PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
NOTIFICAÇÃO
DESPACHO DE PRONÚNCIA
BURLA AGRAVADA
CONSUMAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
CHEQUE
Sumário

1ª- O bem jurídico protegido no crime de burla é o património, constituindo a burla um crime de dano que se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passiva da infracção ou de terceiro.
2ª- O prejuízo patrimonial, enquanto elemento do tipo objectivo de burla e requisito da consumação do crime, consiste numa diminuição da posição económica do lesado em relação à posição em que se encontraria se não tivesse sido induzido em erro ou engano e realizado a conduta determinada por tal erro ou engano.
3ª- A entrega de um cheque pelo lesado não produz, enquanto tal, diminuição patrimonial do sacador, que apenas se verifica quando houver efectivo pagamento pelas disponibilidades da provisão, consumando-se o crime apenas neste momento.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. O Ministério Público acusou em processo comum (NUIPC-1095/97.8TDPRT - Tribunal de Círculo do Porto - 4ª Vara Criminal) os arguidos A, B, C, D, E e F da prática de um crime de burla agravada, previsto e punido nos artigos 313º, nº 1, e 314º, alínea c), do Código Penal (versão de 1982), e nos artigos 217º,nº 1, e 218º, nº 2, alínea c), na versão de 1995.
Na 1ª sessão da audiência de julgamento, o Exmº. Magistrado do Mº. Pº. requereu a extinção do procedimento criminal por considerar ter decorrido o prazo de prescrição, invocando, em resumo, que a acusação, acolhida inteiramente pela decisão instrutória que pronunciou os arguidos, refere que os cheques, em que se substanciaria o prejuízo patrimonial da lesada, foram entregues aos arguidos em 6 de Fevereiro de 1991, sendo nesta data que os assistentes abriram mão de tais títulos, mesmo dos previamente datados de 31 de Julho de 1991, não se imputando «na acusação a qualquer dos arguidos facto gerador que os faça incorrer em responsabilidade criminal, nessa data de 31.7.1991».
No requerimento ditado para a acta, o Mº Pº considera que «da acusação (bem como dos documentos que a suportam [...]), resulta que a obrigação assumida pelos contratantes começou a ser cumprida [no] dia "2.2.1991", com a assinatura do contrato de compra e venda (precedente de anterior "contrato de promessa" [...]), mediante o pagamento de preço contra a correlativa entrega das acções. A transmissão dos mencionados cheques, datados de "6.2.1991" e "31.7.1991", constituiu o pagamento de parte do preço acordado, ainda que com diferimento no tempo quanto a estes e conforme a vontade expressamente manifestada pelas partes, que nele outorgaram». «Tal declaração de vontade foi determinante para os termos em que o contrato foi assinado em "2.2.1991" e consequente consumação do crime de burla que aos arguidos se imputa».
Termina por salientar que, na perspectiva que sustenta, «relativamente a cada um dos arguidos (...) não se vislumbra que tenha ocorrido qualquer causa de suspensão ou interrupção do procedimento criminal e até àquela data, que [reputa] como de consumação do imputado crime» - artigos 119º e 120º do Código Penal.
O Tribunal Colectivo, pronunciou-se sobre a questão suscitada, aceitando «as razões de facto e de direito expendidas» pelo Mº Pº, e julgou extinta em 2 de Fevereiro de 2002 a «responsabilidade e o procedimento criminal de cada um dos seis arguidos, pronunciados em 7/2/01, pela co-autoria material, em 2/2/91, de factos constitutivos de um crime (doloso) de burla então agravada, p. e p. nos art°s 313°, n° 1, e 314°, alínea c), do CP 82, e desde 01.10.95 burla qualificada p. e p. aos arts 217º, nº 1, e 218°, nº 2, alínea a), do CP/95, com a consequente preclusão da continuação da audiência da apreciação do pedido civil», determinando o arquivamento.

2. Não se conformando com o assim decidido, a assistente interpôs recurso para o Supremo Tribunal, que motivou terminando com as seguintes conclusões:
- Tratando-se de um crime de burla qualificada, pela extensão do prejuízo, p. e p. nos arts. 313° e 314°, alínea c), do Código Penal de 1982, e 217° e 218,° n° 2, alínea a), ambos do Código Penal actual, integra o tipo de ilícito o conhecimento integral do dano causado, consubstanciado nas diversas transferências patrimoniais tituladas pelos correspondentes cheques entregues pela assistente aos arguidos;
- Porque tais transferências se consubstanciaram em 6 cheques, com datas diversas, só a partir da movimentação do último, após 31/07/91, se inicia a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal;
- Ainda que assim se não entenda, e entendendo-se pelo contrário que as transferências patrimoniais ocorridas posteriormente à primeira, coincidente com o 1° cheque, não relevam para efeitos de consumação do crime, que se consuma com aquela, sempre teriam que relevar para efeitos de avaliação da extensão do prejuízo da vítima e correspondente enriquecimento dos arguidos, razão porque o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar, ou seja, após 31/7/91 (art.119° n° 4, do Código Penal);
- Consequentemente, e tendo em atenção a data da última deslocação patrimonial (31/7/91), conclui não ter ocorrido prescrição do procedimento criminal, o que só teria ocorrido (a não ter havido interrupção) em 31/7/01.
A recorrente entende, assim, que ao não decidir em conformidade com o exposto, a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 313°e 314°, alínea c), e 118°, n° 4, ambos do Código Penal de 1982, atenta a data de prática dos factos, e arts. 217°, 218°, n° 2, alínea a), e 119°, n° 4, do Código Penal actualmente em vigor.
Termina pedindo que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que decida não ter ocorrido a prescrição, determinando o prosseguimento do processo com a designação de data para julgamento.
O Mº Pº e os arguidos responderam à motivação, pronunciando-se pelo não provimento do recurso.

3. No tempo processual adequado, foi interposto pelos arguidos recurso da decisão instrutória que os pronunciou e desatendeu a então invocada prescrição do procedimento criminal, restrito à questão da prescrição.
Este recurso, interposto para o Tribunal da Relação, foi admitido com efeito devolutivo, com subida diferida, devendo subir com o recurso que eventualmente pusesse termo à causa.

4. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção processual a que se refere o artigo 416º do Código de Processo Penal, considerou nada obstar ao conhecimento do recurso da assistente, e emitiu opinião no sentido de não ser conhecido o recurso dos arguidos interposto da decisão instrutória.
Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à Conferência (artigo 419º, nº 4, alínea c), do Código de Processo Penal), cumprindo decidir.
No que respeita ao recurso dos arguidos, não há que dele conhecer, uma vez que os arguidos não têm legitimidade para recorrer da decisão que pôs termo ao processo (artigo 401º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal) e, assim, não podia ser cumprido o disposto no artigo 412º, nº 5, do mesmo diploma, por falta de interesse em agir.
Há, assim, que conhecer apenas do recurso interposto pela assistente e da questão nele suscitada, que é a de saber se, considerando os factos constantes da acusação, aceites pela pronúncia, ocorreu a prescrição de procedimento criminal.
Da acusação deduzida contra os arguidos, constam os seguintes factos:
- Entre os anos de 1990 e 1991, os arguidos A e B eram, simultaneamente, sócios e gerentes da sociedade por quotas, denominada "I";
-A arguida D exercia, também, as funções de gerente da mesma sociedade, em representação de "J", terceira sócia da referida I;
- Por sua vez, o arguido E era, na mesma data, sócio da sociedade por quotas "L", sendo as funções de gerência exercidas por este arguido, conjuntamente com as arguidas D e N, esta última em representação, uma vez mais, da "J", sócia maioritária da L ;
- Também por escritura de 20 de Abril de 1990, foi constituída uma sociedade anónima, que adoptou a firma "M", com um capital social de 60.000.000$00 - representado por 60.000 acções do valor nominal de 1.000$00 cada uma - tendo o arguido A outorgado em representação da I, o arguido E, em representação da L, e a arguida F, entre outros, outorgado por si própria;
- O Conselho de Administração da M era constituído pelos arguidos B, A e F, para além de outro indivíduo;
- No que respeita às 60.000 acções, 10.800 eram detidas pela firma L e 19.800 pela I, o que equivalia a um total de 30.600 acções representativas de 51% do Capital Social da M;
- Por outro lado, entre os meses de Setembro e Outubro de 1990, a Administração da M decidiu adquirir todas as quotas de uma outra sociedade, denominada "O", constituída em 1968, tendo-se assumido aquela, a partir de 18 de Outubro de 1990, como única sócia desta última que passou a ser gerida pela F e pelo arguido A que, por sua vez, também geria a I e administrava a M;
- Era, portanto, do conhecimento público, em geral, e do conhecimento de todos os arguidos, em particular, que, quem adquirisse as 30.600 acções "M" passaria a ser único sócio na O e sócio maioritário na M, podendo, desta forma, controlar o Capital Social destas duas sociedades que se dedicavam à indústria e comércio de extracção, tratamento e transformação de argilas e outros produtos inertes;
- Contudo, não era do conhecimento público que estas sociedades se encontravam em situação económica muito difícil, com prejuízos elevadíssimos, na ordem dos largos milhares de contos;
- Este facto, por si só, seria suficiente para afastar qualquer comprador, eventualmente interessado na aquisição de tais acções;
- Ignorando, porém, tal facto, em finais de 1990, G e H, ambos sócios da sociedade "P, mostraram-se interessados em adquirir as aludidas acções, no valor nominal de 1.000$00 cada uma, tendo, para o efeito, contactado os sócios e gerentes da L e da I, a quem indagaram, antes de mais, da situação económico financeira da M e da O;
- Actuando de comum acordo, entre si, e com a arguida F - que, além de sócia, era também responsável pela administração da M e pela gerência da O - os arguidos A, B, N, E e D decidiram, desde logo, esconder a situação económica real destas duas empresas e fazer crer aos referidos interessados compradores que ambas eram altamente rentáveis e lucrativas;
- Na verdade, e desde esta altura, tendo vislumbrado uma hipótese de se apropriarem de avultadas quantias, em dinheiro, através da venda das acções "M", cujo valor era praticamente nulo, todos os arguidos, de comum acordo e em conjugação de esforços, decidiram arquitectar um estratagema que convencesse os queixosos G e H a levar para a frente o pretendido negócio, fazendo-lhes crer que o mesmo seria realmente vantajoso;
- Para o efeito, decidiram, em conjunto, emitir facturação falsa relativa ao ano de 1990, de modo a inflacionar, ficticiamente, o volume de vendas da O;
- Em meados de Janeiro de 1991, os arguidos A, B, N, D, E e F, entregaram aos queixosos G e H o balanço e demonstração de resultados da M e da O» referentes ao exercício desta segunda empresa, no montante de 44.314.116$00;
- Convencidos de que tais documentos espelhavam a real situação económico financeira das aludidas empresas que, também de acordo com as informações de todos os arguidos, era florescente, os queixosos decidiram-se pela compra das 30.600 acções "M", pelas quais aceitaram pagar quantia de 70.000.000$00 que lhes foi pedida pelos arguidos;
- Deste modo, em 2 de Fevereiro de 1991, na cidade do Porto, foi assinado, entre a I, a L e P, um contrato de compra e venda das referidas acções, pelo preço global de 70.000.000$00, quantia que foi liquidada da seguinte forma:
1. Um cheque, no valor de 12.350.000$00, entregue ao arguido E, em 17 de Janeiro de 1991;
2. Um cheque, no valor de 22.650.000$00, entregue ao arguido B, na mesma data;
Dois cheques, no valor de 11.325.000$00, cada um, emitidos à ordem da I, em 6 de Fevereiro e 31 de Julho de 1991, e entregues na data da assinatura do contrato, 2 de Fevereiro de 1991;
3. Dois cheques, no valor de 6.175.000$00, cada um, emitidos à ordem da L, em 6 de Fevereiro e 31 de Julho de 1991, entregues na data de assinatura de contrato;
- Não fora, porém, a facturação fictícia, a O teria apresentado um prejuízo na ordem dos 24.000.000$00, aproximadamente; - Ao actuarem da forma descrita, os arguidos fizeram-no com intenção de se apropriaram, indevidamente, dos 70.000.000$00, como efectivamente veio a acontecer, tendo causado, aos queixosos G e H, e à firma P um prejuízo de igual montante.
A decisão instrutória que pronunciou os arguidos remeteu-se para os factos constantes da acusação, considerando, no entanto, que os cheques emitidos com data de 31 de Julho de 1991, não foram descontados antes desta data.

5. A regra fundamental quanto à determinação do momento a quo do prazo de prescrição do procedimento criminal, estabelecida no artigo 119º, nº 1, do Código Penal, na actual redacção, e do mesmo modo no artigo 118º da redacção originária, é a de que tal momento coincide com a consumação do crime: «o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado».
As disposições dos nºs. 2 a 4 desta norma, por seu lado, referem-se a situações específicas que explicitam ou excepcionam o princípio decorrente da regra base. Nos crimes permanentes a prescrição só corre desde o dia em que cessar a consumação; nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto de execução (nº 2, alíneas a), b) e c)); no caso de cumplicidade, atende-se sempre ao facto de autor (nº 3); e «quando for relevante a verificação de resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar» (nº 4).
A consumação constitui, assim, por regra, o primeiro elemento determinante para a decisão sobre a prescrição do procedimento criminal.
O facto previsto na lei como crime diz-se consumado quanto tiverem sido praticados os actos de execução que realizam e integram os elementos constitutivos do tipo legal de crime, produzindo as consequências previstas que integrem o respectivo tipo; a consumação é a execução acabada e completa e a integração por inteiro dos elementos do tipo objectivo, a que pertencem sempre, além da menção do sujeito activo, a descrição de uma acção típica com a indicação do resultado (nos crimes de resultado) ou com a simples descrição da actividade (nos crimes de mera actividade).
Em certas espécies ou tipos de crimes assumem igualmente relevância elementos subjectivos do tipo, que fundamentam e reforçam o juízo de desvalor do facto. De entre a sistematização dos tipos com elementos subjectivos, destacam-se os delitos de intenção, que são aqueles em que a intenção subjectiva do agente é dirigida a um resultado que vai além do tipo objectivo; entre estes estão os crimes de tendência interna transcendente, onde se incluem os crimes de resultado cortado, em que se produz um resultado que vai além da acção típica, mas é produzido por esta sem uma segunda acção adicional (cfr., v. g., CLAUS ROXIN, "Derecho Penal, Parte Geral", Tomo I, "Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito", tradução (1997) da 2ª edição alemã de 1994).
A determinação do momento da consumação depende, por isso, da estrutura do tipo de crime que esteja em causa (de resultado, de perigo, de resultado cortado), sendo a consumação um conceito formal, que pode, conforme a diversa estrutura do tipo, ter lugar em momentos diversos, não coincidentes com a finalização (a realização da finalidade do agente) ou com a terminação, exaurimento ou consumação material do crime.
Assim sucede nos já referidos crimes de resultado cortado, ou de resultado parcial, de que a burla é um exemplo, que se caracterizam por uma "descontinuidade" ou "falta de congruência" entre correspondentes tipo objectivo e subjectivo (cfr., v. g., A. M. ALMEIDA COSTA, Anotação ao artigo 217º, in, "Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, págs. 277).

6. Importa, pois, determinar em que momento é que se consumou (se consumou segundo a perspectiva em que a pronúncia descreve os factos que é, nesta fase, a única dimensão processualmente relevante) o crime por que os arguidos estão acusados. Para tanto, é necessário analisar a estrutura do tipo legal que está em causa.
A construção do tipo legal de burla, descrito no artigo 217º, nº 1, do Código Penal, supõe a concorrência de vários elementos, todos constituindo os seus elementos típicos: a indução em erro ou engano de uma pessoa (o lesado), fazendo com que esta pratique actos que lhe causem (ou a terceiro) prejuízos de carácter patrimonial. O erro ou engano provocado com astúcia; a prática pelo lesado de actos que lhe causem prejuízo; e o prejuízo de carácter patrimonial causado por aqueles actos do próprio lesado induzido em erro ou enganado, são, assim, os elementos do tipo objectivo do crime de burla, que, em consequência, se preencherá e consumará quando todos estes elementos se tiverem verificado (cfr., v. g., MARIA FERNANDA PALMA e RUI CARLOS PEREIRA, "O crime de burla no Código Penal de 1982-95", na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV, 1994, págs. 321, ss.).
Releva neste aspecto, porque está especificamente questionado no caso objecto da decisão recorrida, o elemento, que integra o tipo objectivo - o último no lógica sequencial de construção do tipo - do prejuízo de carácter patrimonial.
O bem jurídico protegido no crime de burla é o património, constituindo a burla um «crime de dano, que se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro», como decorre directamente da própria descrição do artigo 217º, nº 1, do Código Penal.
A burla constitui, também, «um crime material ou de resultado, que se consuma com a saída das coisas ou valores da esfera da "disponibilidade fáctica" do sujeito passivo ou da vítima; sendo um "crime com participação da vítima", onde o resultado, ou seja, a saída das coisas ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo titular resulta de um comportamento do próprio sujeito passivo, a consumação ocorre quando este resultado se verificar, isto é, quando ocorrer o empobrecimento patrimonial de lesado. Embora se exija a intenção do agente de obter para si (ou para outrem) um enriquecimento, a burla constitui um crime de resultado parcial ou cortado, já que elemento relevante para a consumação não é a concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito, ao nível do tipo objectivo, que se observe o empobrecimento (=dano) da vítima.
A consideração deste elemento subjectivo permite, como se salientou, qualificar a burla como um crime de resultado cortado ou parcial, não havendo «coincidência na extensão dos elementos objectivos e subjectivos do tipo: no plano objectivo basta o prejuízo patrimonial da vítima (ou de terceiro); ao nível subjectivo requer-se uma intenção de enriquecimento que não carece de concretização objectiva» (cfr., MARIA FERNANDA PALMA e RUI CARLOS PEREIRA, op. cit, pág. 323).
A consumação do crime exige, pois, o resultado consistente na saída dos bens ou valores da disponibilidade fáctica do legítimo titular, com a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro» (cfr. A. M. ALMEIDA COSTA, op. cit., págs. 276-277).

7. O efectivo prejuízo patrimonial (do sujeito passivo ou de terceiro) deve, por seu lado, ser delimitado pela referência ao bem jurídico protegido no crime de burla. Há, por isso, que determinar qual o conteúdo de património relevante para este efeito, dada a verdadeira natureza do crime de burla como crime contra o património.
A natureza do crime e os valores que protege apontam para um conceito específico jurídico-criminal de património (superando perspectivas estritamente económicas ou jurídicas), entendido como o conjunto de todas as "situações" ou "posições" com valor económico detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica; ou a globalidade dos bens economicamente valiosos que uma pessoa detém com a aquiescência da ordem jurídica (cfr. ALMEIDA COSTA, loc. cit., págs. 283 e segs.).
O "prejuízo patrimonial", enquanto elemento do tipo objectivo e, por isso, requisito da consumação do facto, tem de ser, pois, identificado com um conceito objectivo-individual de dano patrimonial, que traduza uma diminuição da posição económica efectiva da lesado em relação à posição em que se encontraria se não tivesse sido induzido em erro ou engano e realizado a conduta determinada por tal erro ou engano.
Nesta compreensão, que resulta directamente da construção do tipo objectivo de burla no Código Penal, não basta para a consumação do crime a entrega de dinheiro ou móveis, ou quaisquer fundos ou títulos, exigindo-se a verificação indispensável de um efectivo prejuízo patrimonial: só há burla consumada quando se verifica um prejuízo patrimonial.
O prejuízo patrimonial relevante corresponde, assim, a um empobrecimento do lesado, que vê a sua situação económica diminuída, e efectivamente diminuída quando comparada com a situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido a situação determinante da lesão. A medida do empobrecimento efectivo será, deste modo, avaliada pela diferença patrimonial entre o "antes" e o "depois", tendo como contraponto económico-material (e não típico nem jurídico) o enriquecimento, próprio ou de terceiro, procurado pelo agente do crime.
Com efeito, o crime de burla constitui, como se referiu, um delito de intenção em que o agente procura obter um "enriquecimento ilegítimo" à custa de uma transferência de natureza ou efeitos patrimoniais. Embora este elemento não faça parte do tipo objectivo, que se preenche logo com o prejuízo patrimonial (empobrecimento) do lesado, integra o tipo subjectivo do crime de burla e, quando ocorra, ou na medida em que possa ocorrer, constitui uma referência, de simetria ou de reverso, da medida correspondente do empobrecimento do sujeito passivo ou de terceiro.
O prejuízo patrimonial (o empobrecimento) do sujeito passivo ou de terceiro, como elemento que faz consumar o crime de burla, há-de ser, assim, determinado pela aplicação dos referidos critérios objectivos às circunstâncias particulares de cada caso.

8. Dos factos que constam da pronúncia (que assumiu integralmente a acusação) interessa, a este propósito, salientar que a assistente, por intermédio dos seus gerentes, entregou seis cheques para pagamento da sua prestação no contrato celebrado em 2 de Fevereiro de 1991:
- um cheque no valor de 12.350.000$00 entregue em 17 de Janeiro de 1991 ao arguido E;
- um cheque no valor de 22.650.000$00 entregue na mesma data ao arguido B;
- um cheque no valor de 11.325.00000 emitido em 6 de Fevereiro de 1991 à ordem de I;
- um cheque no valor de 6.175.000$00 emitido na mesma data à ordem da L;
- um cheque no valor de 11.325.000$00 emitido com a data de 31 de Julho de 1991 à ordem de I;
- um cheque no valor de 6.175.000$00 emitido com esta mesma data à ordem de L, todos estes entregues aos arguidos em 2 de Fevereiro de 1991.
Deste modo, e de acordo com o complexo de facto constante da pronúncia, o prejuízo patrimonial resultante da actuação da lesada em consequência do engano provocado pelos arguidos, está conformado pelo pagamento do montante de (ao tempo) 70 milhões de escudos através dos referidos cheques.
É, assim, essencial determinar qual o elemento relevante (e em que momento ocorreu) para fixar e situar o prejuízo patrimonial da lesada entre a alternativa que é colocada: a entrega dos cheques ao tomador, ou o efectivo desconto após a apresentação a pagamento.
A solução convoca uma passagem, na estrita necessidade metodológica, pelo regime jurídico do cheque, e a aproximação do resultado ao conceito de património relevante para os efeitos específicos de integração do crime de burla.

9. O cheque, título de crédito cujos elementos estão enunciados no artigo 1º da Lei Uniforme sobre Cheque (LU), é um título cambiário, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um Banco, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, de pagar à vista a soma nele inscrita.
Nos termos do artigo 3º da LU, o cheque é sacado sobre um Banco que tenha fundos à disposição do sacador, e em harmonia com a convenção expressa ou tácita segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque.
Na base da emissão do cheque estão, assim, duas relações jurídicas: a relação de provisão e o contrato ou convenção de cheque; a relação de provisão, qualquer que seja a modalidade que possa revestir, tem por efeito por à disposição de alguém fundos que se conservam na posse de um Banco; a convenção de cheque constitui um acordo (expresso ou tácito) através do qual o Banco acede a que o titular da provisão mobilize os fundos por meio da emissão de cheques (cfr., v. g., FERRER CORREIA e ANTÓNIO CAEIRO, "Recusa da pagamento de cheque pelo Banco sacado; responsabilidade do Banco face ao portador", Anotação na Revista de Direito e Economia, Ano IV, nº 2, Julho-Dezembro de 1978, pág. 457).
Sendo um título cambiário, literal, formal e abstracto, a falta de provisão não invalida o cheque - dispõe também o artigo 3º da LU.
O cheque é, pois, um título de crédito que contém uma ordem, dirigida a um Banco, de pagamento da quantia nele inscrita a favor do tomador. A natureza do cheque como título literal, formal, autónomo e abstracto, pressupõe e gera uma série de relações jurídicas, cruzadas, que na medida do respectivo conteúdo se projectam no complexo de direitos e deveres dos sujeitos cambiários: a obrigação de Banco de pagar pela disponibilidade da provisão do sacador; a sujeição deste à retirada, pelas forças da sua provisão, do montante inscrito no cheque; a responsabilização do sacador perante o tomador no caso de inexistência de provisão; e o direito do tomador a apresentar o título a pagamento e a receber do Banco o respectivo montante.
São, porém, consequências primeiramente jurídicas, com a criação recíproca de direitos e obrigações, e não imediatamente económicas com a adjunção concomitante de efeitos patrimoniais de aumento e diminuição. Na verdade, independentemente das relações subjacentes e da contabilização dos efeitos respectivos coligados a tais relações, o aumento patrimonial efectivo do tomador não se verifica antes do pagamento pelo Banco da quantia inscrita no cheque, e a diminuição (rectius, a alteração) patrimonial efectiva do sacador também não ocorre enquanto a sua provisão no Banco sacado não for descontada em consequência do pagamento do cheque.
Verifica-se, pois, nesta medida, uma descontinuidade entre a posição jurídica (entrega do título, o direito cartular) e a efectiva realidade material e económica (o recebimento efectivo por conta da provisão).
No que respeita à realidade subjacente, a situação sob apreciação não sofre, também, modificações na análise desta complexa natureza económico-jurídica com os relevantes reflexos que tem na específica dimensão penal.
A emissão e a entrega dos cheques constituiu, como vem referido, o modo pelo qual a assistente efectuou o pagamento da sua contraprestação no contrato de compra e venda que celebrou.
Porém, como se refere na decisão instrutória que pronunciou os arguidos, a entrega dos cheques não constitui uma datio in solutum (dação em cumprimento), mas antes uma dação pro solvendo (dação em função do cumprimento), com o regime previsto no artigo 840º, nº 1, do Código Civil: «se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito e na medida respectiva». A dação pro solvendo não tem, pois, por função a extinção da obrigação, mas apenas facilitar o cumprimento; a obrigação subsiste e só vem a extinguir-se com a satisfação do direito do credor, e na medida em que for satisfeita.
O cumprimento da obrigação contratual, que, no caso, constitui a conduta da lesada que será a causa do prejuízo patrimonial, ocorre, não com a entrega dos títulos, mas apenas no momento em que tal obrigação possa ser considerada satisfeita e na medida respectiva.
Deste modo, sendo a prestação da assistente de natureza pecuniária, a entrega dos cheques não poderia por efeito satisfazer o crédito do outro contraente, mas apenas se destinava a facilitar o cumprimento, que só se efectua quando e na medida em que o credor vir efectivamente satisfeita a prestação com a transformação efectiva do título em valor.
Transportando este efeito para a realidade económico-jurídica relevante para efeitos penais, a entrega dos cheques não produz, enquanto tal e apenas por si mesma, diminuição patrimonial do sacador; a diminuição patrimonial (hoc sensu) só se verifica quando houver efectivo pagamento pelas disponibilidades da provisão. E, do mesmo passo, só haverá enriquecimento (ilegítimo) quando o valor for transferido da provisão para a efectiva disponibilidade dos arguidos (ou de terceiro). (cfr., em sentido coincidente, embora a diversa perspectiva temática, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 24 de Março de 1999, proc. 1271/98).

10. O despacho de pronúncia, que define a vinculação temática no processo, diz a este respeito, interpretando a acusação, que a diminuição patrimonial consequente aos cheques datados de 31 de Julho de 1991 não ocorreu anteriormente a esta data. Esta compreensão resulta, aliás, do respeito pelos termos literais dos cheques e da normalidade resultante da convenção de cheque.
Não tendo havido, ou não estando provado nos termos indiciários da pronúncia que se tenha verificado a totalidade da efectiva diminuição (=dano) patrimonial antes de 31 de Julho de 1991 quanto ao valor titulado pelos cheques emitidos com esta data, o prejuízo patrimonial que se refere na acusação não se consumou antes desta data, pois só então se completou a diminuição patrimonial, no sentido económico, jurídico-económico e material (o empobrecimento) da assistente.
Saber se os factos ocorreram efectivamente assim é obviamente já matéria de julgamento, na sequência da produção de prova, valendo até esse momento a vinculação dos termos do thema decidendum definida pela pronúncia.

11. O prazo de prescrição do procedimento criminal do crime de burla qualificada, pelo qual os arguidos estão pronunciados, p. e p. nos artigos 217º e 218º do Código Penal, na redacção de 1995, e nos artigos 313º e 314º na redacção anterior, é de 10 anos, conforme dispõe o artigo 118º, nº 1, alínea b), do Código Penal na redacção de 199, e 117º, nº 1, alínea b), na redacção vigente ao tempo dos factos imputados aos arguidos.
A prescrição suspende-se e interrompe-se com a notificação do despacho de pronúncia, que constitui acto processual relevante para este efeito no regime em vigor ao tempo dos factos (artigos 119, nº 1, alínea b), e 120º, nº 1, alínea c), na redacção do Código Penal anterior a 1995), e suspende-se, no regime actualmente vigente, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido (artigo 120º, nº 1, alínea b), e interrompe-se com a notificação da acusação (artigo 121º, nº 1, alínea b)).
A acusação foi notificada aos arguidos em 16 e 20 de Dezembro de 1999, 4 e 5 de Janeiro de 2000 e 5 de Fevereiro de 2000, e a decisão que os pronunciou foi notificada em 7 de Fevereiro de 2001.
Foi, pois, praticado acto processual que tinha o efeito, em qualquer dos regimes que se sucederam no tempo, de interromper a prescrição do procedimento criminal antes de decorridos 10 anos desde o dia em que, segundo a pronúncia, o facto se consumou.
Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição, como dispunha o artigo 120º, nº 2, na redacção anterior, e dispõe o artigo 121º, nº 2, na actual redacção do Código Penal.
Não se verifica, assim, prescrição do procedimento criminal pelo crime por que os arguidos estão pronunciados.
Nestes termos, acordam neste Supremo Tribunal em conceder provimento ao recurso da assistente, revogando o despacho recorrido e determinando o prosseguimento da audiência de julgamento.
Não é devida taxa de justiça.

Lisboa, 4 de Junho de 2003
Henriques Gaspar
Antunes Grancho
Silva Flor