COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL CÍVEL
GESTÃO PÚBLICA
Sumário

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - "A", intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra "B - Instituto para a Construção Rodoviária", pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um prédio misto composto de casa, terra de cultura e dependências agrícolas e a condenação do R. a desviar a captação e orientação das águas pluviais recolhidas na Variante à E. N. 11, de forma a que as mesmas não sejam orientadas (ou canalizadas) para a propriedade do A., bem como a indemnizá-lo pelos prejuízos sofridos, em montante não inferior a 3 100 contos, e pelos decorrentes da continuação da actuação, a liquidar em execução de sentença.

Na contestação, o R. arguiu a excepção da incompetência material do tribunal comum para conhecimento da causa, cabendo a mesma aos tribunais administrativos, dado tratar-se de acção destinada a efectivar a responsabilidade civil do R., que é um instituto público e praticou o acto de que emerge o litígio na realização de uma função pública e visando a prossecução dum interesse público.

No despacho saneador teve-se por incompetente a jurisdição comum, por competente o foro administrativo, mas a Relação, mediante recurso dos AA., revogou a decisão, julgando competente o tribunal a quo.

Agora agrava o "IEP - Instituto das Estradas de Portugal", que entretanto incorporou, por fusão, o "B", para pedir a reposição da declaração de incompetência do tribunal comum.
Para tanto, faz constar das conclusões:
- O R. é um Instituto Público que representa o Estado como autoridade nacional das estradas em relação às infra-estruturas rodoviárias concessionadas e não concessionadas;
- Uma das suas atribuições fundamentais é assegurar a concepção, a construção, a conservação e a exploração da rede rodoviária nacional - art. 4.º do Estatutos, em anexo ao DL 237/99, de 25/6;
- A execução de toda a empreitada está subordinada a regras de direito público, no caso o DL 405/93, de 10/12;
- Como alega o A. na sua p. i., o R. levou a efeito durante o biénio 1999/2000 todo um conjunto de obras públicas de construção da estrada de Acesso de Baião ao IP4 1.ª Fase, elencado nos arts. 3.º a 12.º um conjunto de factos que, como refere no art. 3.º, integram uma "obra pública" sendo necessariamente dela decorrentes;
- A construção de "Acessos de Baião ao IP4" insere-se no âmbito de atribuições da "B", com vista à prossecução dos seus fins e do interesse público, sendo actos de gestão pública;
- É, pois, da competência dos tribunais administrativos conhecer da responsabilidade da "B", por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, por determinação do art. 51.º-1-h) do ETAF.
Os Agravados apresentaram resposta em defesa da manutenção do julgado na Relação.

2. - A questão a resolver consiste em saber se a competência para o conhecimento do objecto da causa pertence ais tribunais administrativos por, designadamente, os factos alegados integrarem um acto de gestão pública.

3. - Elementos a considerar.

- O "B" é um Instituto Público, tutelado pelo Ministério do Equipamento Social, em cujas atribuições se inclui a construção de estradas;
- O Autor funda a sua pretensão na ofensa ao seu direito de propriedade perpetrada pelo Réu através da colocação de um colector de recolha de águas das valetas da estrada nas proximidades do prédio do A., colector esse que esgota e lança, através de tubagem ou de outros colectores intermédios, todo o caudal que recebe da Variante à EN 211, com areia e entulho, para a propriedade do A., causando-lhe prejuízos, condução de águas que teve lugar na execução da construção da Variante, como parte integrante da obra pública da construção de estradas de Acesso de Baião ao IP4.

4. - Mérito do recurso.

A competência em razão da matéria afere-se, em princípio, pelos termos em que o autor propõe ao tribunal que decida a questão, configurada pela qualidade ou natureza das partes, pelo pedido e pela causa de pedir.

Segundo os arts. 18 da LOFTJ (Lei 3/99, de 13/1) e 66.º CPC, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais.
Assim, a atribuição de competência a tribunal de jurisdição especial depende da verificação de um duplo pressuposto: - o objecto da acção e a existência de uma norma específica atributiva de competência à jurisdição especial.
Daí que a competência dos tribunais comuns seja genérica ou residual, cabendo-lhes conhecer de todas as causas que não esteja atribuídas por lei a alguma jurisdição especial.

No presente caso, está em causa, como se referiu, a competência dos tribunais administrativos.
A competência dessa jurisdição encontra-se prevista e regulada nos arts. 212.º-3 da Constituição da República e nos arts. 3.º, 4.º e 51.º do ETAF (DL n.º 129/84, de 27/4).
Aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, competindo-lhes, nomeadamente, conhecer das acções sobre responsabilidade civil dos entes públicos e dos titulares dos seus órgãos ou agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso, do mesmo passo que lhes é retirada competência para conhecimento de acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público (arts. 212.º-3 e 3.º, 4.º-1 e 51.º-1-h) cit.).

Reportando-nos ao caso concreto, o que se constata é que o Autor imputou ao Réu a violação do direito de propriedade, reclamando indemnização, invocando, para o efeito, uma conduta deste que, integrada na execução de uma obra pública, está a produzir resultados que lhe causam prejuízos, ofendendo o conteúdo do seu direito de propriedade.
De notar que a obra executada nem sequer tem contacto com o prédio do A. onde se produzem os danos. Os colectores e respectiva tubagem situam-se fora dos seus limites. O que acontece é que, no funcionamento a que foi destinado, esse sistema de drenagem, ora pela sua orientação, ora por inexecução de obras complementares de defesa, repercute acção lesiva na propriedade do Autor.

Assim, temos por adquirido que a invocada violação do direito de propriedade, pressuposto da responsabilidade e da obrigação de indemnizar, é um facto, consequência do modo como foi executado o sistema de drenagem, integrante da obra pública de construção dos "acessos de Baião ao IP4".
Tal obra, ou conjunto integrado de obras foi, ninguém o discute, levado a cabo pelo R. "B", que é um Instituto Público tutelado pelo Ministério das Obras Públicas, no exercício das suas atribuições.
Trata-se, pois, de acto praticado por sujeito integrado na actividade da Administração, ou seja, por um ente público.

Resta, então, apurar se actuou também sob a veste e formas de direito público.
Como actos de gestão pública tem sido considerados os praticados pelos órgãos ou agentes da administração, no exercício de um poder público, ou seja no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção ou, por outras palavras, praticados no exercício de uma função pública para fins de direito ou interesse público e regidos por norma de direito público que atribuem à pessoa colectiva pública poderes de autoridade para tais fins.
Actos de gestão privada, por sua vez, serão os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração, em que esta aparece despida do poder público, numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam e, daí, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com inteira submissão às normas de direito privado - Acs. do Tribunal de Conflitos de 5/11/81 e 15/12/92, in BMJ 311.º-202 e 422.º-75; VAZ SERRA, RLJ 110.º-315.

Qualificar um certo acto ou facto produtor de efeitos danosos numa ou noutra das categorias em causa significa, na prática, averiguar se aquele acto ou facto se enquadra numa actividade regulada por normas de direito civil (ou de outro ramo do direito privado) ou de direito administrativo.

A razão de existência dos tribunais administrativos, como tribunais comuns em matéria administrativa, não assenta já no privilégio de um foro privativo da administração, mas "na vantagem de uma especialização material dos órgãos jurisdicionais" (FREITAS DO AMARAL, "Direito Administrativo", 1989, III. 489).
Por isso, como se escreveu no acórdão deste STJ de 19/11/002 (Ag. 3291), porque compete aos tribunais administrativos o julgamento das causa que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, resultou esvaziado de muito do seu conteúdo o conceito tradicional de acto de gestão pública, só interessando à justiça administrativa as "relações jurídicas administrativas públicas", as reguladas por normas de direito administrativo, aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista a realização de um interesse público legalmente definido.
Essencial para que seja considerada de gestão pública a actividade da Administração é que "se destine a realizar um fim típico ou específico dele, com meios ou instrumentos também próprios do interesse público".

Os contornos desta acção reflectem a prática de factos que integram um ilícito civil gerador de responsabilidade extracontratual - a ofensa do direito de propriedade privada -, regulada por normas de direito civil (arts. 1305.º, 483.º e 501º C. Civil).
Trata-se das consequências de actos materiais ou de execução técnica em que, estando embora esses actos integrados numa actividade da Administração, não se pode de forma alguma dizer que aquelas consequências nefastas que vieram a produzir se possam incluir na realização do fim típico do órgão ou na prossecução do interesse colectivo.
A sua única conexão com uma relação jurídica administrativa é a natureza de um dos sujeitos.
A fonte da relação jurídica em litígio é, na verdade, um facto integrado numa actividade não jurídica, numa das sua manifestações ou consequências, que, por ausência daqueles elementos referidos como essenciais à qualificação da gestão pública, deve integrar-se na categoria de acto de gestão privada.

Devem, consequentemente, estar sujeitas a regras idênticas às aplicáveis a quaisquer sujeitos de direito privado.

Nesta conformidade, julga-se que o conhecimento da matéria da acção não cai na reserva prevista no art. 51.º-1-h) do ETAF, mas, antes no âmbito da competência residual e genérica dos tribunais judiciais.
Neste sentido se vem pronunciando este STJ, podendo ver-se, além do acórdão citado, o mais recentemente proferido em 2/12/002, no Agravo 3 990/02, também desta secção e os que aí se indicam (de 27/9/01 e 27/11/01, proc. 2516/01 e 2984/01, respectivamente).

5. - Termos em que se decide negar provimento ao agravo.

Não há lugar a custas, porque delas isenta a Recorrente.

Lisboa, 27 de Maio de 2003
Alves Velho
Moreira Camilo
Lopes Pinto