RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESUNÇÃO DE CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário

I - Um cruzeiro de pedra, que ruiu parcialmente, e causou lesões corporais num terceiro, é considerado "obra", para efeitos do art. 492 do C.C.
II - A regra geral é a de que a responsabilidade pelo dano recai sobre o dono ou possuidor da obra, salvo se provar que não houve culpa da sua parte , ou que o resultado danoso sempre se verificaria ( art. 492, nº1).
III - Mas responderá a pessoa obrigada a conservar a obra, em lugar do dono ou do possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação ( art. 492, nº2).
IV- Entre os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, figuram o facto voluntário e o nexo de causalidade entre o facto do lesante e o dano .
V- O facto voluntário, embora consista, em regra, numa acção, ou seja, num facto positivo, pode traduzir-se também num facto negativo, numa abstenção ou omissão.
VI - No nexo de causalidade entre o facto e o dano, a nossa lei adoptou a doutrina da causalidade adequada, que impõe, num primeiro momento, um nexo naturalístico e, num segundo momento, um nexo de adequação .
VII- Por mais criteriosa, deve reputar-se adoptada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais, atípicas, excepcionais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto.
VIII- Por isso, não basta que o evento tenha produzido, naturalisticamente, certo efeito, para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é ainda necessário que o evento danoso seja uma causa provável desse efeito.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :

Em 20-3-2000, A instaurou a presente acção ordinária contra a Igreja Paroquial de ... e IPPAR- Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, pedindo a condenação solidária de ambos no pagamento da quantia de 10.080.000$00, acrescida de juros, desde a citação, como indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu, decorrentes do facto de, no dia 25 de Maio de 1997, ter sido atingido no braço esquerdo, pela queda da parte superior ( horizontal) da cruz de um cruzeiro de granito, existente no adro da Igreja Matriz de ..., cuja conservação incumbe ao IPPAR., queda essa que resultou da referida parte horizontal da cruz não estar devidamente unida à parte vertical .
Os réus contestaram .
Para além da Igreja Paroquial de ... ter arguido a sua ilegitimidade, ambos os réus atribuíram a causa da queda da parte superior do cruz de granito ao facto do autor e de um grupo de amigos, celebrando o aniversário de um deles, terem subido ao patamar do cruzeiro para tirarem uma fotografia e se terem agarrado ao fuste da cruz e aos braços da mesma, que estavam bem unidos entre si, tendo ocorrido a queda da parte superior da cruz devido à pressão que exerceram sobre ela .
Houve réplica .
No despacho saneador, foi declarada a legitimidade da ré Igreja Paroquial de ... .
Prosseguindo o processo seus termos, com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, procedeu-se a julgamento.
Apurados os factos, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido .
Apelou o autor, mas sem êxito, pois a Relação do Porto, através do seu Acórdão de 13-1-02, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida .
Continuando irresignado, o autor recorreu de revista, onde resumidamente conclui :
1 - Atenta a matéria de facto provada, conjugada com as regras da experiência comum, retira-se a conclusão de que a cruz ruiu por defeito de conservação.
2 - Com efeito, resultando da matéria apurada que o B apenas encostou e apoiou os seus braços nos braços da cruz, outra conclusão não se pode retirar.
3 - Já que daí não se vislumbra qualquer conduta do B adequada a produzir a queda da cruz, a não ser no caso desta não se encontrar em normais condições de segurança e conservação
4 - Acresce que, nem o B, nem qualquer outro vulgar cidadão, poderia prever como possível a queda da cruz com um simples apoio e encosto dos seus braços, nos braços da cruz, quer ela seja do século XVII, quer até mais antiga .
5 - Ao recorrido IPPAR incumbia o dever jurídico de zelar pela conservação e segurança da Igreja Matriz de .... e respectivo adro, por força do disposto no dec-lei 120/97, de 16 de Maio.
6 - O acórdão recorrido fez uma errada interpretação da matéria factual provada .
7 - Foram violados os arts. 483, 486 e 492 do C.C. e os deveres jurídicos impostos ao IPPAR pelo dec-lei 120/97, de 16 de Maio .
8 - O acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que condene o IPPAR no pedido indemnizatório formulado .
O IPPAR contestou em defesa do julgado .
Corridos os vistos, cumpre decidir .
Remete-se para os factos que foram considerados provados no Acórdão recorrido - arts 713, nº6 e 726 do C.P.C.
Com interesse para a apreciação da questão do nexo de causalidade entre o facto e o dano, destacam-se, desde já, os seguintes:
1 - No dia 25 de Maio de 1997, pelas 23 horas, o autor e um grupo de amigos dirigiram-se ao adro da Igreja Matriz de ..., para tirarem uma fotografia, dado que um deles fazia anos .
2 - As pessoas referidas no anterior nº1, com excepção de duas delas (as testemunhas B e C), depois de chegadas ao adro, encostaram-se à base de uma cruz em pedra de granito, ali existente, para tirarem a referida fotografia, tendo momentos depois o autor sido atingido no seu braço esquerdo pela parte superior da cruz, a qual veio a cair .
3 - O amigo do autor, B, subiu para o patamar ou base da cruz, agarrando-se à coluna vertical e encostou e apoiou os seus braços nos braços da referida cruz.
4 - Em consequência do referido no anterior nº 3, a parte superior da cruz ruiu.
5 - À data dos factos, a cruz encontrava-se em equilíbrio, a sua base ou patamar e fuste fixos e a cabeceira e braços apoiados sobre o fuste, ficando a cabeceira aprumada em relação ao fuste .
6 - A cabeceira e os braços da cruz formavam um só bloco .
7 - O aludido cruzeiro é de granito, tem centenas de anos e encontra-se integrado na Igreja Matriz de Moncorvo, erigida no século XVII.

Vejamos agora o mérito do recurso:

O art. 492 do Cód. Civil dispõe o seguinte:
" 1 - O proprietário ou possuidor de edifício ou obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos .
2 - A pessoa obrigada, por lei ou por negócio jurídico, a conservar o edifício ou obra responde, em lugar do proprietário ou possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação ".
Não se questiona que o ajuizado cruzeiro seja considerado "obra", para efeito do disposto no citado art. 492 .
Com efeito, em tal conceito estão incluídos "os muros ou paredes divisórias dos prédios, as pontes, os aquedutos, os canais, as albufeiras, uma coluna, um poste, uma antena um andaime, etc. O que é necessário é que a obra esteja unida ao prédio ou ao solo e não se trate de uma coisa móvel, como um vaso colocado à janela" (Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 493).
A ruína pode ser total ou parcial.
Estão incluídas as partes componentes ou integrantes, que, caindo, causem prejuízos, como uma simples telha ou o pára-raios do edifício.
Também não vem posto em causa que o IPPAR fosse a entidade a quem competia o dever jurídico de velar pela conservação da Igreja Matriz da Torre de ..., onde se integra o respectivo adro - arts. 2º, nºs 1 e 2 , al. c) e g) e 20º , nº2, do dec-lei 106-F/ 92, de 1 de Junho, Mapa 2 , anexo a tal diploma, e arts. 2º, nºs 1 e 2 , al. g) e h) , 6º, nº1 e 7º, nºs 1 e 2 do dec-lei 120/97, de 16 de Maio.
À luz do art. 492, nº1, a regra geral é a de que a responsabilidade pelo dano recai sobre o dono ou possuidor da obra, salvo se provar que não houve culpa da sua parte, ou que o resultado danoso sempre se verificaria .
Nos termos do nº 2, responderá a pessoa obrigada a conservar a obra, em lugar do dono ou do possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação .
O mencionado art. 492 estabelece uma presunção de culpa, pelo que o lesado não tem de provar a culpa da entidade responsável pela conservação da obra que ruiu, que se presumirá .
Mas para que tal presunção funcione é necessário a prova de que a ruína foi devida a um vício de construção ou defeito de conservação.
E, para que o IPPAR responda, em lugar da Igreja Paroquial de ..., terá ainda de provar-se que os danos foram devidos exclusivamente a defeito de conservação .
Tal prova incumbe ao autor-lesado, pois incide sobre factos constitutivos do seu direito à indemnização - art. 342, nº1, do C.C.
A Relação considerou que o autor não logrou fazer essa prova e que a parte superior da cruz não ruiu por defeito de conservação, mas antes por acção do B, que subiu para o patamar ou base do cruzeiro, agarrou-se à coluna vertical e encostou e apoiou os seus braços nos braços da dita cruz, sendo em consequência dessa actuação que a parte superior da cruz caiu .
Daí que tenha negado provimento à apelação e confirmado a improcedência da acção.
Será assim ?
Entre os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, cuja regra base está contida no art. 483, nº1, do C.C., figuram o facto voluntário e o nexo de causalidade entre o facto do lesante e o dano .
O facto voluntário, embora consista, em regra, numa acção, ou seja, num facto positivo, pode traduzir-se também num facto negativo, numa abstenção ou omissão .
Mas as simples omissões só dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente de outros requisitos legais, exista, por força da lei ou de negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido - art. 486 do C.C.
Quer dizer, as omissões só geram responsabilidade civil, desde que se verifique um pressuposto específico, que é a existência de um dever jurídico da prática do acto omitido e, designadamente, desde que esteja presente o nexo de causalidade, por forma a que possa afirmar-se que o acto omitido teria seguramente ou com a maior probabilidade obstado ao dano (Antunes Varela; das Obrigações em Geral; Vol. I, 9ª ed, págs. 545/546; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., pág. 485; Pedro Nunes de Carvalho, Omissão e Dever de Agir em Direito Civil, 1999, págs 115, 116 e 137) .
No nexo de causalidade entre o facto e o dano, a nossa lei adoptou a designada doutrina da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão - art. 563 do C.C.
A propósito deste pressuposto, o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido no sentido de que, segundo a doutrina da causalidade adequada, consagrada no aludido art. 563 do C.C., para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, no plano naturalístico, que ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado e, depois, que em abstracto ou em geral, seja causa adequada do dano .
Com efeito, a teoria da causalidade adequada impõe, num primeiro momento, a existência de um facto naturalístico concreto, condicionante de um dano sofrido, para que este seja reparado.
Depois, ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, a teoria da causalidade adequada impõe, num segundo momento, que o facto concreto apurado seja, em abstracto e em geral, adequado e apropriado para provar o dano.
Tal significa que a doutrina da causalidade adequada determina que o nexo da causalidade co-envolva matéria de facto (nexo naturalístico: o facto condição sem o qual o dano não se teria verificado) e matéria de direito (nexo de adequação: que o facto, em abstracto ou geral, seja causa adequada do dano).
Se o nexo de causalidade constitui, no plano naturalístico, matéria de facto, não sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, já o mesmo vem a constituir, no plano geral e abstracto, matéria de direito, onde o Supremo Tribunal pode intervir, pois respeita à interpretação e aplicação do referenciado do art. 563 do C.C. (Ac. S.T.J. de 11-5-2000, Bol. 497-350; Ac. S.T.J. de 30-11-2000, Col. Ac. S.T.J., VIII, 3º, 150; Ac. S.T.J. de 21-6-2001, Col. Ac. S.T.J., IX, 2º, 127; Ac. S.T.J. de 15-1-2002, Col. Ac. S.T.J., X, 1º, 36).
Assim, no nexo de causalidade entre o facto e o dano, a ligação é feita, em último termo, mediante um nexo de adequação do resultado danoso à conduta, nexo de que este Supremo pode conhecer, por ser questão de direito.
Como ensina Galvão Telles (citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., 578) "determinada acção será causa adequada de certo prejuízo se, tomadas em conta as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar ".
Daqui resulta, como bem se observa no Ac. S.T.J. de 15-1-2002 (Col. Ac. S.T.J., X, 1º, 38 ), que, "de acordo com a teoria da adequação, só deve ser tida em conta como causa do dano aquela circunstância que, dadas as regras da experiência e o circunstancialismo concreto em que se encontrava inserido o agente (tendo em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis) se mostrava como apta, idónea ou adequada a produzir esse dano.
Mas para que um facto deva considerar-se causa adequada daqueles danos sofridos por outrem, é preciso que tais danos constituam uma consequência normal, típica, provável dele, exigindo-se, assim, que o julgador se coloque na situação concreta do agente para a emissão da sua decisão, levando em conta as circunstâncias que o agente conhecia e aquelas circunstâncias que uma pessoa normal, colocada nessa situação, conheceria ".
Do exposto flui que a teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes: uma formulação positiva e uma formulação negativa.
Segundo a formulação positiva (mais restrita), o facto só será causa adequada do dano, sempre que este constitua uma consequência normal, ou típica daquele, isto é, sempre que verificado o facto, se possa prever o dano como uma consequência natural ou como um efeito provável dessa verificação .
Na formulação negativa (mais ampla), o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais, excepcionais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto .
Por mais criteriosa, deve reputar-se adoptada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada (Antunes Varela, Obra citada, págs 921, 922 e 930; Pedro Nunes de Carvalho (Obra citada, pág. 61).
Consequentemente, o comando do art. 563 do C.C. "deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito, para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz, adequada desse efeito (Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. IV, 4º ed, pág. 579).
Pois bem .
Revertendo ao caso sub juditio, só lhe resta aplicar os princípios doutrinários expostos.
Mas antes de mais, importa salientar que não resultou provado que o B e os amigos se tivessem agarrado aos braços da cruz, que se tivessem dependurado nela e que a parte superior da aludida cruz tivesse ruído, em consequência do abanão e da pressão então exercida ( respostas explicativas e restritivas aos quesitos 24º, 25º e 26º).
Por outro lado, também não logrou provar-se que, à data dos factos, a cruz se encontrasse em bom estado de solidez, mas apenas que se encontrava em equilíbrio, com a sua base ou patamar e fuste fixos e imóveis e a cabeceira e braços apoiados sobre o fuste (coluna principal), ficando a cabeceira aprumada em relação ao fuste (resposta explicativa ao quesito 27º).
Acresce que também não se apurou que a cabeceira e os braços da cruz estivessem unidos ao fuste da mesma por um elemento de ligação em ferro e colado com argamassa, mas apenas que a cabeceira e os braços da cruz formavam um só bloco ( resposta restritiva ao quesito 28ª).
Daqui resulta ter logrado provar-se vício ou defeito na conservação da cruz, na medida em que a cruz apenas se encontrava em equilíbrio, com a sua base ou patamar e fuste fixos e imóveis e a cabeceira e braços apoiados sobre o fuste, ficando a cabeceira aprumada em relação ao fuste .
Ora, um cruzeiro de granito do século XVII denota falta ou defeito de conservação e não oferece segurança, quando se prova que somente está em equilíbrio e que os braços da cruz apenas estão apoiados sobre o fuste (coluna principal).
A cabeceira e os braços da cruz só ofereceriam a necessária segurança se estivessem unidos, colados ou ligados ao fuste, com a aplicação de material adequado, e não apenas apoiados no fuste.
Só assim se explica que a parte superior da cruz tenha ruído, depois do B se ter agarrado à coluna vertical, pelo simples facto dele se ter encostado e apoiado os seus braços nos braços da cruz .
O mero encosto e apoio dos braços do B nos braços da cruz, com a consequente queda da parte superior da mesma cruz, não pode ser considerado causa adequada do dano produzido, por este não constituir uma consequência normal ou típica daquele .
Isto porque, verificado o facto, não pode prever-se, em geral e em abstracto, o dano como uma consequência natural ou como um efeito provável dessa verificação .
A acção ou o facto praticado pelo B, que actuou como condição naturalística imediata do dano, não pode ser havido, juridicamente, como causa adequada para a sua produção, por ter contribuído, decisivamente, para a queda da cruz uma circunstância excepcional, anormal, extraordinária ou anómala, que intercedeu no caso concreto, consistente no defeito de conservação da mesma cruz .
Foi esta última circunstância a causa adequada do evento, por o dano se apresentar como uma consequência normal ou como um efeito provável dessa verificação, pelo que é de considerar, no plano jurídico, que os danos foram devidos exclusivamente ao defeito de conservação da cruz.
Daí a obrigação de indemnizar, por parte do IPPAR, a quem competia velar por essa conservação, nos termos do art. 492, nº2, do C.C.
Os factos relevantes para o apuramento dos danos sofridos pelo autor A são os seguintes:
1 - Como consequência directa e necessária a queda da parte horizontal da cruz, resultou para o autor fractura exposta do antebraço esquerdo, fractura essa cominutiva, com atingimento articular do punho e atingimento da metafesi do rádio, sendo este último por via de fragmentação .
2 - Após o ocorrido, o autor foi imediatamente transportado para o Centro de Saúde de ..., onde lhe foram prestados os primeiros socorros, e daí para o Hospital Geral de Santo António .
3 - No Hospital de Santo António, nesse mesmo dia, o autor foi submetido a uma intervenção cirúrgica, que consistiu em osteotaxia, com fixador externo do rádio: tenorrafias e neurorrafias.
4 - Após essa intervenção cirúrgica, ficou internado nesse hospital até ao dia 30 de Maio de 1997.
5 - Depois, foi transferido para o Hospital de Macedo de cavaleiros, onde ficou internado desde 30-5-97 até 16-6-97.
6 - Em 9-7-97, o autor foi submetido a nova intervenção cirúrgica, para retirar parte do material de osteosíntese, concretamente, o fixador externo e para colocação de aparelho gessado.
7 - A evolução do autor foi para pseudartrose do rádio, com luxação do rádio cubital e lesão definitiva do longo extensor do polegar.
8 - Face à aludida evolução, em 24-9-97, o autor foi submetido a nova intervenção cirúrgica, que consistiu em tratamento de pseudartrose da rádio e resseção da cabeça do cúbito .
9 - Em 12-5-99, por intolerância do material de osteosíntese, foi o autor submetido a nova intervenção cirúrgica, tendo-lhe sido extraída a placa e feita a transferência do tendão, de curto extensor para longo extensor .
10 - O autor deslocou-se 10 vezes à consulta externa de ortopedia do Hospital de Santo António, no período compreendido entre 15-7-97 e 14-9-99, e duas vezes à consulta de fisiatria, nos dias 8-9-99 e 22-12-99.
11 - Em 14-9-99, foi-lhe concedida alta .
12 - Como sequelas, o autor apresenta rigidez do punho esquerdo em todos os movimentos, incluindo o movimento de pronozupinação, acrescida de uma lesão definitiva do longo extensor do braço esquerdo .
13 - Como consequência directa e necessária das lesões e sequelas supra referidas, resultou para o autor uma incapacidade parcial permanente e definitiva para o trabalho, de 13% .
14 - À data do acidente, o autor trabalhava, como servente, para o empreiteiro D, de Açoreira, auferindo o salário líquido mensal de 65.601$00.
15- Desde a data do acidente e até à data da alta, em 14-9-99, o autor não exerceu qualquer actividade remunerada.
16 - Antes do acidente, o autor era cheio de vida e manifestava força e alegria de viver, pretendendo ser Guarda da P.S.P. ou guarda prisional .
17 - O autor exerce, actual e provisoriamente, as funções de operador de central, nos Bombeiros Voluntários de Torre de ... .
18 - Em consequências das lesões que sofreu e das intervenções cirúrgicas, internamentos e consultas a que se submeteu, o autor sofreu fortes dores e sentiu incómodos variados.
19 - Após a fase inicial dos tratamentos, receou e sentiu a possibilidade de não poder movimentar e flectir o braço esquerdo.
20 - O autor nasceu em 13 de Março de 1975, pelo que, à data do acidente, tinha 22 anos de idade.

A indemnização pelos danos:

O autor sofreu a perda dos reclamados 28 meses de salários, desde a data do acidente até à data da alta médica, em 14-9-99, no total de 1.836.828$00, considerando o seu salário líquido mensal de 65.601$00.
Ficou com uma incapacidade parcial permanente para o trabalho de 13%.
É jurisprudência pacífica que o lesado não tem de alegar a perda de rendimentos laborais para o tribunal atribuir indemnização, por ter sofrido incapacidade parcial permanente.
Apenas tem de alegar e provar que sofreu incapacidade permanente parcial, dano esse cujo valor deve ser apreciado equitativamente (Ac. S.T.J. de 11-2-99, Bol. 484-352, entre outros).
Como o autor vai ser ressarcido pelo valor global dos salários perdidos até à data da alta, há que atender a esta data para lhe fixar a indemnização pela referida incapacidade parcial permanente para o trabalho.
Nesse momento o autor contava 24 anos de idade, pelo que ainda lhe restariam 41 anos de vida activa, considerando o limite desta aos 65 anos.
Assim, atendendo à idade do autor, ao grau de 13% de incapacidade parcial permanente para o trabalho de que ficou afectado, ao nível sempre crescente dos salários, à taxa da inflação e a todos os demais factores que devem ser ponderados, julga-se equitativo fixar a indemnização por este dano patrimonial em 4.000.000$00.
Os danos não patrimoniais também merecem a tutela do direito, atenta a sua natureza e gravidade - art. 496, nºs 1 e 3 do C.C.
O autor foi sujeito a quatro intervenções cirúrgicas e a tratamentos vários, ao longo de dois anos, com os consequentes internamentos hospitalares, padecimentos, dores, incómodos e o natural desgosto provocado pelas sequelas das lesões, que lhe diminuíram a alegria de viver.
Em prudente arbítrio e com a temperança da equidade, atribuiu-se a compensação de 4.000.000$00, por todos os danos não patrimoniais sofridos.
Todos estes valores são reportados à data da citação .
Assim, o valor global da indemnização ascende a 9.836.828$00, que actualmente corresponde a 49.066 Euros (por arredondamento), por cujo pagamento é responsável o IPPAR.
Sobre este montante acrescem juros moratórios, às taxas legais, desde a data da citação e até efectivo pagamento.
Diga-se, por último, que os limites da condenação contidos no art. 661 do C.P.C. se entendem referidos ao pedido global e não às parcelas em que, para demonstração do quantum indemnizatório, há que desdobrar o cálculo do prejuízo .

Termos em que, concedendo parcialmente a revista, decidem:
1 - Revogar o Acórdão recorrido e, com ele, a sentença da 1ª instância;
2 - Julgar improcedente a acção contra a ré "Igreja Paroquial de Moncorvo", absolvendo-a do pedido;
3 - Julgar parcialmente procedente a acção contra o réu IPPAR- Instituto Português de Património Arquitectónico e Arqueológico, condenando-o a pagar ao autor A a indemnização de quarenta e nove mil e sessenta e seis Euros, acrescida de juros moratórios, às taxas legais vigentes, desde a data da citação e até efectivo pagamento, e absolvendo-o da restante parte do pedido.

O IPPAR é entidade isenta de custas, pelo que só o autor fica condenado em custas, quer no Supremo, quer nas instâncias, na proporção da parte do pedido em que ficou vencido.

Lisboa, 1 de Julho de 2003
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce de Leão