ABUSO DE CONFIANÇA
BURLA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
MEDIDA DA PENA
Sumário

Texto Integral

Acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. "A", melhor identificado nos autos, foi condenado por acórdão de 12.7.2002 proferido no processo 1043/01 do 2º Juízo Criminal da comarca de Viseu (fls. 506 a 532) na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, corresponde às seguintes penas parcelares:
a) 3 anos de prisão pela prática de um crime de burla qualificada p. p. pelos arts. 217, nº 1 e 218, nº 2, al. a), do CP de 1995;
b) 4 anos de prisão pela prática de um crime de abuso de confiança p. p. pelos arts. 300, nºs 1 e 2, al. a), do CP de 1982;
c) 14 meses de prisão como autor de um crime de falsificação de documento na forma continuada, p. p. pelo art. 256, nº 1, al. a), por referência à al. a) do art. 255, 30, nº 2 e 79, todos do C.P. de 1995.
Foi declarado perdoado um ano da referida pena de prisão (art. 1, nºs 1 e 4 da Lei 29/99, de 12 de Maio), tendo sido condenado a pagar ao lesado 2.493,99 Euros de danos não patrimoniais e 47.385,80 Euros e mais 1.545,28 Euros de danos patrimoniais, com os juros referidos a fls. 531.
2. Não se conformando com a decisão, interpôs recurso para a Relação de Coimbra, oferecendo as motivações constantes de fls. 614 a 642, peticionando a absolvição do crime de burla agravada e falsificação do documento, a concessão dos perdões cumuláveis das Leis 15/94 e 29/99 e ainda a suspensão da pena que vier a resistir, mesmo sob condição de reparação do lesado.
3. O MP junto da 1ª instância posicionou-se nos termos constantes de fls. 682 a 686, concluindo no sentido de não merecer provimento o recurso, pelo que deveria ser mantido integralmente o acórdão recorrido.
4. Por acórdão de 4.12.2002 (fls. 717 a 734) o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso, com o qual não se conformou ainda o recorrente que interpôs então recurso para este Supremo Tribunal, oferecendo as motivações constantes de fls. 746 a 751, e concluindo:

1ª Salvo o devido respeito, entende o recorrente que a matéria de facto provada não permite concluir pela prática do crime de abuso de confiança, como decidido no douto acórdão recorrido.
2ª O agente para cometer aquele crime, tem de se "apropriar" da coisa, ou seja, passa a partir de certo momento, a tratar a coisa (que lhe foi entregue por título não translativo da propriedade) como sua.
E esse tratamento da coisa como "sua", traduzir-se-á num comportamento objectivamente ostensivo.
3ª De acordo com a descrição fáctica dos acontecimentos provada, nada daí resulta que sustente a inversão do título da posse, momento esse, como vimos, da consumação do crime.
Nada, nos factos provados, permite dizer que o recorrente tenha recebido aquelas quantias e posteriormente tenha decidido "apropriar-se dos montantes entregues pelo lesado.
4ª Muito pelo contrário, a matéria dada como provada permite concluir que o recorrente, antes da entrega das quantias pelo lesado, já tinha intenção de se apropriar.
Da análise dos factos imputados ao recorrente, resulta evidente que este, ao solicitar as quantias em causa, agiu já com o propósito de as fazer suas.
5ª Logo, estar-se-á perante o crime de burla e não também de abuso de confiança.
6ª Como forma de distinção entre a burla e o abuso de confiança podemos dizer que no abuso de confiança o agente "cai em tentação"; na burla o agente "já está tentado".
E estando "tentado" procurar usar de meios enganosos para satisfazer/concretizar a tentação.
7ª Ficou provado que não era lícita a solicitação daqueles montantes, não só porque ainda não estava proposta a competente acção de preferência (e como tal, longe estava o despacho que antecedia a necessidade de depósito); como não existia qualquer referência a benfeitorias, à data em que solicitou o montante; como ainda e por consequência não havia necessidade de pagamento de quaisquer custas, nem tão pouco em tal montante, daí se concluindo que o recorrente ao solicitá-los agiu com intenção de deles se apropriar.
8ª Assim estabelecida a conduta do recorrente (pela matéria de facto inelutavelmente assente), então jamais se poderá imputar-lhe o crime de abuso de confiança...
Salvo o devido respeito, tal como configurada a conduta do recorrente, confundiu-se no douto acórdão recorrido a confiança necessária para a consumação do crime de burla com a "confiança" a que se reporta o tipo legal do artº 205º do C.P.
9ª Tem sempre de existir uma relação entre o agente e o lesado, só que nem toda a relação de confiança significa a prática do crime de abuso de confiança...
10ª Temos, pois, pelo exposto, que, ao condenar o recorrente na prática do crime de abuso de confiança, padece a douta decisão de vício por errada interpretação e aplicação do direito aos factos provados, violando-se o disposto no artº 205º do C.P., mostrando-se igualmente violado o princípio da legalidade consagrado no artº 1º, nº 1 do C.P.P., mormente os princípios da tipicidade e nullum crimen sine lege que daquele derivam, com consagração constitucional no artº 29º, nº 1 da C.R.P., norma que também se têm por violada por errada interpretação e aplicação.
11ª Em estreita relação com o que supra se deixou dito, mormente quanto à prática de um único crime de burla pelo recorrente, a decisão não especifica quais os factos provados reveladores do cometimento do crime de abuso de confiança, não fundamentando, por isso, a decisão quanto à existência de um concurso efectivo de crimes.
12ª Impunha-se que a fundamentação do decidido não se contivesse apenas em conceitos vagos e genéricos, como "matéria de facto assente", nem se sustentasse em conceitos de direito.
A decisão não explicita qual a matéria de facto relevante para o decidido, não refere que factos consubstanciam diversas resoluções criminosas, ficando assim por fundamentar a conclusão efectuada, tanto mais que apenas se conclui nos precisos termos da norma em análise: e não existe qualquer modalidade (consunção, especialidade ou subsidiaridade) de concurso aparente.
13ª Pelo exposto, a decisão padece do vício de falta de fundamentação, vício que acarreta a sua nulidade nesta parte, por errada interpretação e aplicação do disposto nos artºs 97º, nº 4, 374º, nº 2, 379º, nº 1, al. a), 410º, nº 3, todos do C.P.P., bem como do disposto no artº 205º, nº 2 da C.R.P.
14ª No que toca ao crime de falsificação de documento cremos não existir lugar para a reprovação jurídico-penal pois que este específico tipo de crime pressupõe uma intenção por parte do agente, que não ficou demonstrada nos factos provados em sede de audiência de julgamento.
15ª Esta específica intenção exigida por lei, não se pode ter por presumida, antes necessita em termos de factualidade provada, de actos que razoavelmente indiciem a intenção de causar prejuízo a outrem ou obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo.
16ª Não vemos como poderá ser considerado um "benefício ilegítimo" o direito de recurso. Direito esse consagrado constitucionalmente, por ser um dos mais elementares direitos de defesa dos arguidos.
17ª Por outro lado, tentar encontrar a intenção de causar prejuízo a outrem em "despesas de correio", é, salvo o devido respeito, esquecer que estamos em sede de direito penal, cuja intervenção só se justifica em situações de intolerável lesão de bens jurídicos.
18ª De lembrar ainda que não ficou provado que o recorrente tenha querido prejudicar a imagem e o bom nome do colega.
19ª A matéria de facto provada não inclui actos do recorrente dos quais se possa afirmar que, ao operar a falsificação, o tenha feito com aquela intenção típica.
Daqui resulta que a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, no fundo, para condenar o recorrente pela prática do crime legal de falsificação de documento, por faltarem elementos probatórios da intenção típica, consagrada na norma incriminatória.
20ª Em coerência, não poderá deixar de se considerar que a douta decisão recorrida, ao condenar o recorrente na prática do crime em causa fez errada interpretação e aplicação do artºs 256º, nº 1, al. a) e 79º, todos do C.P., mostrando-se também violado o princípio da legalidade consagrado no artº 1º, nº 1 do C.P.P., mormente os princípios da tipicidade e nullum crimen sine lege que daquele derivam, com consagração constitucional no artº 29º, nº 1 da C.R.P., norma que também se têm por violada por errada interpretação e aplicação.
21ª Pressupondo a reavaliação da conduta do recorrente em termos tais que o mesmo seja absolvido do crime de falsificação de documento, então, haverá que ao(s) crime(s) por que for condenado aplicar, adicionando, os perdões previstos nas Leis 15/94 e 29/99, conforme decorre não só dos normativos supra transcritos como do disposto nos artºs 8º, al. d) da Lei 15/94 e artº 1º, nº 1 da Lei 29/99.
22ª Na circunstância deverão, pois, ao recorrente ser perdoados dois anos de prisão.
Termos em que:
Devem ser decretadas as invocadas nulidades e, consequentemente, proceder-se a nova decisão que aprecie fundamentadamente o objecto do recurso. Mais deve o presente ser julgado procedente, absolvendo-se o recorrente do crime de abuso de confiança, por que foi condenado, absolvendo-se, outrossim, do crime de falsificação de documento e, em consequência, ser aplicado ao crime cometido o prescrito nas Leis nºs 15/94 e 29/99.
5. Respondendo à motivação apresentada, o Exmº Procurador Geral Adjunto junto da Relação de Coimbra posicionou-se da forma constantes de fls. 758 e 758 v., pugnando no sentido da confirmação do acórdão recorrido, por se configurar correcto.
Neste Supremo Tribunal de Justiça, tendo os autos ido com vista ao MP, pronunciou-se a Exmª Procuradora Geral Adjunta nos termos do exarado a fls. 765, entendendo deverem os autos seguirem para audiência.
Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se à audiência a que se reporta o art. 423 do CPP, pelo que cumpre agora apreciar e decidir.
Apreciando.
II
1. De acordo com as conclusões das motivações, que aliás delimitam e balizam o objecto do recurso, questiona e discute o recorrente a integração dos factos provados como crime de abuso de confiança, referenciando falta de fundamentação da decisão, "vício que acarreta a sua nulidade nesta parte, por errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 97, nº 4, 374, nº 2, 379, nº 1, al. a), 410, nº 3, todos do CPP, bem como do disposto no art. 205, nº 2, da CRP.", como aliás questiona e discute a sua condenação pelo crime de falsificação de documento, alegando errada interpretação e aplicação dos arts. 256, nº 1, al. a) e 79 do CP e violação do "princípio da legalidade consagrado no art. 1, nº 1, do CPP" e do art. 29, nº 1, da CRP.
Em suma, pugna pela absolvição dos crimes de abuso de confiança e da falsificação do documento, pugnando ainda pela aplicação, adicionando, dos perdões das Leis 15/94 e 29/99, dizendo dever ser perdoados 2 anos de prisão.
2. Foi dada como verificada a seguinte matéria de facto:
1 - B, melhor id. a fls. 119, foi, desde 1985, arrendatário comercial dos rés-do-chão do prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o artigo 7, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o número 34 473, sito ao Soar de Cima - Rua Cónego Martins, em Viseu, aí havendo explorado um estabelecimento de barbearia.
Porém, tal prédio foi vendido pelo seu proprietário a C, melhor id. a fls. 150, por escritura pública celebrada no dia 14 de Dezembro de 1988, no 2º Cartório Notarial de Viseu, pelo preço declarado de sete milhões de escudos.
Tendo tomado conhecimento desta venda, o referido B decidiu exercer o seu direito de preferência na compra do citado prédio urbano, direito esse que lhe advinha do facto de, conforme o referido, ser arrendatário do rés-do-chão do mesmo.
Assim, com vista à propositura da respectiva acção judicial, o B constituiu como seu mandatário o arguido, que é advogado, com escritório na Comarca de Viseu, o qual, numa primeira acção que intentou, começou por invocar a simulação do preço declarado na respectiva escritura de venda, sustentando que o valor real desta fora de, apenas, dois milhões e oitocentos mil escudos, pedindo que assim fosse aquele reconhecido, e que por esse montante lhe fosse permitido exercer o seu suposto direito de preferência.
Nessa acção, à qual foi atribuída o nº 14/89, da 1ª secção do então 3º Juízo deste Tribunal, veio a decidir-se, por acórdão transitado em julgado em 9/04/92, que o preço real por que a venda havia sido efectuada fora de seis milhões e quinhentos mil escudos.
Logo que o arguido teve conhecimento dessa decisão, em 26/3/1992, antes ainda do seu trânsito em julgado, e agora com o argumento de que iria instaurar a respectiva acção de preferência, foi aquele solicitar ao B nova procuração, o que este satisfez, subscrevendo, em 26 de Março de 1992, aquela cuja cópia consta de fls. 142, ao mesmo tempo que lhe solicitou a entrega da quantia de nove milhões e quinhentos mil escudos, dizendo-lhe que seis milhões e quinhentos mil escudos eram correspondentes ao preço pelo qual o proprietário do prédio urbano em causa o havia vendido a C, segundo a decisão proferida na citada acção nº 14/89, e que, por isso, necessitava daquela importância para proceder ao seu depósito à ordem do respectivo processo, que dois milhões de escudos eram correspondentes a benfeitorias feitas, entretanto, no mesmo prédio, e que um milhão de escudos correspondiam a custas processuais.
Porém, bem sabia o arguido que nenhuma importância, a título de benfeitorias, havia sido exigida, tanto mais que a respectiva acção de preferência ainda nem sequer estava proposta, como também sabia que as custas não ascendiam a tal montante, e que o pagamento das mesmas sempre fora feita pelo próprio B, embora, posteriormente, entregasse as correspondentes guias àquele.
O B, acreditando no que o arguido lhe havia dito, entregou-lhe, no seu escritório, sito na Rua ......, Edifício ..., em Viseu, no dia 1 de Abril de 1992, duzentos e cinquenta mil escudos em notas do Banco de Portugal, e um cheque, com o número 2490043489, da conta número 99122740001, do "Banco Fonsecas & Burnay", agência de Viseu, de que é titular o dito B, por ele assinado e preenchido, com uma ordem de pagamento da importância de nove milhões, duzentos e cinquenta mil escudos, e a data de 92/04/01, deixando apenas em branco o local destinado à identificação do beneficiário, tudo conforme consta da cópia do mesmo cheque, junta a fls. 125 dos autos, e aqui dada por reproduzida.
O arguido, por sua vez, enquanto mandatário judicial do referido B, apresentou, em 20 de Agosto de 1992, no Tribunal Judicial de Viseu, uma petição inicial, por si redigida, em que aquele figurava como autor, sendo réu C, pedindo então que se reconhecesse o direito de preferência do mesmo B na compra do prédio urbano em causa, pelo preço de seis milhões e quinhentos mil escudos.
Só que, na acção de preferência a que deu origem a petição atrás referida, a qual tomou o nº 128/92, do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu, não depositou o mesmo arguido aquela importância, como lhe era imposto fazê-lo, nos oito dias subsequentes à notificação do despacho do Meritíssimo Juiz que ordenou a citação do réu, notificação essa de que aquele tomou conhecimento no dia 30 de Janeiro de 1996, enquanto advogado constituído na referida acção.
Efectivamente, o arguido, nessa data, já não tinha tal importância na sua posse, pois que, logo no dia seguinte àquele em que a recebera (2 de Abril de 1992) depositou o referido cheque nº 2490043489, bem como os duzentos e cinquenta mil escudos em dinheiro, na conta nº 2812630, do "Banco Fonsecas & Burnay", agência de Viseu, conta essa de que o mesmo arguido era titular, tendo assim gasto os nove milhões e quinhentos mil escudos em proveito próprio, designadamente através de cheques que, dias depois, ainda nesse mês de Abril, sacou sobre a referida conta, conforme fls. 451 e 452.
O arguido não só não depositou o respectivo preço na acção de preferência atrás citada, razão pela qual veio esta a improceder, por sentença transitada em julgado em 22 de Mário de 1999, como ainda não devolveu a referida importância ao B.
Esta acção, por sua vez, também se arrastou consideravelmente no tempo, em grande parte devido a expedientes dilatórios de que o arguido se socorreu, designadamente incidentes e recursos, os quais tiveram como primeiro objectivo protelar o epílogo da mesma e evitar que se descobrisse a apropriação abusiva que aquele havia feito do dinheiro que o seu constituinte lhe confiara.
Por isso, só em 15/03/2000, na sequência de notificação pessoal ordenada na mesma acção pelo Mmº Juiz, veio o B a ter conhecimento do que se havia passado.
O arguido sabia que da importância de nove milhões e quinhentos mil escudos que lhe foram entregues pelo lesado B apenas seis milhões e quinhentos mil escudos se destinavam ao depósito do preço devido por este, enquanto autor na referida acção de preferência nº 128/92.
Assim, ao solicitar ao referido B a entrega, em acréscimo, da importância de seis milhões e quinhentos mil escudos, de dois milhões de escudos, por supostas benfeitorias, cujo pagamento não era exigido, e de um milhão de escudos por custas que nunca havia pago, nem se propunha pagar, o arguido agiu com o propósito, concretizado, de obter para si essas importâncias, às quais sabia não ter qualquer direito, por não lhe pertencerem, tudo fazendo à custas do empobrecimento do património do referido B, que enganou, abusando da confiança que este em si depositou, enquanto seu mandatário judicial.
Quer ao actuar dessa forma, quer ao apropriar-se da referida importância de 6.500.000$00, não a depositando, como era seu dever, sabia estar a actuar contra a vontade e sem o conhecimento do mesmo B.
Fê-lo de forma determinada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
II - Por sentença proferida em 25 de Fevereiro de 1997, no âmbito do Processo Comum Singular nº 163/96, que correu os seus termos pelo 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, a esposa do arguido, D, melhor id. a fls. 14, foi condenada pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão.
Nesse processo interveio como seu advogado E, melhor id. a fls. 87, com escritório em Lisboa.
Após a leitura da respectiva sentença, que ocorreu na presença da arguida, aquele causídico não teve mais qualquer intervenção no citado processo.
O arguido, porém, inconformado com a condenação da sua esposa, decidiu redigir o requerimento de interposição de recurso daquela decisão, constante de fls. 19 dos autos, bem como a motivação do mesmo recurso que acompanhou o referido requerimento, constante de fls. 20 a 30 dos autos, trabalho que só concluiu em 14 de Março de 1997, isto é, no 3º dia útil após o decurso do prazo normal de recurso, que era, então, de 10 dias úteis.
Porque não lhe era já possível, em tempo útil, remeter essas peças processuais ao referido Dr. E, para que este, eventualmente, as assinasse e as fizesse chegar, nesse mesmo dia, ao Tribunal Judicial de Viseu, e porque também não podia intervir naquele recurso, já que fora testemunha no processo, e no mesmo recurso se questionava a sentença recorrida na parte em que se considerava que ele, arguido, fora co-autor do crime por cuja prática a esposa havia sido condenada, e se ordenava a extracção de certidão para procedimento criminal contra si, arguido, para que aquela não perdesse a hipótese de recurso daquela decisão, ele mesmo assinou e rubricou tais peças processuais, apondo-lhes, supostamente, as assinatura e rubrica do referido advogado, Dr. E, que assim imitou, para o que se socorreu das já constantes de outras peças do processo e, também, da correspondência que este havia dirigido ao arguido, e deu entrada das mesmas peças do Tribunal Judicial de Viseu no referido dia 14 de Março de 1997, tudo conforme consta de fls. 19 a 30 destes autos, que aqui se dão por reproduzidas.
Ao actuar pela forma descrita fê-lo o arguido sem conhecimento e contra a vontade do Dr. E.
Porém, havendo sido bem sucedido com as imitações que havia feito da assinatura e rubrica, pois que as respectivas peças processuais foram recebidas sem reparos, o arguido, novamente sem dar qualquer conhecimento ao Dr. E, para se furtar ao incómodo e despesas de ter que lhas remeter para apreciação, elaborou em nome da esposa várias outras peças do mesmo processo, que também subscreveu e rubricou, como fossem a assinatura e rubrica do citado advogado, designadamente um pedido de apoio judiciário, cuja cópia consta de fls. 37 e 38 dos autos, o qual fez entrar no Tribunal Judicial de Viseu em 9/04/97, uma reclamação contra o despacho que não recebeu o recurso atrás referido, cuja cópia consta de fls. 6 a 11 dos autos, e que fez entrar no mesmo Tribunal em 30/04/97, e um requerimento de interposição de recurso da decisão que indeferiu a reclamação atrás referida, cuja cópia consta de fls. 50 e 51 dos autos, e que fez entrar no Tribunal da Relação de Coimbra em 12/06/97.
Assim, o arguido assinou e rubricou todas as referidas peças processuais como se as mesmas tivessem sido apostas pelo punho do Dr. E, sendo mesmo que as duas últimas foram redigidas em papel timbrado com o nome deste, que ele, arguido, fabricou em computador.
Em todas as circunstâncias descritas agiu o arguido de forma determinada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era criminalmente punida, pois que estava a pôr em causa a credibilidade e a confiança de que gozam, quanto à sua autenticidade, não só as peças processuais forenses subscritas por advogados como, também, os próprios processos judiciais.
O arguido confessou parcialmente os factos, embora sem grande relevância para o apuramento da verdade dos mesmos, já que esta se evidencia dos autos, em grande parte, através dos documentos que os instruem.
No demais, procurou iludir o Tribunal, forçando mesmo, com a sua defesa, a novas diligências junto de instituições bancárias, do que resultou a comprovação da falsidade da sua argumentação.
Empenhou-se ainda em entravar o início e o normal prosseguimento do julgamento, a cujas sessões compareceu apenas quando quis, e depois de confrontado com a possibilidade da sua detenção.
Disse viver com dificuldades económicas.
Já foi julgado e condenado nos autos de processo Comum Singular nº 180/96, do 2º Juízo Criminal de Viseu, pela prática de crime de emissão de cheque sem provisão.
Ainda não indemnizou o lesado B.
Disse estar arrependido.
O ofendido B, em consequência da longa e enganosa conduta do arguido, sofreu grande desgosto, preocupações e privações de natureza patrimonial.
Viu definitivamente perdida a possibilidade de preferir na compra do imóvel onde se integrava o arrendado no qual exercia então a sua profissão, pagando uma renda mensal de cerca de 2.000$00, imóvel esse localizado no centro da cidade de Viseu, e de considerável valor patrimonial.
Viu-se ainda despejado do mesmo arrendado pelo seu novo proprietário por haver violado os seus deveres de inquilino, no acatamento de directivas contrárias aos mesmos deveres, e que lhe foram dadas pelo arguido, enquanto seu mandatário judicial.
Em consequência desse despejo teve que arrendar um novo espaço para poder continuar a exercer a sua profissão, e pelo qual paga, actualmente, cerca de 60.000$00.
Viu-se desapossado das economias de toda uma vida de trabalho, a cortar cabelos, sendo mesmo que para poder entregar então ao arguido a importância de nove milhões e quinhentos mil escudos teve que pedir emprestados quatro milhões e quinhentos mil escudos.
Pagou de custas na acção nº 128/92 a importância de 309.800$00.
E como não provada:
Todos os demais constantes da douta acusação, a qual, nessa parte, aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, designadamente, que o arguido não deu a conhecer ao lesado B a decisão final proferida na acção nº 14/89, quanto ao preço real da venda; que o mesmo arguido disse àquele que o preço pelo qual o proprietário do prédio urbano em causa tinha vendido o mesmo a C, segundo a decisão proferida na referida acção, fora de nove milhões e quinhentos mil escudos; que o B lhe entregou a citada importância na convicção de que a mesma se destinava integralmente ao depósito do preço da venda do prédio em causa.
3. De harmonia com os elementos constantes dos autos, e tendo-se na devida atenção a matéria de facto dada como provada, de manifesta suficiência e insindicável por este Supremo Tribunal, haverá a reter-se que o acórdão recorrido, no processo lógico do seu desenvolvimento, da sua coerência intrínseca e com as regras da experiência comum, não suscita qualquer observação ou reparo, sendo ainda manifesto não se vislumbrar a existência de qualquer dos vícios do nº 2 do art. 410 do CPP a macular a decisão em causa.
Uma matéria de facto que a Relação não alterou, "mantendo-se portanto imodificada aquela que em 1ª instância se deixou assente (factos provados e não provados)" (fls. 729), importando exarar-se não haver qualquer reparo a fazer quanto à subsunção jurídico-penal dos mesmos factos em tipologia penal, factos esses que de todo em todo justificam o seu enquadramento na prática pelo arguido de um crime de burla p. p. pelos arts. 217, nº 1 e 218, nº 2, al. a) do CP de 1995, de um crime de abuso de confiança p. p. pelos arts. 300, nºs 1 e 2, al. a) do CP de 1982 e ainda de um crime de falsificação de documento, na forma continuada, p. p. pelo art. 256, nº 1, al. a), com referência à al. a) do art. 255, 30, nº 2 e 79, todos do C. Penal de 1995.
Como, e bem, o fez a 1ª instância, e a Relação de todo em todo confirmou, na natural e normal sequência de uma factualidade que de uma forma incontornável assim o peticionava e reclama.
Na verdade, e atendo-nos à matéria de facto dada como provada, o arguido, no conspecto espácio-temporal e concreto referenciado nos autos, e como Advogado do ofendido B, solicitou a este "a entrega da quantia de nove milhões e quinhentos mil escudos, dizendo-lhe que seis milhões e quinhentos mil escudos eram correspondentes ao preço pelo qual o proprietário do prédio urbano em causa o havia vendido a C, segundo a decisão proferida na citada acção nº 14/89, e que, por isso, necessitava daquela importância para proceder ao seu depósito à ordem do respectivo processo, que dois milhões de escudos eram correspondentes a benfeitorias feitas, entretanto, no mesmo prédio, e que um milhão de escudos correspondiam a custas processuais" (fls. 720), bem sabendo "que nenhuma importância, a título de benfeitorias, havia sido exigida (...) como também sabia que as custas não ascendiam a tal montante, e que o pagamento das mesmas sempre fora feito pelo próprio B" (id.), tendo daí resultado que "o B, acreditando no que o arguido lhe havia dito" (id.), lhe tivesse feito a entrega a 1.4.92 de um cheque de 9.250.000$00 e ainda de 250.000$00 em dinheiro.
Simplesmente "o arguido não só não depositou o respectivo preço na acção de preferência atrás citada, razão pela qual veio esta a improceder" (id.), como ainda gastou "os nove milhões e quinhentos mil escudos em proveito próprio" (id.).
Ora, "ao solicitar (...) a entrega, em acréscimo da importância de seis milhões e quinhentos mil escudos, de dois milhões de escudos, por supostas benfeitorias, cujo pagamento não era exigido, e de um milhão de escudos por custas que nunca havia pago, nem se propunha pagar, o arguido agiu com o propósito, concretizado, de obter para si essas importâncias às quais sabia não ter qualquer direito, por não lhe pertencerem, tudo fazendo à custa do empobrecimento do património do referido B, que enganou, abusando da confiança que este em si depositou, enquanto seu mandatário judicial" (id.), sendo certo que "ao apropriar-se da referida importância de 6.500.000$00, não a depositando, como era seu dever, sabia estar a actuar contra a vontade e sem o conhecimento do mesmo B" (fls. 722), tendo-o feito "de forma determinada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei" (id.).
Aliás o comportamento do arguido, no quadro fáctico e circunstancial dos termos em que formulou o pedido e solicitou tais importâncias, não deixou de configurar, e de enformar, "uma "habilidade" enganosa do arguido para levar o cliente a entregar-lhe tal dinheiro já com o propósito de dele se apropriar em proveito próprio" (fls. 773).
E face à matéria fáctica dada como provada, nada há a observar quanto à reconhecida existência de um concurso efectivo entre os crimes de burla e de abuso de confiança, tal como o entendeu a 1ª instância e o confirmou a Relação, sendo manifesto e incontornável ter-se verificado o preenchimento dos elementos subjectivos e objectivos atinentes aos dois ilícitos na sua própria identidade e diferenciação, aliás no concretizar de intenções e de resoluções criminosas diversas, ainda que na temporaneidade de um mesmo momento e de uma externa formulação.
Mas a perfilarem-se, refira-se, como perfeitamente distintos nos seus elementos tipificadores, porquanto clara e perfeitamente dissociados entre si nos montantes concretamente entregues e sua particular afectação ou finalidade (anota-se que 6.500 contos eram para depósito na acção de preferência, o que não foi feito), e igualmente bem diferenciados na sua concretização/consumação (e pela inversão do título de posse no caso dos 6.500 contos), sendo certo que, "atenta a matéria de facto assente, estamos de verdade perante um concurso real (...) e não existe qualquer modalidade (consunção, especialidade ou subsidiaridade) de concurso aparente", como se escreve no acórdão recorrido a fls. 733, e que de todo se acompanha.
Daí não assistir qualquer razão ao recorrente, como aliás também não lhe assiste razão no que diz respeito ao crime, sob a forma continuada, de falsificação de documento, que o arguido concretizou "com o abuso da assinatura de um seu colega" (fls. 734), resultando da factualidade dada como provada (fls. 722 e 723), e de um modo incontornável, que o arguido, com a sua conduta, preencheu os elementos tipificadores de tal ilícito, sendo manifesto que da sua acção resultou a "obtenção de uma vantagem ilícita ou injusta, isto é, não protegida pelas leis" (fls. 523), um benefício ilegítimo, aliás concretizado "num caso, que a sua esposa não perdesse a hipótese de recurso de decisão que a condenara por crime de emissão de cheque sem provisão; e em outro, que o recorrente (arguido) se furtasse a despesas com a remessa a esse seu colega para aprovação e subscrição por este de várias peças processuais que ele elaborara" (fls. 734).
Quanto à aplicação das leis de clemência, nada há a observar quanto ao decidido na 1ª instância e confirmado pelo Tribunal da Relação a fls. 734, exarando-se ser aplicável na verdade apenas a Lei 29/99, de 12 de Maio, dada a temporaneidade de alguns dos factos criminosos que, na sua projecção no tempo, ocorreram já após 16.3.94.
Assim, e em conclusão, haverá a consignar-se não suscitar qualquer observação ou reparo o acórdão recorrido, aliás correcto na interpretação e na aplicação das leis e na sua própria fundamentação, que se apresenta manifestamente suficiente e não padecendo de qualquer vício, sendo certo que não se vislumbram quaisquer das nulidades alegadas, designadamente pelas invocadas, e não verificadas, violações dos arts. 97, nº 4, 374, nº 2, 379, nº 1, a), 410, nº 3, do CP e art. 205, nº 2 da CRP, enunciados nas conclusões do recorrente, ou outras igualmente referenciadas, pelo que é de manter, e nos seus precisos termos, o acórdão recorrido.
Porque de todo em todo ajustado à matéria de facto dada como provada, e em que se fundamenta, sendo certo que as penas aplicadas em concreto, parcelares e em cúmulo jurídico, bem como o perdão concedido no quadro da Lei 29/99, não suscitam a menor observação ou reparo, atendendo aos fins das penas, às necessidades da prevenção geral e às exigências da prevenção especial, equacionados o binómio culpa do arguido - ilicitude do facto, e o grau e os limites dessa mesma culpa, face à gravidade dos ilícitos em causa.
Assim, e decidindo.
4. Acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, confirmando nos seus precisos termos o acórdão recorrido.
Custas: 6 UCs, com 1/3 de procuradoria.
Honorários ao Defensor nomeado - 3 URs.

Lisboa, 14 de Maio de 2003
Borges de Pinho
Pires Salpico
Antunes Grancho
Henriques Gaspar ( Vencido, Embora a matéria de facto provado para ser susceptível de gerar dificuldades de interpretação - e, nesta medida, revelar um certo grau de obscuridade - aponto por considerar integrados, não um crime de burla qualificada em concurso com o crime de abuso de confiança, mas apenas um crime de burla qualificada que se integra pelo artifício usado e pelo prejuízo patrimonial do lesado englobando a totalidade dos montantes entregues.
Na verdade, a acção é única - a solicitação da entrega das várias quantias a três títulos distintos, com os pretextos e finalidades indicados, todos conjuntos e todos integrados na construção do erro ou engano - e determinou, no mesmo momento e na mesma unidade, a entrega da totalidade do montante: acção que decorreu em 26 de Março de 1992, com a entrega, determinada pela actuação do arguido, a ter lugar em 1 de Abril de 1992.
Logo de seguida, a 2 de Abril de 1992, o arguido depositou na sua conta bancária as importâncias recebidas, e nos dias seguintes gastou-as em proveito próprio, através de cheques que "sacou dias depois, ainda venc. mês de Abril".
Não obstante a mais extrema fungibilidade dos bens ou valores entregues (o dinheiro e títulos imediatamente descontáveis), o que resulta da matéria provada é que, logo naquela ocasião, o arguido quis fazer seu o dinheiro recebido, não exteriorizando qualquer intenção de satisfação dos danos a que se pretenderia ter obrigado.
Dos factos provados, na interpretação que faço, resulta, assim, que houve logo nesse momento, o enriquecimento ilegítimo, que foi a finalidade do pedido e que remeteu da satisfação de tal pedido, por erro ou engano do lesado "astuciosamente provocado".
Assim, e não obstante, como referia a extrema fungibilidade do bem, parece por demais artificial construir (também) um crime de abuso de confiança em que o elemento essencial - a inversão do título de posse - apenas teria ocorrido mais de 3 anos e meio depois da entrega (após 30 de Janeiro de 1996), período de latência que se revela, nas concretas circunstâncias, contraditório com o facto dos gastos, em proveito próprio, logo no mês de Abril de 1992.
Um tal período de latência não é, o domínio dos factos e da razoável interpretação dos factos, compatível com o pedido de entrega, o estratagema urdido e com a prova quanto ao tempo em que se considera terem ocorridos os gastos em proveito próprio.