RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ANALOGIA
NULIDADE DE DESPACHO
Sumário

I - Não cabe recurso para o STJ de um despacho do relator de recurso pendente na Relação, por não se incluir em qualquer das alíneas enunciadas no art. 432.º do CPP.

II - Enquanto que no processo civil se prosseguem interesses de natureza especialmente privada, cabendo na livre disponibilidade das partes, no processo penal prosseguem-se direitos e interesses essencialmente públicos: - o jus puniend i- do Estado, fora da esfera privada, e, ao
nível do recurso, dá-se total predominância ao colectivo, em detrimento do singular.

III - Da interpretação conjugada dos arts. 417.º e 419.º do CPP conclui-se que só a conferência tem competência para decidir todas aquelas questões que no processo civil cabem nas funções do relator.

IV - A este compete apenas regular e ordenar a marcha do processo de modo a submetê-lo à conferência ou a julgamento, consoante os casos, após proceder ao exame preliminar, elaborando para o efeito os respectivos projectos de acórdão, e naquele exame preliminar se
esgotando, à partida, as funções do relator enquanto órgão “decisor”, que não vão além da averiguação e verificação de qualquer questão ou circunstância que obste ao conhecimento do recurso.

V - Deste modo se compreende que não exista no processo penal a figura (meio processual) da reclamação para a conferência, pois é este órgão colegial que, desde logo, decide em primeira mão, sobre as questões que, eventualmente, fossem susceptíveis de reclamação de despachos do relator.

VI - Perante regimes tão diferenciados e pormenorizadamente regulados de forma autónoma, não faz sentido aplicar aqui, por analogia, quaisquer normas atinentes do CPC, ao contrário do que sucedia na vigência do CPP/29, onde expressamente (art. 649.º) se remetia para o “agravo em
matéria civil” o regime dos recursos penais.

VII - O despacho recorrido, a “declarar a excepcional complexidade do processo”, não se inclui, notoriamente, na tipologia dos chamados “termos do recurso”, pelo que carece o relator de competência para o proferir.

VIII - Tal despacho, proferido pelo relator, a título singular, sem competência para tanto e com preterição do Colectivo/conferência, sofre de nulidade insanável, pelo que, ora declarada essa nulidade, os autos deverão ser devolvidos ao tribunal da Relação para aí prosseguirem os
ulteriores termos (arts. 419.º e 119.º, al. a), ambos do CPP).

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


No Recurso Penal nº 96/2002, pendente no Tribunal da Relação do Porto, o Exmº Desembargador-Relator, proferiu em 7 de Maio de 2003, despacho do seguinte teor: (transcrição).
" Nos termos do que dispõe o art. 54º, nº 3 do Dec-Lei nº 15/93 de 22/1, o presente processo, refere-se a um crime de tráfico de estupefacientes, logo, nos termos do nº 1 do referido artigo, conjugado com o nº 3 do art. 215º, do Cód. Proc. Penal declaro o mesmo de excepcional complexidade, alargando-se deste modo, o prazo da prisão para 4 (quatro) anos.
Notifique".

Não se conformando com tal despacho, recorre para o Supremo Tribunal de Justiça, o referido (preso):
"AA, que em síntese de motivação, formula as seguintes conclusões: (transcrição).
"A) O Processo Criminal assegurará todas as garantias de defesa do arguido e está subordinado ao princípio do contraditório Art. 32º da C.R.P..
B) O arguido goza do direito de ser ouvido pelo tribunal sempre que deva ser tomada qualquer decisão que pessoalmente o afecte. Art. 61º do CPP..
C) A decisão sobre a elevação dos prazos de prisão preventiva deve relevar-se da especial complexidade do processo devido, nomeadamente, ao inverso de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime Art. 215º do CPP..
D) As decisões são sempre fundamentadas devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão Art. 97º do CPP..
E) O douto despacho violou as normas legais citadas pelo que deve ser revogado".

Na sua resposta ao recurso, o Exmº Representante do M.P. junto da Relação do Porto, embora conclua pela improcedência do recurso, não deixa, todavia, de referir que "uma primeira abordagem, do recorrente assiste alguma razão" e isto, pela inoportunidade do despacho recorrido, proferido já depois de o processo ter sido julgado, de ter havido recurso para a Relação do Porto "e do acórdão aqui proferido para o STJ. que, dando provimento ao recurso, o faz baixar à mesma Relação para que ordene a transcrição das provas gravadas e convide o recorrente para aperfeiçoamento das conclusões":

Neste Supremo Tribunal, o Exmº Procurador Geral Adjunto, em seu douto e proficiente "parecer".
Suscita, em primeira mão, questão prévia, relacionada com a inadmissibilidade do recurso que, por isso, deverá ser rejeitado; e, de seguida, provavelmente impressionado com a situação criada pelo despacho recorrido "que se prende com a liberdade do arguido" sugere "como solução possível e alternativa à rejeição pura e simples do recurso", a aplicação analógica de princípios e regras do processo civil (v.g. art. 688º nº 5 CPC), aproveitando-se, assim, o recurso como reclamação para a conferência, a deferir os seus termos na Relação do Porto.

Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º, nº 2 do CPP., não tendo suscitado qualquer resposta por danos dos sujeitos processuais.
Passados os vistos legais, cumpre conhecer e decidir, em conferência, das questões suscitadas.
Em apreciação:
Admissibilidade (ou não) do recurso de despacho do relator para o STJ.;
Aplicação (analógica) ao caso, de normas do Cód. Proc.Civil v.g. art. 688º, nº 5 e 700º;
Nulidade (insanável) do despacho recorrido, de conhecimento oficioso.

Quanto à primeira questão.
É demasiado evidente que de um despacho do relator de recurso pendente na Relação nunca se poderá recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça. Analisando a previsão do art. 432º CPP "Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça" (que nos dispensamos de transcrever), não há interpretação possível que leve à inclusão da hipótese, "Sub Specie", em qualquer das alíneas enunciadas naquele normativo.
Recorre-se para o STJ., por regra, de decisões proferidas pelo colectivo, seja ele a Relação, seja ele o Tribunal Colectivo da 1ª Instância nos casos de recurso directo, e nunca de um despacho do relator, enquanto juiz singular, nem de decisões do tribunal simples.
É regra que cedo entra na prática rotineira dos "operadores judiciários" a de que "do despacho relator reclama-se para a conferência" e só do acórdão proferido em conferência se poderá recorrer, consoante os casos, para o tribunal imediatamente superior.
E se isto é inteiramente válido em processo civil .- cfr. art. 700º, nº 3 CPC, o mesmo se não dirá, pelo menos com a mesma amplitude e singeleza, no tocantemente ao processo penal.
Aqui, do nosso ponto de vista, (ou, desde já, reconhecemos não obter consenso nesta secção criminal) nem sequer tem cabimento a reclamação para a conferência, como também não pode o relator tomar decisões, a título individual, que directa ou indirectamente se conexionam com os termos do recurso do recurso. E se as tomar, há que referir a sua nulidade, e, não reclamar para a conferência.
É ponto que desenvolveremos a referir.
Em qualquer dos casos, o que importa dos aqui como assente, é que, do despacho do relator, não há recurso para o S.T.J..
E, porque a decisão que o admitiu não vincula o tribunal suportar - art. 413º, nº 3 CPP - deve ele ser rejeitado conforme do disposto no art. 420º -1. CPP..

Quanto à 2ª questão: - aplicação analógica de normas do CPC.
Opina o M.P., neste Supremo Tribunal que ao caso seria de aplicar analogicamente a regra ínsita no art. 688º, nº 5 do CPC., seguindo-se na Relação os termos da reclamação para a conferência, evitando-se assim a rejeição do recurso.
Temos para nós como líquido que, neste campo não é verosímil, o recurso à analogia, pois, como já antecipamos, não existe qualquer lacuna a preencher.
Os Tribunais da Relação funcionam sob a direcção de um presidente, um plenário e por secções, e, cabe a cada secção, "inter alia", julgar recursos e "julgar, por intermédio do relator, os termos dos recursos que lhe estejam cometidos pela Lei de processo"- art. 52º e 56º h) da L.O.F.T.J. (Lei 3/99 de 13.1).
Flui daqui que as decisões sobre recursos e os seus termos são, por regra, da responsabilidade da Secção - órgão colegial, a não ser que a Lei de processo confira competência específica do relator para decidir " termos do recurso". E se isso suceder no processo civil, já o mesmo não acontece no processo penal.
Na verdade, ao contrário do que ocorre no processo civil - art. 78-A e 78-B da respectiva Lei Orgânica (L.28(82), o Juiz relator do processo penal, em matéria de recurso, não tem quaisquer poderes decisórios.

"O relator não tem poderes de decisão" diz Germano Marques da Silva - in Processo Penal Vol. III-358 Ed. verso/2000.
A natureza dos direitos e interesses que se exercitam num (proc. civil) e noutro (proc.penal) processo explicam, de algum modo, a diferença de regime, nesta e noutras matérias.
No processo civil prosseguem-se interesses de natureza especialmente privada, cabendo na livre disponibilidade das partes. E assim se compreende que por razões de economia de custas e de celeridade, as partes no processo civil, possam, verificadas determinados pressupostos, prescindir de certos actos mais solenes e demorosos, na prossecução dos seus interesses,- v.g. dispensa de intervenção do Colectivo (art. 646º-CPC), dispensa de uma instância na fase de recurso, podendo recorrer "per saltum" para o S.T.J. -, indiciando estes e outras decisões para uma predominância do juiz singular em detrimento do Colectivo.
E é assim que o relator, no recurso em processo civil, para além do mais, pode por si só, corrigir a qualificação do recurso; o efeito atribuído; o regime de subida; declarar suspensão da instância; julgar extinta a instância; julgar findo o recurso; julgar incidentes; e julgar sumariamente o recurso.- cfr. art. 700º, nº1 CPC.
E só quando a parte se considerar prejudicada por despacho do relator poderá reclamar para a conferência para prolação de acórdão sobre a questão- art. 700º, nº 3.
Haja ainda em vista os normativos dos art.s 701º a 706º - sobre poderes do relator.

Diferentemente se passam as coisas no processo penal.
Aqui prosseguem-se direitos e interesses, essencialmente públicos:- o "jus puniendi"- do Estado, fora os esfera privada. E ao nível do recurso dá-se total predominância do Colectivo, em detrimento do juiz singular.
Da interposição conjugada dos art.s 417º e 419º do CPP., conclui-se que só a conferência tem competência para decidir todas aquelas questões que no processo civil cabem nas funções do relator.
Até a simples desistência do recurso (que tem de ocorrer antes de o processo ser concluso do relator) terá de ser julgada em conferência:- art. 415º CPP.
Ao relator compete apenas reputar e ordenar a marcha do processo de modo a submetê-lo à conferência ou a julgamento consoante os casos, após proceder ao exame preliminar (art. 417º) elaborando para o efeito os respectivos projectos de acórdão.
Naquele exame preliminar se esgotarem, à partida, as funções do relator, enquanto órgão "decisor" e que não vão além da averiguação e verificação de qualquer questão em circunstâncias que obste ao conhecimento do recurso:- v.g. se deve manter-se o efeito, se deve ser rejeitado....
Concluindo pela existência de qualquer dessas questões ou de outras supervenientes, outra solução não tem do que levar o processo à conferência, com projecto de acórdão para decisão.
Na conferência intervêm, como é sabido o presidente da Secção, o relator e dois adjuntos, art. 419º CPP.

Deste modo se compreende que não exista aqui a figura (meio processual) da reclamação para a conferência, pois é este órgão colegial que, desde logo, decide uma primeira mão, sobre as questões que, eventualmente, fossem susceptíveis de reclamação de despachos do relator.
Perante regimes tão diferenciados e pormenorizadamente regulados de forma autónoma, não faz sentido aplicar aqui (recursos) por analogia quaisquer normas atinentes do C.P.C., ao contrário do que sucedia na vigência do CPP/29 onde, expressamente - art. 649º se remetia para o "agravo em matéria cível" o regime dos recursos penais.
Não será esta tradição que pretende manter-se, ao defender-se e decidir-se com frequência, a aplicação analógica, de recursos do processo civil sobre reclamação para a conferência e sobre poderes decisórios do relator, nos recursos penais??
A partir de outros em vigor do CPP/87, só nos casos omissos se poderão observar as mesmas do processo civil se harmonizem com o processo penal - art.4º.

É sabido que aquele diploma procurou estabelecer uma "regulamentação total e autónoma" do processo penal, tornando-a mais independente do processo civil. "Isto é notório ao longo de todo o código e atinge a máxima expressão em matéria de recursos". - Vide Maia Gonçalves in CPP. Anotado. 2002 pág. 103 e segs e doutrina aí citado.
Será pois com muita paciência que poderá recorrer-se à analogia (do CPC) e será mesmo de afastá-la quando se lida com matérias relacionadas com o princípio da legalidade e com o estatuto processual do requerido, seus direitos e garantias.
Ora o despacho (de que se recorreu) em apreço colide frontalmente com direitos fundamentais do aferido, v.g. cf. à liberdade, ao alargar, "sem qualquer cerimónia" para 4 anos o prazo da prisão preventiva, recorrer à analogia do processo civil para conferir poderes decisórios do relator, sobre matéria específica do processo penal, é subverter e contrariar princípios ... do processo penal, como seja o princípio da legalidade - art. 2º CPP.
Acresce que o aludido despacho, é a todos os títulos, decisão recorrível, desde que proferido pela entidade competente. Via-se já que do despacho do relator não há recurso para o S.T.J..

Para obviar a este estorvo, bastaria, como devia ter sucedido, que a decisão (sobre complexidade excepção oral do processo) fosse tomada em conferência - ...'. Assim se evitaria o recurso a expedientes pouco claros, e inadmissíveis ( do nosso ponto de vista e, previsivelmente do próprio recorrente que dele se não socorreu) como seja a reclamação para a conferência.
Ademais, tal despacho " a declarar a excepcional complexidade do processo", não se inclui, notoriamente, na tipologia dos chamados "termos do recurso"; - é uma decisão autónoma que pode ser tomada - pelo menos assim nem sucedendo - em qualquer altura do processo, embora estejamos convencidas e que será na fase do investigação -inquérito e instrução- que melhor cabimento terá, pois é nesse momento processual que com toda a pertinência, se poderá aquilatar das dificuldades, de longas e demoras sentidas na averiguação dos factos ilícitos - v. art. 243º nº2 do CPP:
Pouco ortodoxo nos parece, que se use esse despacho de nefastas consequências para o arguido, apenas para colmatar vicissitudes várias do processo, ocorridas após o julgamento em 1ª instância: recursos, e repetições de julgamentos, etc, - vicissitudes que podem ocorrer em qualquer processo, independentemente de qualquer especial complexidade.
Do que vem exposto se conclui que no recurso penal, o relator não tem poderes decisórias; por isso, não existe reclamação para a conferência; tendo o despacho, "sub specie" sido proferido por entidade sem competência para o efeito.

Quanto à 3ª questão - nulidade do despacho.
No rigor dos princípios e, confrontados apenas com a não admissão do recurso e a não aplicação do caso de normas do processo civil, esgotar-se-iam aqui os poderes cognitivos deste STJ..
Todavia a inoportunidade do despacho (recorrido) e a sua manifesta (para nós) ilegalidade, não podem deixar de nos impressionar, como impressionado ficou o M.P..
Ainda que o processo se refira a tráfico de droga, certo é que, entre a data dos factos e a data do julgamento em 1ª instância, não decorreu sequer um ano: - Factos de 14.11.2000 e Acórdão condenatório, de 31.10.2001.
O que só por si, revela que nem todos os processos de tráfico de estupefacientes são de excepcional complexidade - art. 215º ,nº 3 CPP.
Estranha-se pois que só em 7.5.03, venha a ser proferido o "despacho recorrido", não porque o processo fosse complexo, mas apenas para alargar o prazo da prisão preventiva, assim se pretendendo colmatar já apontadas.
Não cabe aqui ajuizar do mérito da decisão proferida nem das vicissitudes que lhe estão subjacentes, e, menos ainda divagar sobre questões relacionadas com a necessidade do despacho judicial sobre tal matéria ou sobre a aplicação "ope legis" do normativo do art. 54º, nº 3 do DL 15/93 de 22.1.
Sobre tais questões está pendente, do que se informa, recurso para fixação de jurisprudência.
De todo o modo foi em vão que eludimos a estranheza e inoportunidade do despacho, já que ele colide directamente com direitos fundamentais do arguido; e, como corolário lógico de tudo quanto se escreveu na rubrica anterior, resulta à evidência, a sua entidade insanável.
Foi proferido pelo relator, a título singular, sem competência para tanto e com preterição do colectivo/conferência - art. 419º CPP.

Art. 119º CPP:
"Constituem entidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) a falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal ou a violação das regras legais relativas do modo de determinar a respectiva composição:-
Só em conferência, a secção criminal da Relação do Porto podia e devia deliberar sobre a questão que o Exmº relator decidiu.
Exorbitando a sua competência e, pretendendo a intervenção da conferência, cometeu nulidade insanável, que agora (e só agora dela se teve conhecimento) se declara para os legais e devidos efeitos.

Sem conformidade com o exposto, delibera-se:
a) Rejeitar o recurso por inadmissível;
b) Anular o despacho recorrido;
c) Ordenar devolução dos autos ao Tribunal da Relação do Porto, para aí prosseguir os ulteriores termos.
d) Pela rejeição do recurso pagará o recorrente: 5 Ucs de taxa de Justiça e - 5 Ucs de sanção processual - art. 420, nº 4º CPP.

Lisboa, 8 de Outubro de 2003
Antunes Grancho
Soreto de Barros
Silva Flor (com a declaração de que entendo que, rejeitado o recurso, estava ordenado ao Supremo anular o despacho recorrido).