COMODATO
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
ACTO DE MERA TOLERÂNCIA
UNIÃO DE FACTO
DIREITO AO ARRENDAMENTO
Sumário

I - O contrato de comodato tem carácter temporário, pelo que a determinação do uso a que se refere o n.º 1 do art.º 1137º do Cód. Civil envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa quando, implicando este a prática de actos genéricos de execução continuada, não for concedido por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.
II - Assim, não se estipulando prazo nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição da coisa.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 8/6/01, "A" instaurou contra "B" acção com processo ordinário, pedindo o reconhecimento do direito de propriedade dele autor sobre um prédio que identifica, - por ele adquirido quando rústico mas destinado a construção urbana e onde entretanto construiu efectivamente um fogo para habitação própria -, e a condenação da ré a restituir-lho, pois que sem título nem autorização do autor o ocupa, e a pagar-lhe uma indemnização de valor a fixar em execução de sentença mas não inferior a 100.000$00 por cada mês em que se manteve e mantiver tal situação devido à desvalorização que com essa ocupação provoca no imóvel.
Em contestação, a ré invocou ilegitimidade do autor por se encontrar no processo desacompanhado da mulher, impugnou em parte, e, em reconvenção, invocou que só ocupara o imóvel em causa quando este se tornara minimamente habitável, em 1997, por ter sido o próprio autor, com quem vivia maritalmente desde 1986 e que dela se separou definitivamente em 1998, que com ela instara para tal e sem quaisquer limitação de tempo, restrições ou contrapartidas, a fim de deixar, ele autor, de pagar a renda da casa em que até então a ré habitava com uma filha apenas dela e de a compensar por todo o tempo em que tinham vivido maritalmente, pela dependência em que a colocara, e por reconhecer que a existência da casa se devia a iniciativa e a trabalho da própria ré;
sustenta ainda haver abuso de direito por parte do autor;
e pede a condenação deste a reconhecê-la como legítima detentora do prédio em causa por ordem do autor e como forma de a compensar pelas dificuldades que lhe criou ao abandonar a união de facto existente entre ambos, e, em alternativa, que o autor seja condenado a arrendar-lhe o dito prédio por um valor mensal a fixar de forma equitativa pelo Tribunal.
Em réplica, o autor rebateu a matéria de excepção e impugnou a reconvenção.
Entretanto, a mulher do autor, C, requereu a sua intervenção ao lado deste (com quem casara em 10 de Abril de 1997 no regime de comunhão de adquiridos), o que foi admitido.
Realizada uma audiência preliminar sem se ter obtido conciliação, foi proferido despacho saneador que decidiu não haver excepções dilatórias, - salvo a de ineptidão da petição inicial quanto ao pedido de indemnização -, nem nulidades secundárias, e que logo conheceu do mérito da causa na parte restante, pelo que absolveu a ré da instância quanto ao pedido de indemnização e, julgando inexistentes comodato e abuso de direito, reconheceu o direito de propriedade do autor sobre o seu aludido prédio, condenou a ré no pedido de restituição, e absolveu o autor do pedido reconvencional, nomeadamente do pedido de atribuição de casa de morada de família após o termo da união de facto, que a lei não previa.
A ré apelou, tendo a Relação proferido acórdão que negou provimento à apelação e confirmou a sentença ali recorrida.
É deste acórdão que vem interposta a presente revista, de novo pela ré, que, em alegações, formulou as seguintes conclusões:
1ª - As partes conheceram-se em 1986 na África do Sul, onde passaram a viver como casados;
2ª - Em 1996 o autor convenceu a recorrente a virem residir em Ponta Delgada, para o que comprariam uma casa;
3ª - Em Ponta Delgada ambos pediram ao Banco Fonsecas e Burnay um empréstimo para este fim, assinando a recorrente, em ordem à concessão desse empréstimo, uma livrança de 4.500.000$00;
4ª - O autor comprou, em seu nome somente, o terreno para a construção da casa, pelo que convenceu a recorrente a pedirem ao Banco que só ele passasse a ser beneficiário do empréstimo;
5ª - Apesar disso, a recorrente ficou encarregada de toda a parte burocrática e da direcção e vigilância da construção e recheio da casa;
6ª - A recorrente ficou autorizada a movimentar a conta bancária para pagamento das despesas com a construção;
7ª - Entretanto a recorrente e a filha viviam numa casa que ambos haviam tomado de arrendamento quando chegaram a Ponta Delgada;
8ª - O autor propôs e convenceu a recorrente a ocupar a casa nova, mesmo antes de concluída, para se aliviarem da despesa da renda;
9ª - Com a mudança para Ponta Delgada, a recorrente ficou sem meios próprios de subsistência como tinha na África do Sul e inteiramente dependente do autor;
10ª - Este, a ocultas da recorrente, conheceu uma senhora na Ilha Terceira, com quem veio a casar menos de um ano após a compra do terreno pelo autor e antes de concluída a casa;
11ª - Com este casamento, o autor completou o dolo com que havia até então induzido a recorrente no logro;
12ª - Assumiu a obrigação de a indemnizar por todos os prejuízos que lhe causou (art.º 253º do Cód. Civil);
13ª - Com a presente acção, o autor pretende eximir-se ao cumprimento desta obrigação, violando o contrato entre ambos para a habitação da recorrente e filha;
14ª - Estes factos, que constam dos autos, definem o comodato da casa como para uso determinado (art.º 1137º, n.º 1, do Cód. Civil);
15ª - Por isso, só quando esse uso terminar a recorrente será obrigada a desocupar a casa;
16ª - O acórdão recorrido decidiu em contrário dos factos acima expostos e constantes dos autos, com o que cometeu um erro na definição do contrato violando o art.º 1137º, n.º 1, do Cód. Civil, erro esse que este Supremo tem competência para corrigir;
17ª - Violou ainda os art.ºs 508º, n.º 1, al. e), e 510º, n.º 1, al. b), por não ordenar a organização da relação de factos assentes e da base instrutória e por decidir sem que o estado do processo o permitisse.
Termina pedindo que o acórdão recorrido seja revogado e o contrato de comodato definido como sendo o do art.º 1137º, n.º 1, do Cód. Civil, ordenando-se a baixa dos autos à 1ª instância para aí prosseguir os seus termos.
Em contra alegações, o autor pugnou pela confirmação daquele acórdão.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que se mostram assentes os factos como tais declarados no acórdão recorrido, para o qual nessa parte se remete ao abrigo do disposto nos art.ºs 726º e 713º, n.º 6, do Cód. Proc. Civil, uma vez que não houve impugnação da matéria de facto nem há fundamento para a sua alteração.
Embora, a ser exacta a versão dos factos apresentada no seu articulado pela ré, a mesma fosse susceptível de ser interpretada como integrando abuso de direito por parte do autor, abuso esse de conhecimento oficioso, certo é que a eventual existência de tal abuso já foi negada por decisão nessa parte transitada em julgado. Com efeito, a sentença da 1ª instância julgou inexistente o abuso de direito, nessa parte não sendo objecto da apelação porque as respectivas conclusões das alegações da ré (as quais delimitam o objecto do recurso - art.ºs 660º, n.º 2, 684º, n.º 3, e 690º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil) não impugnaram tal decisão, e o acórdão recorrido, que houve por bem reapreciar essa questão, igualmente concluiu pela inexistência do dito abuso, nessa parte não tendo, de novo, sido impugnado nas conclusões das alegações do recurso. Por isso, concorde-se ou não, tem de se considerar definitivamente decidido que não há abuso de direito pelo autor, por aresto nessa parte transitado em julgado (art.º 684º, referido, n.º 4), o que implica a desnecessidade de apuramento de factos sobre essa matéria.
Assim, a única questão a decidir é a que vem suscitada nas conclusões da alegações da presente revista: saber se a casa terá sido entregue pelo autor à ré em execução de um contrato de comodato para uso determinado.
Nos termos do art.º 1129º do Cód. Civil, "comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir".
Segundo dispõe o art.º 1131º do mesmo Código, "se do contrato e respectivas circunstâncias não resultar o fim a que a coisa emprestada se destina, é permitido ao comodatário aplicá-la a quaisquer fins lícitos, dentro da função normal das coisas de igual natureza".
Nos termos do art.º 1137º, n.º 1, ainda do Cód. Civil, "se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação"; e acrescenta o n.º 2 que "se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida".
Perante os factos invocados pela ré na contestação, não se trata aqui da figura do precário, ou comodato precário, que se verifica, não quando há entrega da coisa pelo comodante com constituição de um direito a utilizá-la (a entrega com tal eficácia constitui, como resulta da definição supra, elemento da figura negocial do comodato verdadeiro e próprio), mas quando se verifica a prática pelo comodante de actos de mera tolerância não contratual, ou seja, de adopção e manutenção de uma atitude passiva sem exercício do direito de impedir ou proibir mas sem concessão de qualquer autorização nem constituição ou reconhecimento de qualquer direito a favor do precarista, que não dispõe de tutela judiciária para o gozo do bem detido, sendo obrigado a entregá-lo quando para tal for interpelado. A mera tolerância traduz uma simples passividade perante a actuação alheia, consiste num suportar de actos porventura abusivos para os quais se não deu qualquer autorização (Acórdão do S.T.J. de 29/9/93, in Col. Jur. - Acs. do S.T.J., Ano I, Tomo III - 1993, pg. 44 a 49), não constituindo em consequência obstáculo a que a restituição seja exigida em qualquer momento em que o titular do direito sobre a coisa a pretenda.
Ora, na situação dos autos, os factos invocados pela ré não traduzem a adopção de uma atitude meramente passiva pelo autor, que dessa forma tivesse simplesmente tolerado ou suportado a prática por ela dos actos de ocupação do fogo; dos factos por ela articulados resulta que o autor se teria mesmo, com a entrega, vinculado a prestar-lhe o gozo da coisa, o que integra o contrato de comodato verdadeiro e próprio, isto é, em sentido jurídico, produtor de efeitos jurídicos.
De tais factos resulta também que o fogo lhe teria sido cedido gratuitamente sem indicação de prazo certo para a restituição, sendo a finalidade da entrega a de utilização da casa em questão como habitação pela ré e sua filha, finalidade esta que sempre resultaria, se não das circunstâncias do contrato pela ré referidas, do disposto no transcrito art.º 1131º.
Só que, para aplicação à hipótese dos autos do disposto no n.º 1 do citado art.º 1137º, impõe-se ainda que a casa tenha sido emprestada para uso determinado. E, face à obrigação de restituição que impende sobre o comodatário, torna-se evidente o carácter temporário do contrato, que há-de ter sido celebrado para terminar forçosamente, em princípio, antes da morte dele (a menos que caduque em consequência do óbito do comodatário nos termos do art.º 1141º do Cód. Civil), desde que não tenha sido, como é o caso por falta de alegação, integrada no contrato cláusula cum potuerit ou cum voluerit nos termos do art.º 778º do Cód. Civil.
Em tais condições, tem de se interpretar aquele dispositivo como pressupondo, ao estabelecer que sendo a coisa emprestada para uso determinado o comodatário a deve restituir ao comodante logo que o uso finde, que a determinação do uso envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo em consequência considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada mas de actos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, isto é, se for concedido por tempo indeterminado. Portanto, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.
Daqui resulta que, não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tenha direito a exigir, em qualquer momento, a restituição da casa, face ao disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º.
Pelo que não pode ser reconhecida razão à recorrente mesmo que fosse de considerar provados todos os factos que invoca na contestação.
Acresce que, tendo a união de facto entre o autor e a ré terminado, no máximo, em 1998 (art.º 32º da contestação), não beneficia a ora recorrente do disposto na Lei n.º 135/99, de 28/8, nem do disposto na Lei n.º 7/2001, de 11/5, que revogou aquela, só posteriormente entradas em vigor, nem, consequentemente, do disposto no art.º 1793º do Cód. Civil, pelo que não lhe assiste sequer direito à celebração de contrato de arrendamento tendo como objecto mediato o fogo em causa, questão que, aliás, não vem suscitada nas conclusões das suas alegações.
Não merece, pois, o acórdão recorrido, a censura que lhe faz a recorrente, tanto mais que não foi por ela deduzido qualquer pedido de indemnização, que aliás o art.º 253º do Cód. Civil, por ela invocado, não consagra.
Finalmente, pelas razões já expostas o estado do processo permitia o conhecimento imediato do mérito da causa, atendendo aos factos que foram dados por assentes no acórdão recorrido e aos demais articulados mas não considerados assentes, que, mesmo que viessem a ficar provados se houvesse lugar a audiência de julgamento, não possibilitariam se reconhecesse razão à ré, pelo que não havia necessidade de elaboração de base instrutória.
Donde que se entenda não terem igualmente sido violadas as disposições processuais referidas pela recorrente.

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 13 de Maio de 2003
Silva Salazar
Ponce de Leão
Afonso Correia