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PRISÃO PREVENTIVA
ESPECIAL COMPLEXIDADE DO PROCESSO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
Sumário
A declaração judicial de especial complexidade processual, para os fins de elevação dos prazos de prisão preventiva, nos termos dos art.ºs 54.º n.º 3, do Dec.º-Lei n.º 15/93, de 22/1 e 215.º n.º3, do CPP, não carece de ser expressa, bastando, para produzir eficácia, que resulte, implícita e inequivocamente, dos termos do despacho judicial a vontade de alargar tais prazos. Assim será quando o juiz se pronuncie em tal despacho, ao rever os pressupostos da prisão preventiva, nos termos do art.º 213.º n.º 1, do CPP, no sentido de que está longe do seu esgotamento, consignando a sua duração máxima e mencionando as disposições aplicáveis, autorizando aquela elevação. Em tal caso está arredado o recurso à providência excepcional de " habeas corpus", nos termos do art.º 222.º n.º 2 c), do CPP, por não derivar daí que a prisão preventiva do arguido se deva a uma violação grosseira da lei, em matéria de duração de prazos de prisão preventiva, tornando aquela medida insustentável. Cabendo ao Estado o direito de punir, indelegável e intransmissível, não pode prescindir-se, no entanto, ao usá-lo, de uma boa consciência, devendo o Estado manter em todo o processo punitivo uma superioridade ética, não se aceitando uma prisão preventiva mantida para além dos prazos pré-fixados por lei.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
"A", devidamente identificado nos autos, preso preventivamente à ordem do processo comum colectivo n.º 31/01.3JELSB, do Tribunal Judicial de Loures, n.º 288/02.2PGPRT, onde foi condenado, em 10.2.2003, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p.pelo art.º 21.º n.º 1, do Dec.º-Lei n.º. 15/93, de 22/1, decisão de que interpôs recurso, pendente no Tribunal da Relação de Lisboa P. n.º 4509/A / 2003, da 5.ª Sec.), onde tem julgamento designado para o dia 21/10/2003), veio requerer a este STJ providência de "habeas corpus", com o fundamento de que se acha preso ilegalmente, pois que, tendo sido detido em 9.4.2001 (o Tribunal recorrido informa ter sido em 10.4.2001 a fls.85 e verso) e decorrido 30 (trinta) meses sobre a data da sua prisão preventiva sem declaração da excepcional complexidade do processo e sem condenação com trânsito em julgado, mostra-se esgotado o prazo máximo da sua prisão, em razão do que se impõe a sua imediata restituição à liberdade, por ilegalidade da sua prisão.
I. A informação a que se reporta o art.º 223.º n.º 1, do CPP, mostra-se prestada pelo Ex.mº Sr. Juiz Desembargador, relator.
II. O Digno Magistrado do M.º P.º e o defensor da arguida foram notificados visto o que se prescreve no n.º2 daquele art.º 223.º.
III. Foi convocada a Secção Criminal e, efectuado o julgamento, cumpre, agora, publicitar a deliberação, que tem como pano de fundo a prisão preventiva do arguido, validada judicialmente, por se mostrar fortemente indiciada a prática de crime de tráfico de estupefacientes, agravado, p. e p, pelos art.ºs 21,º n,º 1 e 24.º b), do Decº-Lei nº 15/93 de 22/1, concorrendo os pressupostos daquela medida coactiva, indicados nos art.ºs 191.º, 193.º, 195.º, 198.º, 202.º, n.º 1 a) e 204.º, do CPP.
IV. Do que se cura, agora, é de indagar se ao arguido assiste razão ao impetrar deste Tribunal a sua libertação imediata por recurso à providência excepcional de "habeas Corpus".
A providência, que se não confunde com o recurso, é o processo com dignidade constitucional assegurado à face do art.º 31, n.º 1, da CRP, para reagir contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal.
A lei ordinária, no art.º 222º, n.º 2 do CPP, als, a), b) e c), enuncia os pressupostos da sua concessão:
- ter a prisão sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
- ser motivada por facto pelo qual a lei não permite; e
- manter-se para além dos prazos fixados por lei ou decisão judicial,
A legitimidade para a petição de II habeas corpus II radica no próprio preso ou por qualquer cidadão no pleno gozo dos seus direitos políticos - n.º 2, do art.º 222º do CPP, no seguimento do n.º 2, daquele art.º 31º.
A uma análise perfunctória da lei resulta que a medida, podendo ser requerida por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, comporta uma dimensão de interesse público porque a restrição da liberdade pessoal só é aceitável se comunitariamente tolerável; a dedução pelo próprio arguido mostra da parte do legislador o empenho em simplificar e tomar expedita a apreciação do processo pelo STJ,
Por definição, o processo de "habeas corpus" traduz uma providência célere contra a prisão e vale, em primeira linha, contra o abuso de poder por parte das autoridades policiais, designadamente as autoridades de polícia judiciária, mas não é impossível conceber a sua utilização como remédio contra o abuso de poder do próprio juiz, apresentando-se tal medida como privilegiada contra o atentado do direito à liberdade, comentam Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição Anotada, Ed. 93, Coimbra Ed., em anotação ao art. 31º pré-citado.
A medida, assinala o Prof. Cavaleiro de Ferreira, in Curso de Processo Penal, I, ed. Danúbio, 1986, 268, tem como pressuposto de facto a prisão efectiva e actual; como fundamento de direito a sua ilegalidade.
Prisão efectiva e actual compreende toda a privação de liberdade, quer se trate de prisão sem culpa formada, com culpa formada ou em execução de condenação penal ou seja aquela que se mantém na data da instauração da medida e não a que perdeu tal requisito, como decidiu este STJ, com geral uniformidade cfr. Acs. de 23.11.95, P. 0112/95; de 21.5.97, P. 0635/97, de 910.97, P. 01263/97 e de 21.12.97, in CJ, STJ, Ano X, 111,235.
V. Na fixação dos seus contornos não perde pertinência a menção de que o processo tem como antecedente histórico a Constituição de 33 e, menos remotamente, o Dec. Lei n.º 35.043, de 20.10.45, que lhe reservou um papel residual, só funcionando quando o jogo dos meios legais normais de impugnação das condições da prisão estiver exaurido.
No preâmbulo de tal diploma observa-se que a providência "não é um processo de reparação dos direitos individuais ofendidos nem da repressão das infracções cometidas por quem exerce o poder público" (...). É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade.
Pacífico o entendimento por parte deste STJ que este Tribunal não pode substituir-se ao juiz que ordenou a prisão em termos de sindicar os seus motivos, com o que estaria a criar um novo grau de jurisdição (cfr. Ac. deste STJ, de 10/10/90, P. n.º 29/90 -3.ª Sec.); igualmente lhe está vedado apreciar irregularidades processuais a montante ou a jusante da prisão, com impugnação assegurada pelos meios próprios, fora, pois, do horizonte contextual pertinente.
Assente, pois, que o processo é de natureza residual, excepcional e devia reduzida: o seu âmbito restringe-se à apreciação da ilegalidade da prisão, por constatação e só dos fundamentos taxativamente enunciados no art.º 222º n.º 2, do CPP.
Reserva-se-lhe a teleologia de reacção contra a prisão ilegal, ordenada ou mantida de forma grosseira, abusiva, por ostensivo erro de declaração enunciativa dos seus pressupostos.
E se ao Estado cabe o direito de punir, poder indelegável e intransmissível, não deixa de ser reclamado por todos que aquele não prescinda de uma boa consciência, não menosprezando que a punibilidade não pode conseguir-se a todo o custo, em colisão com o direito à liberdade individual.
Os pressupostos enunciados nas três alíneas do n.º 2, do art.º 222º, do CPP, espelham o dever do Estado manter em todo o processo punitivo uma superioridade ética, não se aceitando uma prisão ordenada por entidade sem competência, sem motivo legal e mantida para além dos prazos legalmente estabelecidos.
A não observância destes pressupostos é algo que se não concebe num Estado de Direito; a ausência de prazos de contenção da prisão preventiva é anomalia que as leis dos Estados civilizados não admitem, como princípio-regra.
VI. Debrucemo-nos, de seguida, sobre o real motivo invocado como fundamento da providência: decurso do prazo de 30 (trinta) meses sobre a prisão preventiva, o que só podia ter lugar, invoca o arguido, se tivesse sido declarada a excepcional complexidade do processo, nos termos do art. 215º n.º 3, do CPP, que culmina, em cascata, a máxima elevação dos prazos normais de prisão preventiva, face às fases que o processo comporta, podendo aquela medida coactiva atingir 4 anos, sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado, nos termos do art.º 215.º n.º s 1 d) e 3, do CPP e 54.º n.º 3, do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22/1, este remetendo para aquele preceito.
Ao nível deste STJ não é pacífico o entendimento sobre se essa declaração com virtualidade para elevação do prazo normal de prisão preventiva, que, à partida, sempre seria de considerar como regulado no n.º 2, do art.º 215º, do CPP, com a duração de 30 meses, atenta a moldura penal abstracta pertinente ao crime de tráfico de estupefacientes, carece de afirmação ao nível do processo, não dispensando uma actuação "ope judicis" ou, ao invés, decorre "ope legis", automaticamente da lei.
Ao nível do TC a questão já se colocou sob o signo de que a automaticidade da elevação do prazo centrar-se-ia no âmbito de uma presunção de que determinados processos se revestem de especial complexidade em manifesta violação dos princípios da presunção da inocência e do carácter excepcional, precário e subsidiário da prisão preventiva.
Respondendo ao argumento o TC objectou, afirmando que "A fixação dos prazos máximos mais longos decorre provavelmente de outras considerações, ligadas não à natureza dos processos, mas à natureza dos crimes imputados, em que se revela porventura um especial perigo de continuação da actividade criminosa". - Ac. de 29.4.99, in BMJ 486, 102.
Moveu-se o TC, em sede de interpretação da lei, "ope legis", no qualificativo, da especial complexidade do processo por trafico de estupefacientes, sem necessidade de uma intervenção expressa, casuística, do juiz.
Esse Tribunal explícito mesmo, como síntese do seu pensamento, que a natureza dos crimes imputados e os bens jurídicos colocados em risco, funda a conformidade constitucional de tal interpretação legal, indo ao ponto de afirmar a dispensa de afirmação da complexidade por derivar da lei, respeitando o princípio da proporcionalidade tal elevação, conquanto temperada pela revisão periódica dos pressupostos de tal medida, em obediência ao seu carácter excepcional, subsidiário e precário.
Essa declaração de excepcional complexidade se pode resultar, de forma expressa, do processo, também pode derivar de uma forma implícita, desde que dos termos da decisão judicial se infira ser essa a vontade do juiz.
E assim resultará, de forma tácita, se o juiz se apoiar, no reexame dos pressupostos da prisão preventiva, nos normativos que consagrem o regime excepcional de alargamento dos prazos máximos de prisão preventiva, com fundamento na especial complexidade do processo, este nos parecendo ser o caso em que o Ex.mo Desembargador, relator, invoca os preceitos dos art.ºs 54º n.º 3, do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22/1 e 215.º n.º 3, do CPP, clarificando que está longe de se esgotar o prazo máximo da prisão preventiva, de 4 anos, como fez pelo seu despacho de 16.9.2003.
Edição Anual de 2002, 366, numa hipótese muito próxima daquele que se é chamado a decidir, sentenciou:
Este STJ, no seu Ac. de 21.11.2002, referenciado, por súmula, nos Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais,
I.(...);
II.(...);
III. Se, já depois de decorridos 30 meses sobre a prisão preventiva de um arguido, condenado por sentença, ainda não transitada, em 8 anos de prisão por tráfico de estupefacientes, o juiz do processo reexamina os pressupostos de facto e de direito dessa prisão preventiva, deve entender-se que, implicitamente, considerou o processo de especial complexidade, nos termos do n.º 3, do art.º 54º, do DL 15/93 (...).
IV.(...)."
VII.O despacho de 16.9.2003,de fls. 1418, proferido pelo Ex.m.º Desembargador-Relator, averba que "... para os devidos efeitos se consigna que, não tendo deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a aplicação aos três arguidos da medida de coacção de prisão preventiva, nada obsta a que a mesma seja mantida, nomeadamente por ainda se encontrar longe de se esgotar o prazo máximo da mesma relativamente a cada um dos três arguidos 4 (anos cfr.art.º 215.º, n.º 3, do CPP, e 54.º n.º 3 do D.L. 15/93, de 22/1), dadas as datas em que foram detidos e lhes foi aplicada a medida de coacção referida - cfr. fls. 1383)."
Contém, não explícita, mas implicitamente, tal despacho, assim devendo ser encarado, a afirmação de declaração de excepcional complexidade processual e, assim, o prazo de prisão preventiva, de 4 anos, está, ainda, face ao preceituado nos art.ºs 54.º n.º 3, do Dec.º-Lei n.º 3, do Dec.º-Lei n.º 15/93, de 22/1, 215.º n.ºs 1 d) e 3, do CPP, como se considerou na Relação, longe de se haver por esgotado, ficando por demonstrar que a condição prisional do arguido preencha o pressuposto nominado "de habeas corpus", à luz do art.º 222.º n.º 2 c), do CPP, de manutenção da privação, grosseira e insustentável, da liberdade do arguido.
A emissão desse despacho comporta virtualidade para elevação daquele prazo de 30 (trinta) meses, apoiada na declaração judicial implícita de especial complexidade, que o recorrente nega ter sido proferida.
VIII. Delibera-se, neste STJ, indeferir a petição de "habeas corpus", por falta de fundamento bastante.
Condena-se o requerente ao pagamento de 7 Ucs de taxa de Justiça.
Honorários à Exma. Defensora Oficiosa: 3 UR's.
Lisboa, 20 de Outubro de 2003
Armindo Monteiro
Flores Ribeiro
Pires Salpico
Soreto Barros