BALDIOS
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
CAPACIDADE JUDICIÁRIA
JUNTA DE FREGUESIA
GESTÃO DE NEGÓCIOS
Sumário

I - No caso dos baldios a personalidade judiciária pertence à pessoa colectiva Comunidade local erigida em Assembleia de Compartes e a capacidade judiciária pertence ao Conselho Directivo pelo que a Junta de Freguesia, ao agir em juízo, fá-lo como gestora de negócios.
II - Não tendo havido ratificação, a actuação da Junta de Freguesia, relativamente aos pedidos da acção objecto deste recurso, não tem eficácia.

Texto Integral

Proc. nº 6/2010 TBMDB.-A.P1- Apelação
Tribunal Judicial de Mondim de Basto – Secção Única

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
A Junta de Freguesia de … intentou acção declarativa de condenação com processo comum ordinário contra a B… e C…, pedindo, além do mais, a condenação dos réus no pagamento de quantia a liquidar em execução de sentença, alegando para tanto que administra dois terrenos baldios e que os réus procederam, sem autorização, ao corte de árvores ali existentes, o que lhes causou prejuízos.

A 2ª ré impugnou tais factos, alegando, em síntese, que a administração dos referidos baldios não competia à autora.

Foi proferida decisão a julgar totalmente improcedentes os pedidos formulados sob as alíneas E) e F) pela autora e, em consequência, a absolver os réus dos mesmos.

Inconformada, a Junta de Freguesia de … interpôs recurso, onde conclui:

A - A Junta de Freguesia pode realizar actos de administração dos baldios, consoante dispõe o artigo 36.° da lei n.º 68/93, de 04 de Setembro.
B- A A. é administradora dos terrenos baldios em causa nestes autos e nessa qualidade pratica actos de gestão em nome da comunidade titular dos alegados baldios, utilizando o dinheiro proveniente dessa gestão em benefício dos povos da freguesia.
C- A A. peticionou nas alíneas E) e F) do pedido o pagamento da indemnização na qualidade de administradora dos baldios, destinando o dinheiro em benefício dos povos da freguesia, dos quais é representante e para os quais exerce as suas funções.
D- A indemnização peticionada não é para a A. (não é peticionada a seu favor), mas para os povos da freguesia, na qualidade de administradora dos baldios.
E- Que assim é resulta claramente da p.i. não havendo qualquer contradição na mesma.
F- Só os órgãos que detêm poderes de administração dos baldios, neste caso a Junta de Freguesia, podem pedir a entrega dos dinheiros provenientes dessa administração e não os compartes individualmente.
G- Já na sentença proferida na Acção Ordinária n° 28/83, do Tribunal Judicial da Comarca de Mondim de Basto, foi decidido que a A. tinha o direito de exigir os rendimentos do baldio denominado …, desta freguesia.
H- A decisão recorrida violou o artigo 36.° da Lei nº 68/93, de 04 de Setembro.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão deve ser dado integral provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta decisão recorrida e ordenar-se a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos para conhecimento dos pedidos formulados pela A. nas alíneas E) e F) do pedido.
Assim decidindo farão V. Exas. inteira e sã justiça.

A B… apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença.

Nos termos das disposições conjugadas dos artºs 685-A,º nºs 1 e 3, do CPC, na redacção do Dec-Lei nº 303/207, de 24/VIII, são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, tendo em vista esta imposição legal, no caso em apreço a questão que se coloca consiste em apurar se a A. Junta de Freguesia pode formular em juízo os pedidos em causa nos termos descritos

II – Fundamentação
O tribunal recorrido considerou assente e com interesse para os autos os seguintes factos:

- A autora peticiona o seguinte:
"Nestes termos e nos demais de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve a presente acção ser considerada procedente, por provada, e, em consequência:
DECLARAR-SE:
A) Que o terreno baldio denominado …, a confrontar a norte e nascente com D…, a sul com rio … e poente com Junta de Freguesia de …, com a área de 52.300 metros quadrados, inscrito na matriz sob o artigo 129 da freguesia de …, e não descrito na Conservatória, é logradouro comum e propriedade dos povos das freguesias de … e ….
B) Que o terreno baldio denominado …, que confronta de norte com o caminho, nascente com herdeiros de E…, herdeiros do Dr. D… e outros, sul rio …, poente F… e outros, com a área de cerca de 180.000 metros quadrados, inscrito na matriz rústica da freguesia de … sob o artigo 735, não registado na Conservatória do Registo Predial, é logradouro comum e propriedade exclusiva dos povos da freguesia de ….
E, EM CONSEQUÊNCIA, CONDENAR-SE OS RR
D) A reconhecerem e respeitarem os direitos dos povos representados pela Autora declarados nas alíneas anteriores, abstendo-se da prática de quaisquer actos que os possam pôr em causa.
E) A pagarem, solidariamente, à Autora uma indemnização pelos danos decorrentes do corte dos eucaliptos no valor de € 2500, correspondentes a metade do valor dos mesmos eucaliptos, conforme o acima alegado.
F) A pagarem, solidariamente, à Autora uma indemnização pelos danos causados nos pinheiros pelo corte dos eucaliptos, em montante a liquidar em execução de sentença, conforme o acima alegado.
B…

III - Factos Versus Direito

Com a revisão da Constituição em 1989, não alterada nesta matéria depois disso, os baldios são considerados meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais, integrando, a par dos sectores público e privado, o sector cooperativo e social (artigo 82º, nºs 1 a 4, alínea b).
Seguiu-se a Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, que revogou os Decretos-Leis nºs 39/76 e 40/76, de 19 de Janeiro.
Foram qualificados como terrenos possuídos e geridos por comunidades locais, isto é, o universo dos compartes, ou seja, os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao seu uso e fruição (artigo 1º).
Continuaram a constituir, em regra, logradouro comum, designadamente para apascentação de gados, de recolha de lenhas ou de matos, de culturas e outras fruições, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola (artigo 3º).
A sua posse e gestão comunitárias significam que as comunidades locais, enquanto comunidades de habitantes, são titulares em comum dos direitos de gozo, de uso e de domínio dos meios de produção comunitários.
Não sendo bens pertencentes a entidades públicas nem a entidades privadas, importa concluir que se trata de uma terceira espécie de propriedade, encabeçada nas referidas comunidades locais.
Os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento que os tivessem por objecto e os relativos à sua posterior transmissão são nulos, nos termos gerais do direito, excepto nos casos expressamente previstos na presente lei (artigo 4º).
O seu uso e fruição efectiva-se de acordo com as deliberações dos órgãos competentes dos compartes ou, na sua falta, em princípio, conforme os usos e costumes (artigo 5º, nº 1).
São administrados, por direito próprio, pelos respectivos compartes, nos termos dos usos e costumes aplicáveis, ou, na sua falta, através de órgão ou órgãos democraticamente eleitos (artigo 11º, nº 1).
As comunidades locais organizam-se, para o exercício dos actos de representação, disposição, gestão e fiscalização relativos aos baldios, através de uma assembleia de compartes, um conselho directivo e uma comissão de fiscalização (artigo 11º, nº 2).
Compete à assembleia de compartes, além do mais, sob proposta do conselho directivo, deliberar sobre a alienação da exploração de direitos sobre baldios, nos termos da lei (artigos 15º, nº 1, alínea j, e 21º, alínea f)).
Pode deliberar a alienação a título oneroso, mediante concurso público, com base no preço do mercado, de áreas limitadas de terrenos baldios que confrontem com o limite da área de povoação e a alienação seja necessária à expansão da respectiva área urbana (artigo 31º, nº 1, alínea a)).
Sobre recenseamento de compartes, diz o artº33º, da Lei n.°68/93:
1 - O recenseamento dos compartes identifica e regista os moradores da comunidade local com direitos sobre o baldio.
2 - Os recenseamentos provisórios previstos no n.º 2 do artigo 22.° do Decreto-Lei n.°39/76, de 19 de Janeiro, ou os recenseamentos tidos por definitivos, correspondentes ou não àqueles recenseamentos, ainda que validados apenas por práticas consuetudinárias inequívocas, são reconhecidos como válidos até à sua substituição ou actualização, nos termos da presente lei.
3 - Em caso de inexistência de recenseamento dos compartes de determinado baldio, a iniciativa da sua elaboração compete à assembleia de compartes, quando para o efeito convocada ou, em caso de inexistência ou não convocação daquela assembleia, ou da sua inércia dentro do prazo de seis meses a contar da entrada em vigor da presente lei, a sua elaboração compete a grupos de 10 membros da comunidade local usualmente reconhecidos como compartes, os quais deverão cooperar entre si no caso de se vir a constituir mais de um.
4 - Decorrido um ano a partir da entrada em vigor da presente lei sem que tenha ocorrido qualquer das iniciativas previstas no número anterior, a obrigação legal de efectuar o recenseamento é automaticamente transferida para a junta de freguesia em cuja área territorial se localize a totalidade ou a maior parte do baldio, para cumprimento no prazo de seis meses.
5 - A junta de freguesia referida no número anterior tem, em qualquer caso, o dever de cooperar com as entidades promotoras referidas no n.º 1, sob pena de, recusando-se a cooperar ou a cumprir a obrigação prevista no número anterior, passar a carecer de legitimidade para nela ser ou continuar delegada a administração do respectivo baldio, durante um período de 10 anos a contar do termo do semestre referido no número anterior.
6 - Em caso de renitente inexistência de recenseamento dos compartes, por inércia de todas as entidades referidas nos números 3 e 4 e até ao suprimento efectivo dessa falta, aplicam-se as regras consuetudinárias, quando inequivocamente existam e, na falta delas, supre a falta do recenseamento dos compartes o recenseamento eleitoral dos residentes na comunidade local a que o baldio pertence, com as adaptações e correcções aprovadas nas reuniões da assembleia de compartes convocadas com base nele.
7 - A convocação prevista na parte final do número anterior compete ao conselho directivo, quando exista, ou, na sua falta, a grupos de 10 membros da comunidade local usualmente reconhecidos como compartes, constituídos em comissão ad hoc.
Portanto, os baldios incluem-se, como se disse, no domínio comum, caracterizado sobretudo pela propriedade comunal dos vizinhos de certa circunscrição ou parte dela, podendo ser representados pela autarquia a que pertencem, que exercerá meros direitos de administração e de polícia.
No caso, dada esta natureza jurídica dos baldios, a Ré, enquanto na administração e gestão dos mesmos, pratica actos que são tidos e considerados como actos de gestão de bens alheios.
O Conselho Directivo é, por lei, um órgão da comunidade local compartes) que administra os baldios de acordo do mencionado art. 11º da Lei 68/93.
Por sua vez, no art.º 21º do falado diploma legal, estipula a alínea h) que compete ao Conselho Directivo «recorrer a juízo e constituir mandatário para a defesa dos direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio e submeter estes actos à ratificação da assembleia dos compartes».
Daqui deflui, que o Conselho Directivo é um órgão da comunidade dos compartes ou comunidade local para a administração dos baldios, cabendo-lhe funções executivas, nas quais se incluem as de recorrer a juízo em defesa dos direitos e interesses citados e de representar o universo dos compartes, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea i) da sobredita disposição legal.
Desta forma, a personalidade judiciária será sempre a da comunidade local erigida em Assembleia de Compartes, em cujo nome e interesse age o seu Conselho Directivo.
E a comunidade de compartes só pode estar em juízo através dos seus órgãos, concretamente do Conselho Directivo, a quem compete expressamente essa função.
Refere Jaime Gralheiro, in Comentário à Nova Lei dos Baldios, Almedina, 2002, pag. 139, que «as Assembleias de compartes são pessoas colectivas» (…) as Assembleias de Compartes são pessoas morais de carácter social, face à natureza jurídica dos baldios e ao “escopo”» Tendo personalidade jurídica, é evidente que as A. compartes têm personalidade judiciária (artº 5º, nº 2 do CPC).
Em relação ao Conselho Directivo adianta este autor que: «o Conselho Directivo é uma emanação da Assembleia de Compartes; o seu órgão executivo» (Idem, pag. 156).
É ao dito Conselho que, ex vi legis, cabe propor as pertinentes acções em juízo in nomine da comunidade ou, na expressão legal, «recorrer a juízo e constituir mandatário para a defesa dos direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio».
É esta susceptibilidade de estar em juízo como parte, que tem levado a que algumas decisões jurisprudenciais considerem existir uma verdadeira personalidade judiciária do Conselho Directivo, mas em rigor o Conselho Directivo não está suo nomine em juízo, já que, nos termos da alínea h) do artº 21º da Lei 68/93, de 4 de Setembro, tais actos carecem de ratificação da Assembleia de compartes.
Como quer que seja, tanto a personalidade judiciária como a capacidade judiciária requerem a constituição válida da pessoa ou da entidade que em nome da pessoa, figura como parte na lide e a falta de qualquer destes pressupostos de validade de instância conduz ao mesmo resultado, isto é, à absolvição do Réu da instância, nos temos do artº 288º, nº 1, alínea c) do CPC.
Aqui chegados, só podemos concluir que dada esta natureza jurídica dos baldios, a Ré, enquanto na administração e gestão dos mesmos, pratica actos que são tidos e considerados como actos de gestão de bens alheios
Ora, à assunção por uma pessoa da direcção de negócio alheio, no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal se encontrar autorizada, o que integra a figura jurídica da gestão de negócios, é aplicável, no que respeita aos negócios jurídicos celebrados pelo gestor em nome daquele, o regime jurídico da representação sem poderes, constante do art. 268º e arts. 464º e 471º todos do C. Civil.
E, de acordo com esta norma referente à representação voluntária, o negócio efectuado por quem, sem poderes de representação o celebre em nome de outrem, é cominado com a sanção da sua ineficácia relativamente a este último se não for objecto de ratificação por parte do mesmo, ratificação essa que se encontra sujeita à observância da forma exigida para a procuração, a qual é análoga à que deve ser observada no negócio jurídico a realizar pelo procurador – arts. 262º, n.º 2 e 268º, n.ºs 1 e 2 do CC.
Em suma, no caso a personalidade judiciária pertence à pessoa colectiva Comunidade local erigida em Assembleia de Compartes e a capacidade judiciária pertence ao Conselho Directivo pelo que a Junta de Freguesia, ao agir em juízo, fá-lo como gestora de negócios. Não tendo havido ratificação, a actuação da Junta de Freguesia, relativamente aos pedidos da acção objecto deste recurso, não tem eficácia.
Termos em que se delibera, embora com fundamentos diferentes da sentença, julgar a apelação improcedente e confirmar o sentido da sentença recorrida.
Conclusões
I - No caso dos baldios a personalidade judiciária pertence à pessoa colectiva Comunidade local erigida em Assembleia de Compartes e a capacidade judiciária pertence ao Conselho Directivo pelo que a Junta de Freguesia, ao agir em juízo, fá-lo como gestora de negócios. Não tendo havido ratificação, a actuação da Junta de Freguesia, relativamente aos pedidos da acção objecto deste recurso, não tem eficácia.

Custas pela Apelante

Porto, 22 de Março de 2011
Ana Lucinda Mendes Cabral
Maria do Carmo Domingues
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas