedades civis a que obriga a prestar contas no fim de cada ano civil (artigo 988º).
Estamos perante uma deliberação cujo conteúdo é ofensivo dos bons costumes ou práticas da gestão interna da vida das sociedades, em relação de domínio (ainda que por inteiro, como é o caso), ou, se assim também se considerar, lesiva de preceitos legais que não podem ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.
Tanto leva a afirmar a verificação de uma nulidade da deliberação social - nulidade que é reconhecida, segundo a melhor doutrina, de uma forma taxativa pelo artigo 56º-1 (4).
E taxativa, em razão de causa pública, para não se expandir a novas situações, fora das contempladas no quadro deste preceito, em consideração do princípio de aproveitamento dos actos sociais.

6. É verdade que o artigo 54º do Código das Sociedades Comerciais, já transcrito, invocado na acta da reunião (e nas conclusões 7ª e 8ª) permite que os sócios, em qualquer tipo de sociedade, possam tomar deliberações unânimes por escrito, e bem assim reunir-se em assembleia geral, sem observância de formalidades prévias, desde que todos estejam presentes e todos manifestem a vontade de que a assembleia se constitua e delibere sobre determinado assunto (n.º 1).
Como verdade ainda é que, o artigo 56º, relativo às deliberações nulas permite que sejam tomadas em assembleia geral não convocada, quando todos os sócios tiverem estado presentes ou representados....
A observação deste aspecto, dá ocasião para desenvolvermos a seguinte análise:
Primeiro: Não obstante essa possibilidade, aberta em casos/limite, especialmente marcados pela urgência ou pressa na tomada da deliberação, certo é que tal abertura não pode ir de encontro a normas imperativas do estatuto ou da lei, em especial as que ocorrem à situação em apreço respeitante à aprovação do relatório e das contas do exercício da administração da sociedade e à apreciação do parecer do conselho fiscal sobre ambos os documentos.
Está em questão a avaliação de aspectos de importância extrema para o rastreio, diagnóstico e perspectivas de vida (ou de morte) da sociedade. Questão que não deve corresponder a práticas sociais correntes de dispensa de convocação da assembleia, em tempo, em forma, em conteúdo e com publicidade normais, exigidas por lei. (Artigo 376º transcrito).
Daí, ainda, que não se afigure curial também, que os preceito legais e estatutários correspondentes, possam ser derrogados por vontade unânime dos sócios, reunidos à pressa.
Segundo: Mesmo que as considerações substantivas anteriores não prevalecessem, e se tivesse como válida a deliberação tomada, a sua consistência formal, sai irremediavelmente sacudida, por isto:
A assembleia não se podia auto-legitimar, como assembleia geral, como mesa, como presidente da mesa, (com poderes convocatórios de ocasião) enquanto originariamente reunido como conselho de gerência da única sócia, da sociedade ré.
Assembleia geral é por natureza uma reunião plenária de sócios.
Em bom rigor formal (que para nós nunca seria decisivo) não pode aceitar-se razoavelmente, sob pena de trair o que é real, uma assembleia como apenas uma pessoa (uma pessoa jurídica- claro).
Verdadeiramente, salvo uma irrealista ficção, não há assembleia, nem há deliberação emergente. Só um colégio delibera! Um singelo decide! (5)
O que significa que, quando os artigo 54º-1 e 56º- 1, alínea a), invocados, falam em assembleia universal de todos os sócios, presentes, ou representados - ainda que sem ter havido convocação - que manifestem a vontade colectiva da sociedade, estamos perante uma realidade que não é aplicável seguramente à singela unidade de presença, e de manifestação, como se configura a situação em apreço. E, entendamo-nos, configura ou pode configurar, uma situação de transitoriedade, imputável à sociedade dominante, (a sócia única da ré) não se mostrando entretanto, no processo, que haja sido observado o condicionalismo de adaptação previsto pelos artigos 488º e 489º, respeitantes a grupos de sociedades, constituídos em relação de domínio total, como é o caso.
De resto, a aceitar-se como boa a tese recorrente, poderíamos ser conduzidos a uma situação promovendo o exercício abusivo e monocrático do direito de "deliberar" sozinha, sem anuncio prévio a ninguém, e como entendesse!
As normas indicadas, dos artigos 54º-1 e 56º-1, a), estão pensadas, na letra e no espírito, para situações de emergência de reunião do universo de vários sócios, cuja convocação regular não foi possível em tempo útil, com vista ao objectivo emergente que os reúne.
E ainda que assim seja, nunca, por certo, para a aprovação dos resultados anuais da gestão societária, como foi o caso, para cumprimento dos imperativos que explicam o artigo 376º a 388º, relativos ao dever de reunião da assembleia geral, à forma de convocação, ao tempo de antecedência, ao conteúdo da agenda e da ordem do dia, à formação da mesa, à participação dos intervenientes, à representação, á lista de presenças, ao quórum, ao voto, à formação da maioria, enfim, à formulação da vontade colectiva da assembleia, na acta da reunião de que se trata.
Claro está - e agora finalmente - que não releva, como já observou o recorrido (fls. 372) a junção da declaração de 27 de Dezembro de 2002, que não pode ter qualquer influência saneadora do passado.

7. O exposto facilita a compreensão do problema da legitimidade do autor.
Por isso invertendo a ordem de tratamento dos dois temas, enunciada ao começo, de propósito, deixámos esta questão para o fim.
O autor é sócio da sócia da ré. Nela tem uma quota de cerca de 20%. Mais: é sócio e um administrador da sociedade/ré, de que também é quotista, na proporção acabada de indicar.
Negar-lhe legitimidade de intervenção processual como parte activa na relação em que questiona a validade da deliberação da assembleia geral de que falámos, será iludir o problema de saber, quem defende os interesses da própria sociedade/sócia da ré.
Naturalmente a resposta é simples: defende tais interesses enquanto projectados na deliberação tomada, aquele (ou aqueles) que aproveitem da utilidade derivada da procedência da acção (artigo 26º-2, do Código de Processo Civil).
Ora, quando está em causa, entre outros assuntos, a aprovação dos resultados a repartir por sócios e pela sociedade/ré (nomeadamente: para reforçar o seu fundo de reserva legal, ou do seu capital social, ou a sua capacidade de auto financiamento, ou de reinvestimento, ou seu plafond de endividamento, através do crédito bancário, etc), não se pode dizer com tranquilidade que o sócio da sociedade que vai partilhar dos resultados do exercício, não tenha interesse em demandar, não seja um interessado no sentido do direito material que explica a invocação do artigo 286º-1 do Código Civil.
V
Decisão
Termos em que, acordam no Supremo Tribunal de Justiça - 7ª secção - em negar provimento à revista, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 8 de Maio de 2003.
Neves Ribeiro
Araújo de Barros
Oliveira Barros
______________
(1) Sobre as menções da convocatória, seu interesse, necessidade e clareza das menções, e para citar o mais recentemente publicado, veja-se o acórdão deste Tribunal, de 27 de Junho de 2002, proferido na revista n.º 1625, do Conselheiro Oliveira Barros, publicado na Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo II, 2002, em especial páginas 141/143.
(2) Roque Laia , Guia das Assembleias Gerais, páginas 84/85.
(3) Tem interesse a leitura, entre outros, dos artigos 3º (base do imposto); 7º (período de tributação); 15º (definição da matéria colectável); 17º e 18º (determinação e periodização do lucro tributável), todos do Código do Imposto sobre rendimento das pessoas colectivas.
(4) Assim se refere no n.º 8 do preâmbulo do Decreto Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, que aprovou o Código das sociedades Comerciais e na R.L.J. Ano 122º, páginas 30/31 e nas notas correspondentes, em estudo aí publicado pelo saudoso Professor Lobo Xavier, dando conta de posições não coincidentes, relativamente à taxatividade.
(5) Não pode ter aqui aplicação a explicação dada pelo saudoso Professor Agostinho Caeiro sobre as chamadas assembleias totalitárias ou universais, em que a reunião de todos os sócios, surte o efeito útil da convocação. (Temas de Direito das Sociedades, páginas 477 e seguintes).